ESPORTE

Direto na desinformação

Esportes de combate são os principais alvos de criticas da mídia, mesmo sem dados que comprovem maior risco para os lutadores quando comparados à outros esportistas

Alberto Dabul Sant'Anna
Pontos de Escuta

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Team Nogueira | Reprodução: Google

Em fevereiro deste ano, os âncoras do telejornal Novo Dia, da CNN Brasil, Rafael Colombo e Elisa Veeck, noticiaram o acordo entre TikTok e UFC para transmissão do evento. O diálogo entre os jornalistas na ocasião demonstrou que eles não conheciam as regras básicas do MMA, as artes marciais mistas. “Pancadaria no TikTok agora, hein. Você colocar dois caras para se matarem num ringue”, disse Rafael na abertura da notícia. Mesmo que o apresentador pudesse não estar falando literalmente que os lutadores cheguem à morte, já que isso não acontece, frases como essa podem trazer prejuízos para o esporte, pois desinformam a audiência. No UFC, as lutas, por exemplo, são realizadas em um octógono e não em um ringue, como afirmou o jornalista.

Rafael, com o apoio da colega de bancada, criticou também o fato de os atletas competirem “sem luva, sem proteção nenhuma”, o que também está errado. Todos os lutadores usam luvas, com ataduras por baixo. Os homens usam coquilha, um protetor genital, as mulheres, proteção nos seios, e, ambos, protetor bucal. Essas são só algumas das regras unificadas do MMA, reguladas pelas comissões atléticas de cada região e seguidas à risca pelas maiores organizações do mundo. No entanto, existe todo um imaginário em relação às lutas que merece reflexão, pois o esporte envolve uma grande comunidade que vive dele.

“Violência” no esporte

“É muito mais difícil desassociar a violência do boxe e do MMA, ou de qualquer esporte de combate, do que do futebol”, diz o jornalista Lucas Carrano, do canal de YouTube Sexto Round. Ele lembra que existe violência em outros esportes, como no futebol, mas ela nem sempre é identificada como tal. “A violência não é só o carrinho, o empurrão ou a trombada. É a representação de violência. Ela está ali, mas às vezes a pessoa não percebe.” Um conceito importante para entender os esportes de combate é o de exclusão de ilicitude, que é utilizado na área do direito para ações que normalmente seriam criminosas, mas, em situações determinadas, passam a ser legais. É o que acontece nos esportes de combate, afinal, as ações ali praticadas seriam consideradas criminosas em outros contextos. “A ação em si, é violenta fora de contexto. Mas, quando você entra no contexto, é um esporte de contato. É óbvio que ele pode preservar menos ou mais a integridade física dos atletas. Só que isso tem que estar bem estruturado. É outro discurso, não tem a ver com violência e sim com regras”, diz Tainã Graeff, treinador de boxe olímpico, formado na Universidade de Havana.

Um estudo feito pela Universidade de Medicina Johns Hopkins, entre 2002 e 2007, mostrou que a média de lesões em um evento de MMA é de 23,6%. Em 635 lutas, 300 lutadores se lesionaram. As lesões mais comuns foram lacerações, cortes, contusões nos braços, punhos ou mãos. Concussões e lesões severas eram apenas 3% delas. Em mil lutas, a taxa de concussões graves foi de 15,4%.

O Instituto de Pesquisa do UFC mostra que nas lutas, as áreas mais afetadas são cabeça ou face (77,8%), pulso e mão (19,5%), joelho (15,6%), pé (10,7%) e ombro (9,7%). Por isso, os atletas de MMA lutam por volta de três a quatro vezes ao ano, enquanto um jogador de futebol pode entrar em campo mais de 60 vezes no mesmo período, e um jogador de basquete da NBA pode atuar entre 82 e 110 vezes em um ano.

A NFL, principal liga de futebol americano, conta com um “Protocolo de Concussão”: um neurocientista a postos para avaliar sinais de lesões cerebrais depois de uma pancada na cabeça, e um conjunto de regras a serem seguidas após tal choque entre os jogadores. Um jogador de futebol americano sofre entre mil e 1500 colisões com outros jogadores na temporada, essas colisões podem ser equivalentes a ser atropelado por um carro a 55 km/h.

O ex-jogador de futebol americano Eryk Anders, atual lutador do UFC, disse em 2017 ao programa ‘The MMA Hour’ que considera o futebol americano bem mais perigoso do que o MMA. “Se você é nocauteado, é só uma vez. Você se levanta e se recupera depois de um tempo. No futebol americano, você pode até mesmo não ser derrubado, mas você constantemente leva trombada, é atingido”, exemplificou na entrevista. O maior estudo sobre lesões cerebrais em jogadores de futebol americano, publicado no Journal of American Medical Association, encontrou lesões cerebrais em 110 de 111 cérebros de ex-jogadores da NFL.

A Encefalopatia Traumática Crônica (ETC) é uma doença degenerativa que pode ser causada por choques na cabeça. As manifestações podem começar a aparecer após oito anos em atletas com histórico de traumas repetitivos na cabeça. Apesar de os especialistas saberem os principais sintomas e seu padrão de evolução, a ETC não é uma síndrome passível de diagnóstico clínico, nem com ressonância magnética ou tomografia computadorizada. Não há como identificar se a doença está em curso. Só é possível ter certeza com um exame pós- morte. Por isso, os cérebros analisados por especialistas da Universidade de Boston, foram de jogadores de futebol americano que os cederam para a ciência por suspeitarem que algo errado estava acontecendo. Os autores do estudo, portanto, não podem extrapolar as conclusões para todos os jogadores.

Essa conclusão também não pode ser feita em outros esportes principalmente o MMA. Por ser um esporte extremamente jovem, com cerca de 30 anos, grande parte da primeira geração de lutadores ainda está viva. Também é difícil dizer qual é o impacto na saúde cerebral do atleta, visto que o choque é distribuído no corpo todo, em comparação ao boxe, por exemplo, que tem seu foco majoritário na cabeça.

Segundo o National Center for Catastrophic Sports Injury Research, 66% das lesões permanentes provocadas durante a prática de esportes entre as mulheres nos Estados Unidos, ocorrem nas líderes de torcida. Nas universidades americanas, passa de 70%. O número de casos em 1980 era de 5 mil, em 2007, passou de 26 mil. Sendo assim, ser uma cheerleader pode ser considerado mais perigoso do que ser um lutador.

Segundo artigo publicado na revista científica Lancet, o headbanging, o ato de balançar a cabeça ao ouvir heavy metal, também pode causar danos ao cérebro. E a ETC não é exclusividade do futebol americano, do MMA ou do boxe. Aparece com frequência em esportes como rugby, hockey e futebol. Vide quão comum é ver jogadores de futebol serem atendidos ainda em campo após choques de cabeça e voltando ao gramado com uma touca de natação para proteger o corte.

Em 2021, por exemplo, pelo menos dez jogadores de futebol morreram em campo ou a caminho do hospital. Em 1994, o Brasil perdeu o maior piloto da sua história em um acidente, um dia após um piloto austríaco morrer no mesmo autódromo. Todas as maiores categorias de automobilismo acumulam ao menos uma morte no século XXI. Enquanto isso, os maiores eventos de MMA do mundo, como o UFC, Bellator, One Championship e PFL, acumulam um total de zero acidentes fatais em sua história.

Quando a violência sai do contexto do esporte

O treinador Tainã e o jornalista Lucas dizem que um dos motivos de os esportes de combate terem sua imagem prejudicada é o comportamento de alguns atletas fora das competições. “Às vezes, por causa de um babaca que nem esse McGregor, que fica arranjando encrenca, por ele ser uma pessoa violenta, todos os outros acabam pagando, porque isso vende”, diz o treinador.

Os maiores nomes do MMA são Conor McGregor e Jon Jones, nos quesitos comercial e esportivo, respectivamente. Ambos têm ficha criminal extensa. O irlandês McGregor já foi acusado por vandalismo em ônibus, ferindo atletas e funcionários do UFC, e por agressão de idoso. Já Jones, por uso negligente de arma de fogo e por diversos crimes de trânsito. Em 2015, provocou um acidente em Albuquerque após ultrapassar sinal fechado e atingir dois carros. Em um deles, havia uma mulher grávida que acabou fraturando o braço. Jones fugiu sem prestar socorro. Ele também foi acusado de ter dado um mata-leão em uma garçonete e tê-la assediado sexualmente. O caso mais recente envolvendo Jones ocorreu em setembro deste ano, quando ele foi acusado de violência doméstica contra sua esposa.

No mundo dos esportes de combate, acaba existindo uma tolerância para casos como esses. McGregor e Jon Jones são o rosto desse esporte para o mundo, mas podem ser considerados criminosos fora dele. “Se ninguém reclama, é porque a ação é valorizada. O modelo de virilidade é valorizado. E quem são essas pessoas que acompanham isso e simplesmente continuam a aplaudir? Quem é esse público? Quem são essas marcas?”, questiona Michel Soares, antropólogo que desenvolve tese sobre o boxe olímpico brasileiro.

O problema é que o que esses atletas fazem fora das lutas compromete a imagem do esporte. “O atleta pode lutar dentro das regras, tudo lindo, mas na vida real é babaca pra caramba. Só que ser violento como pessoa não tem nada a ver com o esporte, é isso que as pessoas confundem”, analisa Tainã. Isso também se aplica a outros esportes, como o caso do jogador do São Paulo de Rio Grande, Willian Ribeiro, que foi preso em flagrante após agredir o árbitro Rodrigo Crivellaro em partida da Série A2 do Gauchão no dia 4 de outubro.

Questões sociais

O debate sobre a relação dos esportes de combate com a violência, no entanto, fica mais complicado quando jornalistas ou outros influenciadores divulgam informações erradas, ou imprecisas, como aconteceu com os apresentadores da CNN Brasil. Um caso semelhante ocorreu em julho deste ano. Roberto Dias, colunista da Folha de S. Paulo, publicou o texto “As lutas nos jogos”, se referindo às Olimpíadas de 2020, mas a única modalidade que ele critica é o boxe. Na sua opinião, ela não deveria ser aceita nos Jogos. O texto começa trazendo um trecho da Carta Olímpica e questiona a remoção dos protetores de cabeça do boxe olímpico masculino. Sem embasamento científico, essa iniciativa realmente parece ter tido o único objetivo de tornar o esporte mais visual para o público, sem se preocupar com a integridade física dos atletas. Isso fica mais claro ainda por ter sido removido apenas das competições masculinas.

No entanto, Roberto, por exemplo, trata o nocaute como o clímax do boxe olímpico sem trazer a informação de que ele aconteceu apenas quatro vezes em mais de 150 lutas nas Olimpíadas de Tóquio. Além disso, o jornalista chama Conor McGregor de boxeador, o que seria equivalente a chamar Whindersson Nunes da mesma forma, afinal, ambos têm o mesmo número de lutas de boxe: uma. Sendo que o brasileiro tem uma vitória, enquanto o irlandês, uma derrota. Mas a maior polêmica do texto de Roberto Dias está no final. Ele cria um paralelo entre o boxe, as brigas de galo e as touradas. Para Breno Macedo, mestre em história social do boxe pela Universidade de São Paulo (USP), esse tipo de argumento tem uma origem: “Hoje em dia a gente não pode estar fechado para essa questão racial do país. A gente tem que estar sempre com esse olhar. E se você olhar o time de boxe do Brasil nas Olimpíadas: sete atletas, seis pretos. É como se fosse uma marca. Quem são os representantes do boxe brasileiro? Gente preta. Então é mais fácil de bater. É mais fácil do cara criticar, é mais fácil dele animalizar os atletas. Dizer que não são gente, que não é um esporte de gente, é de bicho, tourada e qualquer coisa do tipo. Essa é a principal raíz desse preconceito contra o boxe não só no Brasil, mas mundialmente”.

A fala de Lucas Carrano pode complementar: “Eu colocaria isso mais na conta do racismo estrutural. São pessoas de classes sociais mais baixas que vão buscar nisso [nos esportes de combate] uma forma de transformar a própria realidade, porque elas têm opções mais limitadas e essa acaba sendo uma delas”.

Em fevereiro deste ano, a senadora Kátia Abreu também fez comparação semelhante no seguinte tweet:

Publicação da senadora | Reprodução: Twitter

Mesmo que ela estivesse se referindo ao MMA, já que o UFC é uma empresa estadunidense e não um esporte, é preciso esclarecer que as mulheres que estão na foto compartilhada pela senadora são Charisa Sigala e Taylor Starling após luta no Bare Knuckle FC, um evento de boxe que não segue as regras do esporte (não exige luvas, por exemplo) e foi responsável pela recente morte do ex-lutador de MMA Justin Thornton. Se o alvo da crítica fosse especificamente essa empresa, faria sentido. Provavelmente, um de seus assessores notou os equívocos e apagou a postagem minutos depois.

Em agosto, no programa UOL News Olímpiadas, outro jornalista criticou as lutas de boxe, mas se referiu apenas às femininas. A pauta era a medalha conquistada pela boxeadora brasileira Bia Ferreira. Juca Kfouri declarou ter como marca para a “civilização plena” da humanidade a proibição do boxe. Na opinião do pesquisador Breno, a proposta de terminar com o boxe carrega junto um antigo preconceito. “Isso é para disfarçar um elitismo e um dito avanço social, um avanço humanitário, como se lutas fossem um retrocesso humano”, diz ele. “O boxe começou a ter seus primeiros estilos aqui no Brasil na década de 1920, e desde então já tem preconceito. Isso é uma coisa que tem mais de cem anos. Um preconceito de classe e de raça, elitista, uma visão que está agregada a quem pratica esse tipo de esporte. No caso, pessoas normalmente de classes subalternas, pessoas pobres e muita gente preta também, que está nas camadas populares. O mesmo discursinho que os caras usam hoje, eles usavam cem anos atrás”, critica.

Lucas Carrano coloca o tempo como fator principal para a marginalização dos esportes de combate: “É uma questão de tempo, costume, prática e hábito. O fato de ter 100, 700, mil anos de história, ajuda para caramba. Ainda tem um outro componente que é a solidez institucional que a coisa vai adquirindo”. Na opinião dele, principalmente o MMA ainda não adquiriu essa solidez.

Segundo a Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças crônicas por Inquérito Telefônico, promovida pelo Ministério da Saúde, entre 2006 e 2017, a prática de lutas aumentou 109% no Brasil. Só não cresceu mais que a corrida, que teve um aumento de 194%. Embora a prática de lutas esteja crescendo, ainda representa apenas 2,3% da preferência da população brasileira.

No Brasil, o financiamento público ao esporte é somente àqueles com destaque no cenário de competições. Ainda assim, apenas 77% dos atletas olímpicos de São Paulo que competiram em Tóquio recebem bolsa do governo. A Bolsa Pódio paga entre R$ 5 mil e R$ 15 mil mensais aos atletas que já figuram entre os melhores do mundo. Outra categoria, a Bolsa Atleta, vai até no máximo R$ 3.100 mensais para os atletas olímpicos. Os que são contratados pelas Forças Armadas recebem aproximadamente R$ 4.500.

Criticar qualquer esporte, ao invés de lutar pela sua profissionalização e valorização de seus atletas, principalmente os olímpicos, que vivem muitas vezes em situação social e financeira precária, sem apresentar uma reflexão mais ampla e consistente sobre o assunto e, principalmente, divulgando informações erradas, pode prejudicar muita gente, incluindo os atletas.

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