COMPORTAMENTO

Os jovens e os games na pandemia

Durante o isolamento social, 46% do público gamer jogou mais. Como as pessoas podem estar sendo afetadas pelo tempo extra dedicado aos jogos?

Arthur Sene Cavalli
Pontos de Escuta

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Ao contrário de outros setores, a indústria dos games teve crescimento durante a pandemia | Foto: Adobe Stock

A indústria dos games está em ascensão há vários anos. A receita anual desse setor aumentou progressivamente de 77 bilhões de dólares, em 2013, para 148 bilhões, em 2019, de acordo com estudo realizado pela consultoria Newzoo. Com a pandemia de Covid-19 atingindo o mundo, o rumo que essa indústria iria trilhar ficou incerto, mas, ao contrário do que ocorreu com a maioria dos setores, o crescimento desse mercado não parou, inclusive foi exponencial.

A Pesquisa Game Brasil 2021 (PGB21), desenvolvida pela Go Gamers, aponta que atualmente 72% dos brasileiros costuma jogar jogos eletrônicos, independentemente da plataforma. Além disso, o maior público, 22,5%, está na faixa etária de 20 a 24 anos, seguido pelos de 25 a 29 anos, com 18,6%. A população entre 16 a 19 anos representa 10,3%, um número expressivo para essa faixa etária (menores de 16 anos não foram incluídos na pesquisa).

O estudo também aponta que a maioria do público consumidor de games no Brasil costuma gastar, em média, entre oito e 20 horas por semana jogando em plataformas variadas. Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), dos seis aos 11 anos, o uso de telas, o que inclui os jogos, deve ser de duas horas diárias no máximo. A partir dos 12 anos, a instituição indica o limite de três horas por dia.

Gregory Todeschini Giongo, de 14 anos, da cidade de Garibaldi, no Rio Grande do Sul, atualmente cursando o 8º ano, diz que sua rotina de “gameplay” diária durante a semana é de três horas em média. Já no final de semana, esse número sobe para até sete horas. Os jogos que Gregory consome são em sua maioria online e cooperativos.

A pandemia acabou fazendo com que crianças e jovens tivessem que ficar por um longo período confinados em casa. As escolas foram fechadas, e esse público se viu com muitas horas para gastar, encontrando nos games uma saída para a monotonia e para algum tipo de socialização, mesmo que a distância. O estudo PGB21 aponta que 51,5% do público que joga marcou mais jogatinas online com os amigos durante o período de isolamento social. Gregory diz que os jogos online foram sua principal forma de socialização com os amigos durante o período de isolamento social. “Era o único meio de nos comunicarmos além de WhatsApp”, afirma.

Segundo a PGB21, durante o período de isolamento social, 46% do público consumidor de jogos afirmou que jogou mais e 60,9% assistiram mais conteúdo de jogos. Gregory se encaixa nessa última estatística. Segundo ele, o seu consumo de conteúdo de games cresceu de forma considerável durante o isolamento. Esse crescimento também foi observado pelo streamer Alexandre Borba, conhecido nas redes como Gaules.

Streamer é a pessoa que transmite conteúdo em alguma plataforma da internet, e Alexandre é parceiro da Twich, ou seja, é através dessa plataforma que ele faz suas transmissões ao vivo. Desde o seu começo na Twitch, ele obteve um público relevante para os padrões da plataforma, entretanto, foi em 2020, o ano do início da pandemia no Brasil, que começou a quebrar recordes. Foi o único brasileiro presente no top 10 de streamers mais assistidos da plataforma. Em junho, conseguiu realizar a primeira transmissão brasileira a atingir mais de 200 mil espectadores simultâneos, com 206 mil pessoas acompanhando. Em 2021, suas transmissões tiveram um tempo acumulado de 38,48 milhões de horas assistidas entre janeiro e março. Além dele, toda a plataforma apresentou um crescimento acentuado nesse período de pandemia. De 2019 para 2020, o número de downloads do aplicativo teve um crescimento de 134%, e, já no primeiro semestre de 2021, o aumento foi de 62% comparado ao mesmo período do ano anterior, segundo dados fornecidos pela The Esports Observer.

Observando as consequências

Um crescimento desta magnitude traz consigo muitas dúvidas, principalmente com relação a que tipos de consequências, positivas ou negativas, essa exposição maior ao mundo dos games pode trazer para a saúde mental e física dos jovens. Recentemente, o governo chinês, por exemplo, aprovou medidas de controle ao acesso aos jogos por menores de 18 anos. A limitação a três horas de jogatina por semana — apenas às sextas, sábados e domingos entre 20h e 21h — está entre as medidas. A justificativa, segundo o próprio governo chinês, é o combate ao vício em jogos online.

Já no Brasil, ainda não existe nenhuma lei que regule ou controle o acesso aos jogos dessa maneira. Entretanto, o deputado Coronel Chrisóstomo (PSL-RO), apresentou uma proposta de projeto de lei (1324/21) que estabelece o uso de jogos eletrônicos como prática pedagógica na educação básica brasileira. O texto permanece em análise na Câmara dos Deputados e entre os objetivos do projeto estão “o preparo do educando para a cidadania e sua qualificação para o trabalho, incluindo sua capacitação para lidar com novas tecnologias; o uso de técnicas motivadoras no aprendizado; a unificação do aprendizado e a redução das desigualdades educacionais dos estudantes; e o combate da evasão escolar por meio de tecnologias de interesse dos alunos.”

“A gamificação na educação básica proporciona um ambiente de aprendizagem motivador e desafiador, capaz de estimular o intelecto, possibilitando a conquista de estágios mais elevados de raciocínio. Trata-se de ferramenta muito poderosa para a motivação, a atenção e o engajamento dos estudantes dentro do processo de ensino-aprendizagem, que viabiliza o protagonismo dos estudantes”, diz o autor do projeto, Coronel Chrisóstomo em entrevista para a Agência Câmara Notícias.

Tal projeto assume uma postura totalmente diferente da adotada pelo governo chinês, propondo o incentivo responsável ao invés da proibição. O que não significa que vá, se aprovado, ter como consequência a diminuição do tempo que as crianças e adolescentes passam jogando fora do ambiente controlado.

Em relação à saúde física, Mateus Sfoggia Giongo, médico com especialização em UTI Pediátrica e que atua como professor de pediatria na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS), afirma que o fator mais importante para definir se a prática dos games é benéfica ou não é o tempo gasto jogando. Segundo Mateus, a partir do momento em que a pessoa deixa de praticar suas atividades básicas do dia a dia para ficar mais tempo jogando, esse hábito se torna prejudicial. A falta da prática de exercícios para passar mais tempo jogando é um dos maiores problemas.

Entretanto, Mateus também fala do lado positivo dos jogos eletrônicos: “Existem jogos que podem trazer benefícios através de raciocínio lógico e estimular o aprendizado”. O médico também afirma que os jogos podem ser interessantes para desenvolver habilidades como o raciocínio matemático, lógica e agilidade.

Já em relação à saúde psicológica, Simone Pinto de Souza, psicóloga com especialização em Psicologia Cognitiva Comportamental da Criança e que atua em sua clínica em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, diz que, com a pandemia e a reclusão social necessária para a não proliferação do covid-19, o abuso do tempo frente às telas e aos computadores para jogar foi percebido e preocupou profissionais. Ela relata que pôde perceber uma busca grande por atendimentos voltados para esse público. “Uns dos impactos mais percebidos foi afastamento da família, isolamento social, declínio no rendimento escolar, ansiedade e hiperatividade”, explica. Além desses, existem outros problemas que podem surgir caso os games sejam jogados de forma indiscriminada e sem supervisão pelas crianças e adolescentes. São eles déficit de atenção, agressividade, depressão, medos, dessensibilização dos sentimentos, irritabilidade, distúrbios do sono e, em casos severos, disruptura da realidade e transtorno de personalidade. Por conta disso, Simone frisa que a orientação é que a família esteja sempre alerta e oriente seus filhos quanto ao tempo de exposição às telas e ao conteúdo.

Entretanto, mesmo sob o ponto de vista psicológico, existem pontos positivos em relação aos jogos. Segundo Simone, desde que utilizados de forma adequada, podem desenvolver o raciocínio lógico, a habilidade visual-espacial, a habilidade de multitarefa, estimular a criatividade, o planejamento e tomada de decisões, auxiliar no aprendizado de línguas estrangeiras, no desenvolvimento de estratégias e auxiliar na concentração e atenção.

Gregory, que está vivenciando essa situação plenamente, diz que, durante o isolamento social, sua relação com seus familiares melhorou, independentemente de sua rotina nos jogos eletrônicos. Já seu desempenho escolar decaiu levemente, mas suas notas foram boas o suficiente para garantir sua aprovação. Segundo ele, os jogos trazem diversão, alegria e descanso para sua vida, além da interação com seus amigos.

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