CARREIRAS

Roteiristas in(dependentes)

Em um país marcado pelo sucateamento do mercado cinematográfico, a paixão pelo cinema motiva milhares de aspirantes a roteiristas a se reunirem em busca do conhecimento e caminhos necessários para realizarem o sonho de escrever seus próprios filmes

Cadu Griebler
Pontos de Escuta

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Imagem: Patrick Fore/Unsplash

Em 1911, quando o italiano Ricciotto Canudo propôs em seu “Manifesto das Sete Artes” que o cinema fosse considerado como a sétima arte, talvez nem ele imaginasse as proporções que a reprodução de imagens em movimento tomaria pouco mais de 100 anos depois. O cinema se tornou um mercado gigantesco, onde filmes possuem orçamentos de centenas de milhões de dólares e suas bilheterias já não surpreendem ao ultrapassar a casa do bilhão. Todavia, apenas uma pequena parcela desse investimento e lucro é destinada a profissionais que — mais de uma vez — conseguiram parar essa indústria em greves para lutar por reconhecimento, os roteiristas.

Responsáveis por desenvolver as histórias em que serão empregados todos esses valores, os roteiristas acabam muitas vezes desvalorizados. Afinal, não são os rostos que ficam estampados nos pôsteres dos filmes, composto pelas estrelas da obra e acompanhados pela identidade dos produtores e do diretor. Sim, nomes consolidados raramente ainda beliscam algum destaque. A grande maioria, no entanto, é escondida em fontes pequenas junto a outros membros da produção e detalhes técnicos. Essa subestimação é ainda mais evidente em mercados menores no meio cinematográfico, como o Brasil, país capaz de propor o debate sobre democratização do acesso ao cinema no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ao mesmo tempo em que extinguiu o Ministério da Cultura e promoveu cortes à Agência Nacional do Cinema (Ancine).

Mesmo assim, em um cenário de sucesso improvável e desafiador, uma classe de brasileiros ainda sonha em se tornar roteirista. Seja pelo desejo de contar uma história ou até mesmo pelas altas cifras que rodeiam o setor em polos cinematográficos, existe uma determinação de milhares de indivíduos em busca do conhecimento necessário para transformar suas palavras em reconhecimento. Nesse contexto, entra também a história pessoal daquele que vos escreve, do dia em que conheci milhares como eu em um grupo que se propõe a ser um “catalisador de iniciativas e parcerias profícuas entre roteiristas profissionais e amadores”, o Roteiristas Independentes.

Roteiristas Independentes

Há cerca de quatro anos, estava decidido a cursar cinema. Foram algumas semanas de muita pesquisa, conversas e descobertas. Entre elas, um grupo do Facebook chamado Roteiristas Independentes. Criado em 2012, o grupo busca proporcionar o acesso ao conhecimento sobre as técnicas de escrita de roteiros e divulgar oportunidades para que todos possam se profissionalizar na área. Ou seja, são aspirantes e roteiristas brasileiros consolidados fazendo essa troca de conhecimento sobre a escrita de roteiros e como o mercado funciona. Lá, busquei ajuda enquanto observava novos membros que, assim como eu, não sabiam por onde começar ou enfrentavam adversidades como a conciliação com outras carreiras. Havia até integrantes de países como Angola e Moçambique, que viam no grupo uma oportunidade para crescimento profissional.

Quando me juntei à comunidade, já eram cerca de 15 mil membros. Quinze mil curiosos, interessados e dispostos a aprender e mostrar o que significava ser um roteirista. Hoje, o grupo está se aproximando dos 25 mil membros. Desses, pouco mais de 10 mil se mantêm ativos, seja com divulgação de oportunidades, publicação de roteiros para análise, ou em busca de sanar dúvidas. Embora seja um número que demonstra o interesse pela área, também evidencia que mais da metade — assim como eu — ficaram pelo caminho. Não foi a paixão pelo cinema que se esvaiu. Afinal, ainda assisto a centenas de filmes todos os anos e, no fundo, ainda persiste a vontade de escrever. Mesmo assim, quem passa pelo grupo parece entender parte da razão por trás do independentes que compõe o título.

“Procurando informações sobre a profissão, eu não encontrei outro roteirista. Eu encontrei 10 mil interessados em roteiro. E a gente vê roteiristas de níveis diferentes e segmentos, têm roteiristas de novela, roteiristas de publicidade, que se veem sozinhos em um mundo pouco valorizado”, relata o publicitário paulista Luiz Ofélio Dorini, 22 anos, membro do Roteiristas Independentes há quase sete. Segundo Luiz, o grupo agregou em seu desenvolvimento profissional por ser um espaço de debate e construção de opiniões sobre a realidade da função no Brasil. “Para ser roteirista, você tem que se comprometer a escrever fora do seu horário de trabalho normal. Às vezes deixa de fazer alguma coisa para escrever. É um trabalho muito de pesquisa e que demanda um tempo que quase não temos.”

Leonardo dos Santos, 20 anos, de Gravataí, na Região Metropolitana de Porto Alegre, ingressou no grupo em 2017, mas acabou escolhendo a carreira em Letras após encontrar dificuldades na escrita audiovisual. “O caminho até o primeiro roteiro, com o auxílio do pessoal do grupo e leituras, foi de muito aprendizado. Mas, a partir dali, para se colocar de vez no mercado e tornar o roteiro algo primordial em nossas vidas, acho que é um desafio que exige uma persistência que poucos têm. Não parecia a carreira mais segura no momento.” Essa busca por conta própria acontece com muitos outros que procuram adentrar no mercado da sétima arte, além de corroborar outro fato levantado por Leonardo, a falta de incentivos governamentais. “Muito do que se via de sucesso no grupo eram de pessoas premiadas em festivais pelo mundo, enquanto editais e premiações nacionais eram escassos ou superburocráticos. Acho que incentivos como a Lei Rouanet e outras oportunidades deveriam ser mais acessíveis à população. A maioria dos editais acabava limitando a participação a produtoras, que não possuem o costume de apostar em roteiristas iniciantes.”

Quando falamos de números, o panorama se torna ainda mais claro. No ano de 2019, antes do mercado audiovisual brasileiro sofrer com os efeitos da pandemia, o Brasil produziu um total de 167 filmes de acordo com a Ancine. Porém, ainda que essas obras representem 37% dos filmes exibidos nos cinemas do país, os filmes brasileiros conquistaram apenas 13,4% dos ingressos vendidos ao público. Isso demonstra que, além do interesse por longas-metragens nacionais ser baixo, as oportunidades para roteiristas iniciantes acabam sendo escassas, pois produtoras tendem a apostar em realizadores que já trazem algum lucro. Ou seja: não há espaço para erros no mercado audiovisual brasileiro, o que resulta no baixo índice de produtoras apostando em novos roteiristas.

Dessa forma, se constata uma barreira enorme para ingressar na carreira de roteirista no Brasil. E, como vimos, as dificuldades aparentam ser diversas, desde a falta de incentivo governamental e do próprio mercado, passando pelo processo de aprendizado até a disposição de tempo com a conciliação com outras profissões, principal fator que parece afastar os membros do sonho. “Meu objetivo sempre foi cinema. Eu acabei virando publicitário ao acaso, né? Essas coisas acontecem na vida. Chega uma idade que a sua família fala: eu quero um diploma. Não importa o quê”, comenta Luiz sobre sua jornada “dupla” na vida profissional e o tabu que o cinema como carreira ainda é para a maior parte da população.

A união faz a força?

Em visita ao Brasil em 2010, o professor estadunidense referência na escrita de roteiros Robert McKee atribuiu os problemas no mercado de roteiristas brasileiro à falta de um sindicato que promova sua união, como acontece nos Estados Unidos com a Associação de Escritores da América (Writers Guild of America). Porém, na última década, parece que o conselho de Robert se tornou realidade com o surgimento da Associação Brasileira de Autores Roteiristas (Abra), o mais perto que o Brasil tem hoje de um sindicato da profissão.

Segundo seu site oficial, a entidade tem como objetivo “representar, exercer e defender os direitos dos autores de roteiros e argumentos de obras audiovisuais de qualquer natureza, […], bem como aproximar os roteiristas de um modo geral’’. Nesse sentido, a Abra tenta consolidar a profissão ao criar uma tabela de valores de referência mínimos para a remuneração de autores roteiristas, buscar melhores condições de trabalho, além de estabelecer direitos e deveres para com a profissão. Para se associar, porém, existem exigências prévias que muitas vezes são difíceis de se alcançar sem o apoio e networking que o sindicato poderia trazer, demonstrando ainda mais a importância de espaços como o Roteiristas Independentes, que permitem desenvolvimentos profissionais como o do roteirista e diretor Rafael Peixoto, 45 anos, morador de Niterói, no Rio de Janeiro. “O primeiro filme que fechei (O Inferno de Cada Um) foi pelo Roteiristas Independentes”, conta Rafael, que considera o grupo essencial em sua carreira para além das questões de aprendizado, como conhecer membros que se tornariam parceiros, sócios e até amigos para o resto da vida. Em busca de ajudar novos roteiristas, Rafael também oferece workshops sobre a escrita de roteiros e serviços de consultoria para qualificar histórias já escritas, que o permitem identificar e conhecer potenciais roteiristas com quem possa trabalhar no futuro.

Dicas de um profissional

Para quem está disposto a atravessar essa jornada em busca de escrever seus próprios roteiros e se tornar um profissional da área, não existe melhor professor do que um roteirista consolidado como Rafael. O autor dos longas-metragens Os Lúminas e o Mistério das Nove Gargantas e Dois Barcos dá uma série de dicas.

Apesar de muitos julgarem não ser necessário e do próprio Rafael não ter feito, ele recomenda, se possível, começar a trajetória pela faculdade de cinema. Para ele, os conhecimentos técnicos do cinema, do seu eu profissional, seus gêneros preferidos e possibilidades são essenciais para começar a pensar em uma carreira como roteirista. Além disso, ele diz que a prática da escrita leva a uma qualificação natural do texto do roteirista. Rafael traz seu último roteiro, o longa-metragem A Casa da Rua 7, como exemplo. Nele, um texto inicial de 140 páginas passou por seis tratamentos até chegar a menos de uma centena, considerado o tamanho ideal pelo roteirista e demonstrando como escrever, reescrever e escrever mais um pouco é fundamental durante o processo de produção de um roteiro. Porém, o mais importante para Rafael é a participação em cursos e eventos. Apenas o networking possível através desses encontros, em conjunto com o aprendizado agregado de leituras e escritas quase que exaustivas, é o que difere um amador de um profissional — o tão sonhado roteirista independente.

Outra boa alternativa para aqueles que, mesmo em meio a dificuldades, tem o desejo de investir no sonho de se tornar roteirista é a participação em eventos de prestígio nacional e de fácil acesso, como o Frapa (Festival de Roteiro Audiovisual de Porto Alegre). O maior festival de roteiros da América Latina conta com concursos e rodadas de negócios com produtoras, o que pode representar uma chance única de apresentar obras a players importantes do mercado cinematográfico. Os prêmios do evento incluem valores em dinheiro, cursos e até mesmo encontros com executivos da Netflix. Além disso, os aspirantes ainda podem participar de mesas de debate, workshops, master classes para capacitação e aprimoramento profissional.

Seja com a união espontânea de milhares em um grupo do Facebook para a troca de aprendizado, por criar um sindicato que busque a qualificação da vida dos profissionais ou conciliando outras carreiras para lutar por uma participação em festivais em busca de reconhecimento, muitos roteiristas brasileiros demonstram grande perseverança em um cenário de pouca perspectiva. A luta da comunidade se faz presente até mesmo aos desistentes dessa carreira, que reconhecem o esforço daqueles que persistem e são gratos por uma jornada de aprendizado conjunto que os permitiu, ao menos, experimentar o que significa trabalhar com as palavras que fundamentam a sétima arte.

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