COMPORTAMENTO

Raízes reais

Abandonar processos químicos que alisam o cabelo se tornou uma possibilidade para muitas mulheres: a transição capilar surge como solução

Ester Bertozzi
Pontos de Escuta

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Foto: Rafaela Lima | Reprodução: Pexels

Em fevereiro de 2020, Maria Helena Magalhães, paulista de 21 anos, fez sua última escova progressiva. Em março, quando a pandemia contaminou o Brasil, seu cabelo não possuía uma ondulação sequer. “Me sentia no auge do liso perfeito”, conta. No mês de agosto, quando já estava na hora de telefonar ao salão, a estudante de Relações Públicas decidiu que os 10 anos de químicas chegariam ao fim. Seus cachos crescendo despertaram sua curiosidade, e a necessidade de isolamento social foi o empurrãozinho que faltava. Escolheu, pela terceira vez na vida, entrar em transição capilar mas, dessa vez, seria para valer.

A transição capilar é o processo realizado por quem já fez alisamentos químicos — como escova progressiva, definitiva, botox, relaxamento capilar — e quer voltar ao seu cabelo natural. Ela consiste na suspensão desses tratamentos até que sejam retiradas as partes alisadas através do big chop.

Ilustração: Cristiano Wraase

Alisar os cabelos pode ser considerado um consenso na sociedade brasileira, visto que essas madeixas são um sonho para muitas mulheres que não as possuem naturalmente: 51% da população é crespa ou cacheada, segundo pesquisa da Unilever. Além disso, a diversidade de texturas capilares no Brasil é terreno fértil para aqueles que trabalham com elas, como os cabeleireiros.

Rodrigo Araújo, que adota o nome Rodrigo Vizu nas redes sociais, é cabeleireiro e proprietário do Vizu Hair Club, em São Paulo. É reconhecido por todo o país pela sua excelência com cachos — sua agenda lota em segundos e recebe celebridades como a atriz Maisa Silva e a escritora Bruna Vieira. O especialista não vê necessidade de sair do Brasil para aprender sobre diferentes curvaturas. “A gente vai ensinar eles [estrangeiros] a lidar com todos os tipos de cabelo, porque a gente tem a maior quantidade de variedade de cabelos no mundo, inclusive na mesma cabeça”, explica.

Ilustração: Cristiano Wraase

A transição capilar dura mais para algumas do que para outras. Hoje, Maria Antonia Deziderio, baiana de 21 anos, explora as infinitas possibilidades que o cabelo natural proporciona. Exibe seu black power, usa tranças, extensões e até mesmo tintura. Mas, até poucos anos atrás, sua relação identitária capilar não era tão liberta assim. A estudante de Direito alisou o cabelo durante sete anos, desde os 10, e apenas em 2018 decidiu assumir o crespo.

Como o isolamento social não era necessário nessa época, Antonia não ficou em quarentena enquanto seu cabelo crescia, logo, seu processo capilar teve várias testemunhas. A ansiedade de ter as duas texturas a consumiu, então raspou a cabeça no início de sua transição, uma decisão ousada que trouxe um misto de sensações. De um lado, a liberdade ao observar seus cachos; do outro, o estranhamento. “Pra quem eu tô olhando no espelho?”, ela se perguntava. Na escola, ao exibir sua nova versão, as reações foram inúmeras: olhares surpresos de amigas que a elogiavam, seguidos de comentários pejorativos de terceiros. “Nossa, tá horrível. Virou um homem?”, era o que ela tinha de ouvir, como se um corte de cabelo apagasse sua feminilidade.

Em novembro de 2020, as duas texturas de Maria Helena já estavam bem aparentes | Foto: Arquivo pessoal

Já Maria Helena escolheu ser paciente: viveu por 17 meses com as duas texturas, desde que realizou o último alisamento até o big chop. Foi uma fase desafiadora, tanto para sua autoestima, que estava lá embaixo, quanto para sua saúde mental. “Já tinha histórico de ansiedade e depressão, então a insegurança que tinha triplicou”, desabafa a paulista. Foi uma fase na qual reviveu traumas e a volta à terapia se fez necessária. O fator cabelo, sem dúvida, foi um desencadeador.

Laynara Paiva é psicóloga em Brasília e viveu a transição na pele. “É um processo difícil esteticamente falando”, relata. Segundo ela, a passagem do liso para o cabelo cacheado é árdua e não deve ser romantizada. Outros sentimentos que invadem aquelas que estão em transição são a ansiedade de deixar o cabelo crescer e a incapacidade de concluí-la, adiciona a psicóloga. Por isso, a rede de apoio é importantíssima.

A psicóloga Laynara Paiva já passou pela transição capilar e hoje assume seus cachos | Foto: Arquivo pessoal

“Quando a gente pensa em rede de apoio, pensamos na família e nos amigos mais próximos, só que geralmente a gente joga a responsabilidade na mão dessas pessoas, e elas não vão ter empatia”, esclarece a terapeuta. Ela entende que há muita dor quando o apoio não é presente dentro de casa, mas que pode ser superada caso ele seja encontrado em vias alternativas.

O Facebook e o Youtube tornaram a transição de Maria Antonia menos solitária. Ela encontrou em comunidades virtuais um espaço para coletar informações e dividir angústias. “Eu passava horas vendo aquilo, era uma coisa surreal”, relembra. A web se tornou uma fuga para ela que, apesar de encontrar suporte nos amigos, se sentia rejeitada dentro de casa. A jovem conta que sua família achava que ela ficaria chamativa demais ao assumir o crespo, que seu cabelo não seria bonito, e faziam tais comentários o associando à sujeira.

Rodrigo Vizu compreende a relevância da democratização do conhecimento capilar e divulga dicas em seu Instagram. O especialista reconhece a responsabilidade parental para que os filhos aceitem seus cachos. “Você não tem culpa de não saber cuidar do cabelo da sua filha, mas você tem responsabilidade com isso”, explica, ao mencionar clientes brancas de cabelo liso, cujas filhas são negras, que se dedicam para que elas gostem dos cachos. “O impacto que isso vai ter no futuro da criança vai ser determinante para ela ter traumas ou não em relação à aparência dela”, conclui.

Além de comandar o próprio salão, Rodrigo ensina suas técnicas em cursos de formação de cabeleireiros | Foto: Arquivo pessoal

O peso da coroa

“O cabelo para a comunidade negra é uma coisa muito importante”, alega Maria Antonia. Ela o enxerga como uma constante lembrança de quem ela é e das coisas pelas quais passou. Como um lembrete de amor próprio. O processo até alcançar essa autoconfiança, no entanto, foi turbulento — principalmente por ter se passado num Colégio Militar.

A baiana conta que foi afetada, educacional e psicologicamente, porque ao mesmo tempo em que assumia o seu verdadeiro eu, estava se redescobrindo uma mulher preta. Durante o crescimento dos cachos, recebia notificações comportamentais porque seu cabelo estava com “aspecto bagunçado e fora do padrão”, mesmo que investisse horas para finalizá-lo. Por causa dessas reclamações, a escola pediu para que ela voltasse a alisar o cabelo. “Era racismo mesmo, não tem outra palavra”, denuncia.

Laynara observa que existe uma diferença no processo de transição capilar entre mulheres brancas e negras. “Para a mulher negra tem um peso a mais”, explica, ao frisar a relevância da questão histórica inerente. Ela também destaca como esse processo serve para a percepção da negritude, pois algumas pessoas só se reconhecem negras quando o cabelo cacheia. “Para uma pessoa negra assumir seu cabelo crespo, precisa de muita coragem, é você se declarando ativamente negro pra sociedade”, alega. A partir desse momento de sensação de honrar sua ancestralidade, você se torna passível de violência, mesmo que velada.

“Facilita tua vida: alisa”

Foi o que Maria Antonia escutou de uma funcionária da escola, antes dos 10 anos. A frase ecoou pela sua mente e foi concretizada no salão de beleza, onde alisou pela primeira vez. Sua mãe, de cabelos lisos, deu força à proposição, visto que pentear o cabelo crespo da filha diariamente era um ritual cruel. O que não era sabido, no entanto, era que a facilidade prometida estava atrelada a horas dolorosas numa cadeira de cabeleireiro.

“Pentear o cabelo era um ritual ruim, mas ir para o salão era 300 milhões de vezes pior”, assegura a jovem. Produtos quentes e desconhecidos no cabelo, olhos lacrimejando e odores fortes são a realidade para quem se submete a alisamentos. As consequências para Maria Antonia foram queda capilar, queimaduras na cabeça, cascões no couro cabeludo — e um liso dos sonhos. “É uma espécie de tortura”, adiciona.

Rodrigo entende que cada um é livre para usar o cabelo como quiser, mas é contra a escova progressiva. “Dependendo do princípio ativo, eles utilizam formol, que pode desencadear questões dermatológicas gravíssimas”, explica. Esse produto, inclusive, é proibido no uso de alisantes capilares pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), caracterizando infração sanitária e crime hediondo.

Tanto para Maria Antonia quanto para Maria Helena, uma combinação de fatores incentivou a urgência pelo liso: a falta de referências — não enxergavam ninguém com o cabelo como o delas –, a pressão estética, os comentários maldosos e os poucos produtos para cabelos cacheados. Segundo Rodrigo, o mercado dos cachos vem mudando, pois a demanda é imensa. “Há cerca de sete anos, tinham duas marcas que eu trabalhava.” Hoje, ele pode trabalhar com 10. No entanto, em relação aos cabeleireiros especializados, ele percebe que ainda há escassez. “O que mais tem é gente procurando profissional e não encontrando.”

Hoje, o liso está ficando para trás, e as universitárias exibem suas madeixas naturalmente enroladas. O estranhamento após o big chop deu espaço para a autoaceitação e para a autoconfiança, mostrando que, como afirma Laynara, liberdade de ser quem se é traz bem estar. “Tô muito feliz, porque eu me descobri”, Maria Helena conclui.

Para Maria Helena (à esquerda), a palavra que define sua transição capilar é descobrimento. Para Maria Antonia (à direita), é resiliência | Fotos: Arquivo pessoal

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Ester Bertozzi
Pontos de Escuta

Produtora da TV Band RS, jornalista em formação pela UFRGS