PANDEMIA

Vento na cara, máscara na boca: a bicicleta ocupa as ruas

Com a pandemia, o ciclismo se tornou opção para transporte individual, prática esportiva e geração de renda

Daniel Corrêa da Silva
Pontos de Escuta

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Foto: Murillo de Paula | Reprodução: Medium

De março de 2020 até hoje, muitos hábitos cultivados por anos tiveram de ser abandonados quase que da noite para o dia. Várias pessoas deixaram de trabalhar fora de casa ou foram demitidas e forçadas à informalidade. A frota de ônibus diminuiu, as academias fecharam e menos carros passaram a circular nas ruas. Com essa mudança de cenário, as bicicletas passaram a ser mais vistas pelas ruas. Entregadores, trabalhadores essenciais que nunca puderam ficar em casa ou mesmo pessoas que precisavam de uma forma segura de se exercitar e locomover as escolheram como modal.

Um sinal dessa mudança é visível no comércio especializado. Apesar da retração econômica, a Associação Brasileira do Setor de Bicicletas, Aliança Bike, registra que as vendas de bicicletas aumentaram 50% em 2020 em relação ao ano de 2019 e 34,17% no primeiro semestre de 2021 em relação ao mesmo período do ano anterior. Isso significa que a procura foi maior e não que o setor não sofreu com a crise econômica: a Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares (Abraciclo) registra que a produção no ano de 2020 foi 27,7% menor que a de 2019, antes da pandemia.

De acordo com a Abraciclo, um dos impedimentos para a expansão do setor é a falta de insumos. Por ser uma indústria que depende fortemente de peças importadas, principalmente vindas do mercado asiático, o principal obstáculo para uma melhora mais expressiva no mercado de equipamentos ciclísticos é a falta de suprimentos. As causas são múltiplas, mas as principais são a baixa expressividade na indústria brasileira, retração econômica global e a própria pandemia. A dificuldade também atinge o varejo na venda de peças individuais, mas o prognóstico é positivo: revendedores comentam que esta escassez está sendo solucionada com a melhora no mercado siderúrgico.

A rua é de todos, inclusive dos recém chegados

Karine Dalle Valle, de 32 anos e residente em Porto Alegre, é jornalista e nunca aprendeu a dirigir. Durante o período mais duro da pandemia, passou a pedalar todos os dias utilizando bicicletas compartilhadas, mas, quando conseguiu juntar dinheiro, tomou coragem de investir numa bike própria. Era um sonho antigo: apesar de saber andar de bicicleta desde criança, é a primeira vez que tem uma só sua. Hoje a bike é seu meio de transporte até o trabalho e também sua melhor amiga nos momentos de lazer.

Uma das imagens mais comuns evocadas pela bicicleta é a do brinquedo, do ciclismo como habilidade que se aprende na infância. Karine, por exemplo, só não teve uma bicicleta porque seus pais não tinham condições financeiras de comprar uma para ela. Mas o que fazer quando há o desejo de se aprender a pedalar depois de adulto? A Bike Anjo surgiu em 2010 durante as bicicletadas mensais de São Paulo como forma de conectar ciclistas que utilizam os mesmos trajetos a se sentirem mais seguros e motivados. Desde 2012 conta com um projeto que une quem pode ensinar a quem precisa aprender a pedalar, o chamado “apadrinhamento”. De acordo com os números de 2020, a Associação Bike Anjo conta com 8100 voluntários cadastrados em 822 cidades e está presente em 38 países. A associação acredita na bicicleta como ferramenta de transformação da cidade e também desenvolve trabalhos em defesa da mobilidade urbana e da celebração da diversidade racial e de gênero no meio ciclista.

Com a pandemia, as atividades presenciais foram paralisadas mas encontros virtuais que debatem o uso da bicicleta como modal mais seguro e visam ajudar novatos nunca deixaram de acontecer. A associação já recebe pedidos de apadrinhamento no seu site.

Individual ou coletivo? Por que não ambos?

Apesar de ser uma atividade física individual, o estilo de vida do biker é coletivo. Não sem motivo: o único modo de aprender a pedalar e a cuidar do próprio equipamento é através da prática, e as ruas não são amigáveis a quem adota esse meio de transporte para si. Ciclistas andam em bando para garantir a própria segurança. Alguém poderia descrevê-los como abelhas ao visualizar o número de indivíduos aumentar mais e mais a cada quadra nas ocasiões em que podem tomar as ruas para si. Dessa forma, o cicloativismo e a luta ativa pela melhoria na mobilidade urbana se tornam uma consequência desse caráter da atividade.

As lembranças do ataque contra o grupo cicloativista Massa Crítica, que completou 10 anos no dia 25 de fevereiro deste ano, ainda são frescas na memória de muitos porto-alegrenses. Ricardo Neis, que atropelou os ciclistas com seu carro, somente foi preso em 2020, mas à época o crime gerou comoção mundial e motivou a criação do Fórum Mundial da Bicicleta. O movimento se define como horizontal, autogestionado e gratuito e tem o objetivo de propor soluções para a mobilidade urbana. O evento ocorre desde 2012 no aniversário do atentado, a cada ano em uma cidade diferente, tendo a décima edição ocorrido em Rosário/Argentina, entre os dias 15 e 19 de setembro deste ano. No dia final, ocorreu a Bicicleteada Internacional de las Niñas, evento exclusivo para mulheres, meninas e gêneros dissidentes.

Este não é um movimento isolado. Na última década, o cicloativismo tem também abarcado lutas que a princípio não parecem vinculadas à causa da mobilidade urbana e da proteção ambiental, como causas antirracistas, feministas e de libertação LGBTQIA+. Assim como a abordagem interseccional passou a ser utilizada em outras áreas da vida moderna — da mídia que consumimos à nossa alimentação — também o modo como ciclistas se organizam tem influência de fatores como gênero, raça e classe. Mulheres e pessoas LGBTs comumente precisam estar em grandes números nas ruas para evitar assédio e violência, enquanto pessoas negras sofrem com racismo — como exemplificado no caso emblemático do jovem Matheus Ribeiro, que foi acusado de roubar a própria bicicleta em junho deste ano, no Rio de Janeiro. Sob essa justificativa, foram criados grupos que não incluem homens cisgêneros em seus encontros ou são formados apenas por pessoas negras.

“A bicicleta é muito pouco respeitada no trânsito e as ciclovias de Porto Alegre foram pensadas em cima dos carros e não dos ciclistas, o que é um grande erro.” Helena Dias, 30 anos, designer e participante de um cycle club de protagonismo feminino, o Trevosas Cycle Club. Ela considera a criação de grupos dentro do ciclismo uma forma fundamental de reafirmar a posição da bicicleta entre os outros meios de transporte. “É necessária a união entre os ciclistas para um posicionamento, para mostrar que nós existimos e que a bicicleta não é um veículo apenas para passeio.” Helena também observa o aumento no número de bicicletas desde o início da pandemia, e elenca como um dos motivos para isto a função dupla de exercício físico e meio de transporte.

O combustível é o alimento

Se para os usuários da bicicleta apenas enquanto veículo a união já é importante, para aqueles que trabalham com entregas unir-se é importante para evitar a precarização da classe.

O coletivo Puma Entregas é composto por cinco mulheres — Nicole Silva, Liége Disconzi, Carol Corso, Martina Cadorin e Pollyana Polito Gaio — e foi fundado em julho de 2020 — ou seja, durante a pandemia. Sua organização difere da rotina de cicloentregadores que utilizam aplicativos, pois não está submetida às restrições dos algoritmos ou hierarquias tradicionais entre patrão e empregados: é uma cooperativa de gestão coletiva em que todas trabalham como mensageiras e têm poder de decisão. Este modo de organização, segundo elas, as aproxima dos clientes e dá mais segurança às trabalhadoras. Mas não por isto a jornada é menos exaustiva: são 11 horas de trabalho por dia e na ocasião da milésima entrega, elas já totalizavam juntas 3670 quilômetros rodados.

Grande parte dos entregadores, no entanto, não trabalha desta forma. Uma pesquisa feita em 2019 pela Aliança Bike revelou que a maioria dos entregadores em São Paulo são homens, negros, têm entre 18 e 24 anos e não utilizam veículo próprio. Apesar de não haver dados concretos sobre a demografia da classe na capital gaúcha, uma visita aos tradicionais pontos de parada para cicloentregadores nos shoppings de Porto Alegre indicará perfil semelhante. Ou seja, a maioria dos entregadores trabalha para aplicativos e, na pandemia, esta se tornou uma alternativa para a própria sobrevivência.

Com o endividamento da população, a alta da gasolina e encarecimento de outros insumos necessários para conduzir um automóvel, a tendência de migração para modais mais econômicos continua em alta. A Tembici, empresa de compartilhamento de bicicletas, reporta um crescimento de mais de 66% entre janeiro e agosto com relação ao ano anterior, e estima um total de 12 milhões de deslocamentos com bicicletas realizados no país em 2021. A tendência pode ser vista nas ruas, mas não nas obras municipais: desde a inauguração da primeira ciclovia de Porto Alegre, há quase 10 anos, as metas de entregas relacionadas a vias para ciclistas nunca foram cumpridas. A popularização do uso da bicicleta já é uma realidade, mas a segurança é uma reclamação de usuários ainda é um empecilho para que muitos optem por esta alternativa de modal.

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