MATERNIDADE

Economia do Cuidado: o trabalho invisível das mães

Um panorama sobre o impacto psicológico e financeiro acerca da falta de suporte para o trabalho materno

Madu Porto
Pontos de Escuta

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Conciliar a maternidade e a criação de conteúdo para as redes sociais é um verdadeiro desafio na rotina da Mãe Crespa | Foto: Acervo pessoal

Já é tarde, tudo está certo

Cada coisa posta em seu lugar

Filho dorme ela arruma o uniforme

Tudo pronto pra quando despertar

O ensejo a fez tão prendada

Ela foi educada pra cuidar e servir

De costume esquecia-se dela

Sempre a última a sair

Disfarça e segue em frente

Todo dia até cansar

E eis que de repente ela resolve então mudar

Vira a mesa

Assume o jogo

Faz questão de se cuidar

Nem serva, nem objeto

Já não quer ser o outro

Hoje ela é o também

Nas primeiras linhas de Desconstruindo Amélia, canção da cantora e compositora Pitty, de 43 anos, a rotina e a perspectiva do que se espera de mulheres, mães e donas de casa Brasil afora estampa uma realidade que até hoje é uma norma tácita em muitas famílias no país.

Por conceito, a chamada Economia do Cuidado é a área de atuação remunerada de milhares de brasileiros: 17,4% dos trabalhadores ocupam cargos ligados ao cuidado, como saúde, educação e serviços sociais, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) de 2019. Além disso, 6,6% dos brasileiros têm como trabalho principal o serviço doméstico.

Ser cuidador é, portanto, uma profissão existente e concebida a partir de necessidades básicas e primordiais aos seres humanos. Em contrapartida, o cuidado materno e doméstico praticado diariamente por milhares de mulheres nos quatro cantos do país segue invisibilizado, ao passo que, segundo a mesma pesquisa, as brasileiras gastam mais de 61 horas semanais nesse tipo de atividade sem receber nada por isso — seja salário, suporte ou ajuda.

Ainda quando se fala sobre maternidade, as estatísticas mostram que o índice de mulheres entre 25 e 49 anos vinculadas a empregos e que vivem com crianças de até três anos era de 54,6% em 2019, enquanto os números marcam cerca de 89% para a população masculina na mesma situação. Os índices são ainda mais acentuados para mulheres pretas ou pardas — nesse caso, o nível de ocupação foi de 47,9%.

A professora universitária e economista-chefe da Fecomércio do Rio Grande do Sul, Patrícia Palermo, indica que os números embasam uma realidade latente: “Crianças pequenas tendem a fazer com que as mulheres abdiquem da vida no trabalho”. Além disso, para a especialista, a determinação é resultante de condições culturais e econômicas: “A decisão de serem elas as que devem ficar em casa vem de um contexto social que pressupõe que seja a mãe quem deve cuidar das crianças. Isso tende a ser mais grave quando a falta de renda de um dos adultos da casa leva a família a uma situação de privações de consumo.”

A rotina de uma mãe

“Eu nem sei como é que eu consigo ainda ficar de pé alguns dias.” É assim que a influenciadora digital de Porto Alegre, mãe solo de quatro filhos e ex-professora Aline Barbosa — mais conhecida nas redes sociais como Mãe Crespa — , de 26 anos, descreve o seu dia a dia enquanto mãe e profissional. Sua rotina começa cedo, às 6h da manhã, e termina depois da meia noite: “Eu durmo tarde, porque tento deixar a casa mais organizada para começar o dia tranquila e também para eu conseguir pelo menos tomar um banho sem ninguém me interrompendo”.

Ao ser questionada sobre os seus hábitos e afazeres diários, a dona de casa e mãe de três filhos Giulia Machado, de Viamão, aos 22 anos dispara: “Minha rotina é acordar, trocar a fralda do meu bebê, dar ‘mamá’, fazer o café da manhã, organizar a casa e começar o almoço, no meio disso tenho que parar para pegar o bebê no colo”. E por aí vai. Esse cotidiano “atropelado” é narrado pelas mães como costumeiro e, de fato, exaustivo.

Mariane dos Santos, de 26 anos, moradora de Porto Alegre, dona de casa e mãe de dois filhos — uma menina de três anos e um menino de 10 — , é incisiva a respeito do seu cansaço ao afirmar com um sonoro “sim” quanto à sensação de estar ou não sobrecarregada. A mesma resposta sai da boca das outras mães, e Aline ainda complementa: “Muitas vezes eu percebo que esgotou o meu limite, mas eu continuo, sabe?”.

A Mãe Crespa, no último mês, deparou-se com um quadro grave de estresse. Ao consultar com um médico, descobriu a necessidade de desacelerar a sua rotina ao notar os sintomas da sobrecarga na pele: “Eu estava com dores de cabeça intensas todos os dias e começou a sair várias bolinhas no meu corpo. Meu estresse já estava sintomático, já estava saindo para fora, e a minha pressão estava lá nas alturas. Foi aí que eu resolvi parar e pensar no que eu podia fazer para me ajudar”.

Quem vai cuidar de quem cuida?

Quadros como esse não são uma exclusividade de Aline. O esgotamento materno afeta as brasileiras e ultrapassa o simples cansaço físico. Além dos perigos acerca da saúde das mães, a autoestima e o bem-estar social das mulheres são gravemente afetados por uma rotina exaustiva de cuidados que não são para si.

A mãe, psicanalista e doutora em psicologia social e institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Camila Backes explica que a exaustão é o gatilho para todos os efeitos psicológicos. Ela conta que sua primeira recomendação aos pacientes que chegam ao seu consultório e que passam por longos momentos de privação de sono é a seguinte: “Primeiro, tu tem que dormir”.

A psicóloga ainda esclarece que a falta de descanso impede que o indivíduo pense com clareza para resolver desde questões básicas do cotidiano até problemas sérios que demandam certa concentração: “A pessoa que está sem dormir não consegue pensar. Então, o sono é o principal”.

“A autoestima não está muito boa, não tenho tempo para mim.” Mariane afirma que gostaria de ter mais tempo livre para terminar os estudos. Ela não menciona o autocuidado, porque ele não faz parte dos seus dias. Entretanto, mostra certa insatisfação pela falta de momentos para si: “Me sinto às vezes frustrada por não poder fazer muita coisa ou até mesmo ter dinheiro sobrando”.

O mesmo acontece com Aline. A influenciadora conta que se sentia culpada por tirar um tempo para si, mas que hoje está aprendendo a se dar uma atenção especial: “Além de ser mãe, eu também sou mulher, e não há nada de errado em me priorizar também”.

Após o susto que a levou até o hospital com as fortes dores de cabeça e reações na pele, a Mãe Crespa viu que a sua nova rotina, mais voltada para si, já rendeu bons frutos: “Até comecei a ler um livro, que é coisa que eu não fazia há anos”. No entanto, a culpa não é incomum entre as mães que resolvem reservar algum tempo para o autocuidado.

Mariane ainda confessa que em suas atividades só cabem dois itens e que na escala de prioridade funciona assim: “Atendo eles [os filhos] primeiro e depois faço os afazeres domésticos”. Já Giulia conta que desenvolveu um sistema para otimizar seus prazos: “Sempre que dá, eu faço duas coisas ao mesmo tempo para ir mais rápido e eu ter mais tempo livre”.

Tempo, para elas, é dinheiro

Assim como Mariane, que gostaria de ter mais tempo para os estudos, Aline conta que até tentou iniciar sua formação em uma segunda língua, mas que a rotina não a deixou continuar: “Eu tive que parar, porque eu fazia as aulas online com as crianças aqui comigo. Eu tava só ali de corpo presente, não conseguia prestar atenção”.

A solução, para Mariane, é conseguir uma vaga em uma creche pública para a sua filha mais nova, de três anos. Com isso, a dona de casa usará o tempo livre para conseguir um novo emprego, mas a procura, segundo ela, também é dificultosa: “Não está fácil, tem poucas oportunidades”.

Já a influenciadora digital demonstra que, no seu trabalho nas redes, o tempo é precioso. Com os filhos em casa, ela precisa abdicar de certas atividades com as marcas que a procuram por não ter com quem deixar as crianças. Ela também está na espera por uma vaga para a sua filha mais nova, Antônia, de três anos. Cogitou, inclusive, optar por uma creche particular, mas os valores estavam fora do seu orçamento: “Para mim, fica fora de cogitação, com 700 reais eu faço várias coisas”.

A economista Patrícia Palermo indica que a falta de vagas na educação gratuita de tempo integral tende a ser especialmente danosa para as mulheres que tipicamente acabam por se responsabilizar com o cuidado das crianças. Durante a pandemia em decorrência da Covid-19, o quadro agravou-se, pois as mães tomaram para si uma responsabilidade ainda maior: a de dar aulas para seus filhos.

Mesmo para Aline, que já foi professora, essa não foi uma tarefa simples. A mãe do Vicente, de sete anos, conta que tomou para si esse encargo ao notar que as aulas online não conseguiam suprir a carência: “Chegou no final do ano e ele ainda não sabia ler. Eu me sentia muito culpada com isso. Eu sendo professora, falei: ‘vou ter que ajudar’, então eu consegui alfabetizar ele”.

A necessidade tornou a carga horária de cuidados por parte das mães ainda maior, conforme explica Patrícia: “No Brasil, a educação das crianças é delegada à escola. A pandemia trouxe a sala de aula para dentro das casas e, nesse caso, as mães funcionaram também como professoras. Isso certamente aumentou a carga de trabalho não-remunerada cotidiana”.

Ao ser questionada sobre a demanda de vagas em creches do sistema público de Porto Alegre, a Equipe de Gestão de Vagas da Secretaria Municipal de Educação informou que as listas de espera foram rigorosamente atendidas pela ordem em que se encontravam e que o período de inscrições para 2022 iniciou-se em 13 de outubro de 2021.

Na América Latina

Desde julho deste ano, a Argentina decretou que as mães poderão adicionar de um a três anos ao tempo de contribuição para aposentadoria por cada filho — incluindo filhos adotados. De acordo com a lei previdenciária do país, as mulheres que atingirem os 60 anos e que ainda não completaram os 30 anos mínimos de contribuição poderão fazer uso do benefício.

No Chile, desde 2009, o valor da bonificação de aposentadoria das mães é acrescido de acordo com a data de nascimento do filho. São aplicadas taxas de rentabilidade por cada mês de vida do mesmo até que a mulher complete seus 65 anos. No Uruguai, o trabalho materno é reconhecido desde 2008 pela lei que determina que seja contado um ano de tempo de serviço para cada filho. O benefício se estende por até cinco anos adicionais. No Brasil, não existe nenhuma lei que beneficie as mães nesse sentido.

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Madu Porto
Pontos de Escuta

Estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. 24 anos.