CULTURA

Os livreiros no lado de fora da Feira

As livrarias de rua ainda enfrentam obstáculos para ganhar espaço no maior evento do livro da capital gaúcha

Lucas Vidal
Pontos de Escuta

--

A Feira do Livro de Porto Alegre de 2021 ocorreu em formato híbrido, com 56 expositores | Reprodução: Eduardo Beleske/PMPA

Mais uma edição da Feira do Livro de Porto Alegre chegou ao fim em novembro e, como em todos os outros anos, é evidente a falta das pequenas e acolhedoras livrarias independentes que colaboram com a difusão da cultura e formação intelectual dos cidadãos. O evento reúne milhares de pessoas anualmente e é considerado como patrimônio cultural imaterial do Estado, além de ser a maior feira de livros a céu aberto na América Latina, reforçando a importância da leitura com diversas atividades que discutem o impacto social dos livros.

Desde a sua criação em 1955, a Feira do Livro de Porto Alegre ocorre tradicionalmente na movimentada Praça da Alfândega. Idealizada por livreiros e apoiada por Say Marques, diretor-secretário do Diário de Notícias, a primeira edição reuniu 14 barracas com o intuito de movimentar o mercado e popularizar o acesso aos livros, já que as livrarias eram consideradas elitistas para o público. Com o slogan originário “Se o povo não vem à livraria, vamos levar a livraria ao povo”, deu-se início a primeira edição da Feira. Sendo assim, por que hoje o evento vai na contramão desse lema e não busca levar as livrarias de rua ao povo?

O jornalista Milton Ribeiro, atual proprietário da livraria Bamboletras, situada no Centro Comercial Nova Olaria, explica que há muita competição nas vendas, então poucos livreiros se aventuram no evento. “É uma feira que participam tanto livrarias quanto distribuidoras e editoras, que me repassam os livros. Se eu fico em uma barraca ao lado de uma distribuidora, que tem condições de fazer um desconto muito maior que o meu, acabo não vendendo”. Milton também conta que, assim que chegou à livraria em 2018, com pouca experiência no mercado, propôs à equipe de participarem, e todos o olharam espantados, pois sabiam das dificuldades que enfrentavam na Feira.

A Bamboletras é uma das livrarias mais tradicionais da capital, funcionando há 26 anos | Reprodução: Instagram

Para Gustavo Ventura, participante há mais de duas décadas da Feira do Livro e atual integrante da equipe da Bamboletras, mais livrarias compareceriam se o preço da barraca fosse menor. “O custo fixo de todos é muito igual, o que é um equívoco. Deveria haver essa contrapartida. Teve edições que choveu muito e foi ruim pra todo mundo, mas, pro livreiro, foi péssimo.” Gustavo justifica que as livrarias têm um ganho de 40% por livro vendido, enquanto as distribuidoras conseguem chegar a uma margem de lucro de até 50%. Também pontua que, além dos gastos com alimentação e transporte do grupo, o valor da montagem e da manutenção da infraestrutura necessária para o evento faz diferença na projeção final do rendimento das vendas. “Dois fins de semana de chuva talvez já não valesse a pena”, relata.

A Feira e o mercado editorial da cidade

Em 2019 — última edição totalmente presencial antes da pandemia –, aproximadamente 8 mil metros quadrados foram ocupados por 106 bancas divididas entre Área Geral, Área Internacional e Área Infantil. De acordo com os dados divulgados pelo site da Associação Nacional de Livrarias (ANL), 226.971 livros foram vendidos e mais de 1,3 milhão de pessoas compareceram nos 17 dias de evento, fechando dentro do valor de lucro previsto e confirmando o plano da diretoria de autossustentabilidade da Feira do Livro de Porto Alegre. Neste ano, a Feira foi realizada no formato híbrido, com algumas atividades ainda remotas. Embora esta edição tenha ocorrido com um número reduzido de expositores, houve um aumento proporcional de 15% nas vendas dos livros em relação a 2019, segundo as informações publicadas no portal de notícias da GZH.

André Günther, sócio da Livraria Taverna, localizada na Casa de Cultura Mario Quintana, salienta os impactos comerciais da Feira no setor livreiro. “Existem editoras que esperam o ano inteiro pelo evento, porque é um momento que faturam muito dinheiro.” Além disso, destaca as dificuldades que as livrarias independentes enfrentam há um tempo com a alta dos gigantes do e-commerce. “É um pouco preocupante que as livrarias não possam também se beneficiar desses ganhos. Para nós, é muito relevante, pois é um trabalho difícil. Cada vez estão fechando mais livrarias pelo país, então seria importante dar esse suporte”, desabafa. Ederson Lopes, também sócio da Taverna, analisa que, apesar de a Feira do Livro de Porto Alegre ter um aspecto muito local, parece não haver uma política voltada às livrarias da cidade.

Nessa perspectiva, ao andar pela Praça da Alfândega e perceber a falta de diversidade dos títulos nas bancas, Milton considera a Feira do Livro de Porto Alegre como “uma oferta nauseante dos mesmos livros” devido à falta dos livreiros e ao excesso de barracas com obras iguais como destaque. “Tem muita gente que vende livros como se fosse tijolo, sem a menor ideia do que estão vendendo”, diz. Milton acrescenta que, mesmo não participando do evento, suas vendas não são muito prejudicadas nessa época em razão do público que conhece a tradicional Bamboletras e seu “acervo bem administrado’’.

A Taverna oferece cursos, oficinas, saraus e diversas atividades literárias | Reprodução: Instagram

Em contrapartida, para a Taverna, fundada em 2014, novembro é o “mês do desespero”. Devido à rica programação da Feira, com a presença de escritores, lançamentos, sessões de autógrafos e palestras, toda a atenção é voltada para o evento com o intuito de atrair a população. André conta que é comum o acontecimento de atividades paralelas à Feira com a intenção de levar o público para a Livraria. “Devemos tentar nos colocar como parte desse acontecimento.” Ederson explica que o cliente da Taverna, geralmente, compra um ou dois livros por mês, e, na época da Feira, acaba adquirindo esses produtos no evento. “Não é tão grande o impacto, porque cria um ‘espírito de leitura’, então as pessoas ainda compram algum livro, mas a perda é substancial”, esclarece.

Visibilidade da Feira do Livro para as livrarias de rua e as vendas online

Por conquistar um grande número de visitantes ao longo das duas semanas, a Feira, na opinião de André, extrapola as fronteiras de quem não tem o hábito de frequentar uma livraria. Isso pode fazer com que mais pessoas conheçam a Taverna, que fica bem próxima à Praça da Alfândega. Ederson acredita que o povo da Região Metropolitana pode descobrir a Livraria, pois há uma boa quantidade de pessoas circulando na região. “Não sei se esse público que encontra o livro na praça vai retornar à Livraria, porque é um público muito espontâneo, que entra numa ‘febre coletiva’ e, mesmo não gostando de leitura, sente motivação para comprar livros. Vendemos online há mais de cinco anos, então, mesmo o pessoal que não vem pro Centro, pode comprar pelo site”, pressupõe.

Os sócios da Taverna contam que, entre os meses de março a novembro de 2020, o serviço pela internet foi seu único canal de atendimento e não trabalharam de forma presencial, porque conseguiram converter as vendas para essa alternativa. “A galera realmente apoiou, pediu entrega, tirou foto, e isso fez com que os amigos e outras pessoas ficassem sabendo. Rolou uma mobilização de quem curte, acompanha, consome esses espaços. Apoiaram e deram uma força num momento que estava todo mundo precisando”, lembra Ederson. Para eles, isso foi importante para não perderem as esperanças durante a pandemia.

A excepcional Feira do Livro online de 2020 contou com um número de vendedores reduzido, sendo quase a metade em relação ao ano anterior. Milton, da Bamboletras, menciona que decidiu participar da edição virtual para aproveitar a oportunidade das vendas pela internet, já que não exigiam a mesma infraestrutura que o evento presencial. Apesar de ter vendido abaixo do esperado, o livreiro comenta que houve um aumento nas compras pelo site naquele ano e ficou surpreendido com a quantidade de clientes que gostaram de receber os livros em casa. “Boa parte foi resultado do nosso trabalho anunciando nas redes sociais. Muita gente faz a compra pelo telefone e pede a entrega pelo ciclista”, informa.

A importância das livrarias independentes

“Damos visibilidade para pessoas LGBTQIA+, temos mais sensibilidade para pensar em outras minorias, para dar tanto espaço para livros como também acolher pessoas dentro da Livraria”, Ederson Lopes, sócio da Taverna

Para André, da Taverna, uma livraria de bairro nunca é igual a outra, o que sustenta uma bibliodiversidade. “Cada livreiro tem seu repertório, experiência de vida, traz um olhar diferente pra lá”, afirma. Além disso, considera indispensável a presença do livreiro, alguém que vai ouvir e entender os interesses do público no momento de indicar uma obra literária com base nas questões subjetivas e intelectuais, e não uma indicação por meio do uso de algoritmos, como ocorre nas vendas online. “O ser humano fazendo esse trabalho é muito importante na formação de leitores e na manutenção da produção da literatura, por recomendar autores novos, jovens e que às vezes não passam no radar dos grandes sites.” Também menciona que as livrarias são um importante ambiente social de reflexão. “Começamos a falar de livros e depois estamos em arte, política, é um espaço muito legal de troca.”

Ederson diz que a Taverna procura passar muito disso no seu atendimento. “Esse é o principal diferencial. Estamos sempre pensando no que a Livraria vai oferecer, o que também tem a ver com a gente. Damos visibilidade para pessoas LGBTQIA+, temos mais sensibilidade para pensar em outras minorias, para dar tanto espaço para livros como também acolher pessoas dentro da livraria”, ressalta.

É notório o valor das livrarias independentes para os leitores e para sociedade. Em tempos de desvalorização cultural, é importante apoiá-las para que o conhecimento se propague mais e esses lugares continuem vivos, mantendo suas histórias e acervos tão diversos.

--

--

Lucas Vidal
Pontos de Escuta

Estudante de Jornalismo na UFRGS. Fascinado pela rua e suas diferentes histórias. Também escrevo tweets. Gay. Ele/dele.