JORNALISMO (ANTIR)RACISTA

O espelho embranquecido do jornalismo

Há exatos 50 anos, o país conhecia, na Rede Globo, a primeira repórter negra do telejornalismo brasileiro. Desde então, a pequena presença de mulheres negras no jornalismo nacional ainda é uma realidade. De geração a geração, acompanhamos o racismo que se perpetua

Rafaela Cruz
Pontos de Escuta

--

Imagem: FreePik
Foto: FreePik

Se você nunca se perguntou onde estão as jornalistas negras brasileiras e por que vemos tão poucas em papéis de destaque, talvez você faça parte do problema. Glória Maria, Maju Coutinho e, Zileide Silva, da Rede Globo, e Fernanda Carvalho, da RBS, são nomes de mulheres pretas que partilham a mesma paixão: o jornalismo. Muito além de compartilharem o mesmo trabalho, elas representam a pequena parcela de jornalistas pretas que conseguiram quebrar as estatísticas e conquistar seu espaço no mercado jornalístico. Entretanto, uma pesquisa realizada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em 2012 revelou que, embora as mulheres sejam maioria no jornalismo, cerca de 64%, predominam as brancas, solteiras, com até 30 anos. Já no âmbito regional, os números aprofundam-se: segundo pesquisa realizada como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS) pelo jornalista Gabriel Bandeira em 2021, de 134 repórteres e apresentadores atuantes no Rio Grande do Sul, apenas oito são negros, isto é, 5,9%.

Com esse cenário, parece impossível que o racismo e o preconceito que permeiam o ambiente jornalístico, assim como todos os outros setores sociais, possam sair de pauta um dia. Ser uma mulher negra no Brasil é carregar uma identidade racial e de gênero que perpassa milhares de anos. Existem múltiplas formas de silenciar o povo preto, e a ausência de representatividade é mais uma delas. Na televisão, nos impressos, nas mídias digitais, ou sonoras, as raízes da violência racial estão presentes, e os dados da pesquisa realizada pela UFSC mostram que a área do jornalismo não é plural o suficiente.

Conheça três gerações de mulheres, pretas e jornalistas que viveram diferentes tempos da profissão, mas que enfrentam todos os dias os mesmos fragmentos e facetas de uma luta travada há séculos: a do racismo. Cada uma à sua maneira encontrou forças no seu andar.

A solidão do tempo

Quem vê Vera Daisy Barcellos, hoje com 72 anos, na presidência do Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul, não imagina o que a jornalista teve de passar para chegar onde chegou. Ou talvez até imagine, se o observador tiver consciência de como era a vivência de uma jornalista negra na década de 1970.

Vera Daisy Barcellos para a exposição ‘Donas da História’ que homenageia mulheres negras gaúchas | Imagem: Alvaro Bonadiman Aguiar

Formada em Jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 1971, Vera saiu da graduação aos 23 anos para descobrir e redescobrir estruturas, processos e preconceitos existentes. Envolvida na militância estudantil desde o início da vida acadêmica, a jornalista conta sobre a busca incansável por coletivos em que se enxergasse. “Se aquilo não me satisfazia, eu pulava para outro grupo.”

Durante os 16 anos em que trabalhou no jornal Zero Hora, Vera era a única repórter negra: “Eu fui obrigada a superar uma série de batalhas e continuo sendo aquela Vera Daisy que está sempre solitária nos espaços ocupados. E isso, para nós, demonstra quanto racismo permeia dentro das empresas de comunicação”. Ela relembra o passado em que o maior veículo de comunicação gaúcho, a RBS TV, possuía apenas um rosto feminino negro nas telas, a jornalista Julieta Amaral, e vê hoje a história se repetindo através da solidão de Fernanda Carvalho nas telas da emissora. “Estou cansada de ser solitária.”

Foi na luta sindical que encontrou forças para unir sua paixão pela comunicação e militância. Mas lamenta a ausência da juventude negra sindicalizada na luta por políticas inclusivas. “Nós não estamos ouvindo a ressonância da juventude para nos dar sustentação no campo. É algo que nos faz meditar: por que estamos nós há tanto tempo liderando e onde estamos falhando em capturar a juventude negra?”. Segundo a jornalista, só é possível incidir políticas de igualdade racial no mercado se as empresas perceberem que existe a demanda de grupos negros, e este é, na opinião dela, o papel da juventude negra ao integrar os sindicatos.

“Não se esqueça das suas origens” , Vera Daisy Barcellos, jornalista

Estudantes que assumem cotas raciais, segundo a jornalista, possuem o compromisso essencial com a comunidade negra, de elevá-la e abrir espaços para alavancar seus similares. O caminho para isso, afirma, é entrar em estruturas que necessitam ter a presença de pessoas pretas. “Não se esqueça das suas origens. Você nunca pode se afastar da base. Entenda onde estão nossos pares. Militância não é só ficar dentro da universidade. Quem vai te dar mais conhecimento, é o viver comunitário. Não fique numa zona de conforto.”

Aquilombe-se: um processo de renascimento

Apresentadora, mediadora, editora, assessora e pesquisadora são alguns dos papéis que a jornalista já carregou em sua carreira em diversos veículos do país | Foto: Arquivo Pessoal

“Cria da cultura urbana, do hip hop e do skate” e “feminista antirracista”, é assim que se descreve Carol Anchieta, jornalista gaúcha que aos 41 anos acumula centenas de variações da revolução em si. Sua busca é por estratégias para potencializar a diversidade na arte e unir forças no caminho da descolonização da imaginação.

Conectada com a cultura urbana desde pequena, Carol atravessou inúmeros caminhos até ser a primeira mulher negra no país com mestrado em design estratégico. Ela ressalta a importância de enegrecer espaços e questionar estruturas. “Ele [meu trabalho] é questionador do próprio design, para que ele perceba sua responsabilidade social das presenças negras que não estão ali, das nossas não existências.”

Graduada em 2011 pela Unisinos, revela que antes de entrar no jornalismo fazia faculdade de Educação Física, mas ao receber um convite para fazer uma reportagem sobre skate, ela, que tinha muita espontaneidade com câmeras, viu ali um chamado: “Aprendi muito, me apaixonei e troquei de curso. Foi assim que eu descobri. Através do skate”. Carol enfrentou sete anos de curso combinados ao trabalho no campus da universidade: saía de casa cedo e só retornava à noite. Era comum que se sentisse solitária por ser uma das únicas pessoas pretas nos lugares que frequentava: “Eu tive pouquíssimos colegas negros. Na minha formatura teve um encontro de cinco gurias pretas, foi muito legal, e a gente tirou uma foto, o nosso grupinho era o grupo mais preto, a gente nem tinha sido colegas”.

Como a solidão da pessoa preta vai muito além de fases, para Carol que habita o mundo predominantemente branco do jornalismo, suas experiências profissionais e o mestrado foram embranquecidos: “Foi muito solitário. É cansativo às vezes, porque acaba recaindo sobre ti questões que tu não quer ficar o tempo inteiro falando”, diz ela, se referindo ao fato de muitas emissoras de televisão colocarem profissionais pretos para falar somente sobre negritude, como se fosse porta-voz do movimento negro. Mas a jornalista destaca que sempre fez questão de ter um espaço para argumentar com editores e exercer seu processo criativo. “Eu lutei muito para ter minha personalidade carimbada no meu trabalho, para eu poder falar de arte, para eu poder usar as roupas que eu quero, o cabelo que eu quero”, conta a profissional que já atuou na Rede Globo e na filial, RBS TV, além de ter feito colaborações para o jornal Zero Hora, também do Grupo RBS.

Ainda incerta sobre o futuro e orgulhosa de si, Carol acredita na ideia do aquilombamento, isto é, reunir-se entre seus semelhantes e reconectar-se com sua história e cultura. Aquilombar-se é, na atualidade, consolidar as forças da comunidade negra e construir espaços coletivos de oportunidades, de afeto, de escuta, acolhimento e reflexão sobre o passado, o presente e o futuro. Ela acredita que não se pode esperar pela boa vontade dos grandes veículos e torce para que futuros comunicadores pretos e pretas tenham consciência do seu valor e não se nivelem por essas grandes empresas. “O aquilombamento pode ser um caminho.”

Um passo de cada vez

Aos 25 anos, Amanda Hamermüller, graduada em Jornalismo na UFRGS em 2018, enxerga que foi a universidade que abriu seus olhos para uma maior percepção racial de si e de seu entorno. “Quando eu comecei a entender isso, percebi que realmente eu queria muito jornalismo por uma questão não relacionada à imagem. Percebi que muito da minha visão do jornalismo foi construída sem uma imagem de fato, era tudo áudio, escrita”, conta Amanda ao compreender que não se via no quadro de referências embranquecidas. “Não tinha quem eu olhasse.”

Em 2018, aos 22 anos Amanda se forma na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) | Foto: Arquivo Pessoal

As dúvidas e inquietações acerca da representatividade e à ausência de protagonistas negros no jornalismo fizeram-na conceber seu TCC: “A cor na televisão: uma análise da representatividade racial entre os repórteres e apresentadores da Rede Globo e o papel televisivo na construção da identidade negra”. Ela conta que, embora já soubesse que encontraria um abismo racial entre os repórteres da emissora, durante a pesquisa se surpreendeu com uma disparidade maior do que imaginava. Muito além de trazer números à tona, seu desejo era expor os motivos pelos quais é necessária a presença de profissionais negros na televisão, no que isso influencia, constrói e representa socialmente.

Ao compartilhar suas experiências, expõe uma das facetas do racismo estrutural: a unificação de corpos negros. No âmbito jornalístico, Amanda encontra em Glória Maria, repórter da Rede Globo, conhecida por ser a primeira repórter negra do telejornalismo, um exemplo da concentração de múltiplas identidades em um único indivíduo. “Eu sou uma mulher negra de pele clara, eu não me identifico tanto assim com ela. Eu me identifico com o fato de a Glória Maria ser jornalista e mulher negra, mas não é aquela identificação plena. É uma identificação diferente”, diz, destacando que a comunidade negra não é uma massa homogênea e que possui individualidades e particularidades.

O fenômeno de unificação traz também fardos para as próprias jornalistas negras que saem da curva, como Maju Coutinho, que constantemente é relembrada de sua negritude por ter sido a primeira mulher negra na bancada do Jornal Nacional. Amanda possuía este medo, de que ao abordar o tema racial em seu TCC, seu nome fosse lembrado apenas por pesquisas em torno da temática racial e não por questões técnicas. Mas encontrou na professora de jornalismo Sandra de Deus, docente negra que orientou seu TCC, forças para continuar: “Eu preciso falar sobre isso, porque, se eu não falar, ninguém vai falar, e isso precisa ser falado. Se eu não consigo nomear os jornalistas brancos e consigo nomear os jornalistas negros, é porque realmente eles estão em uma quantidade muito menor”. Esse foi o pensamento que fortaleceu sua convicção em realizar a pesquisa com a temática.

Amanda ressalta a necessidade de redes de incentivo entre jornalistas pretos para dar maior destaque a outros rostos. Para ela, esse trabalho já começou no seu emprego, onde foi aos poucos conquistando novas possibilidades e se envolvendo no recrutamento da UOL EdTech, sua atual empresa. Foi iniciando estratégias de chamamento, seleção e priorização de pessoas pretas que se tornou de a única pessoa negra da equipe e da empresa, para uma dos cinco profissionais negros que atuam na área. “Comecei a trazer pessoas negras que talvez não tivessem o corpo técnico que eu precisava para a vaga, mas que eu estava disposta a desenvolver estas habilidades com elas.”

A pluralidade de olhares torna-se também um resultado positivo para a empresa, que traz novas pautas e diferentes pontos de vista. “Tu que o racismo se perpetua de uma forma tão grave porque, mesmo dentro do capitalismo, as organizações não veem que elas perdem dinheiro sem diversidade.”

Ainda em início de carreira, ela sonha em ser exemplo para futuras jornalistas pretas. “Talvez por não ter tido muitas referências, eu sempre tive vontade de ser a referência. Vou abrir essas portas, vou chamar essas pessoas. Vou ser a pessoa em quem eles se inspiram para que um dia eles sejam a pessoa que inspira alguém.”

Olhar para as histórias de Vera, Carolina e Amanda, é olhar apenas a ponta do iceberg, é reconhecer os duplos entraves e angústias que o ser mulher e o ser negra estabelecem para alcançar o reconhecimento na carreira. Assim como milhares de outras mulheres e meninas negras silenciadas e postas na sombra do preconceito, elas percorreram e continuam a percorrer o exaustivo caminho do jornalismo. Pensar nelas é entender que raça, classe e gênero não devem e não podem ser analisados de forma isolada, porque tudo é indissociável.

--

--

Rafaela Cruz
Pontos de Escuta

Aos 19 anos, Rafaela estuda Jornalismo na UFRGS e clama pela revolução. Vidas negras importam.