Democracia Cristã

Definições e Desafios

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6 min readOct 19, 2016

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por Luís Pedro Mateus

De forma recorrente no contexto partidário do CDS e da JP nos deparamos com a acepção de que, no campo ideológico, ambos perfilham a Democracia Cristã. Esta, sem dúvida a principal das vertentes ideológicas presentes aquando da fundação do CDS em 1974, não obstante de ter passado por um profundo processo de reflexão e debate à luz dos desafios da altura, hoje em dia parece ter assumido mais um papel de fundo, de referencial passado e de difícil definição que deverá obrigatoriamente competir a um Gabinete de Estudos contrariar.

O acervo académico da Democracia Cristã em Portugal é, já de si, de difícil persecução e divulgação. O Centro Académico de Democracia Cristã (CADC) que foi fundado em 1901 por estudantes católicos de Coimbra como resposta ao ambiente crescentemente hostil em relação ao cristianismo e à Igreja (característico do fanatismo do laicismo intolerante da altura), desmantelado em 1910 com a implantação do regime Republicano e de regresso à sua actividade em 1912, acaba por, posteriormente, no contexto de crescente oposição ao Estado Novo, cessar a sua actividade desde 1971 até 2001, deixando a Democracia Cristã orfã de um centro que a estudasse e reflectisse à luz das questões que foram marcando as diferentes décadas. Nesse aspecto, e à excepção do breve Partido do Centro Católico dos conturbados tempos da 1ª República, nunca existiu em Portugal até 1974, claramente, um movimento político que se considerasse emanado da Democracia Cristã. Os casos do sidonismo e mesmo o Estado Novo, desde logo pela profunda natureza anti-democrática dos mesmos, deixam muitas dúvidas em aberto sempre que se os tenta aproximar de um claro pensamento democrata cristão apesar de, na sua génese, terem em comum tanto o CADC como o Centro Católico.

A Democracia Cristã assumidamente perfilhada pelo CDS, na dificuldade intrínseca de traçar uma herança política portuguesa particular, quer por ordem de quebra de continuidade com o Centro Católico, quer pelo profundo estigma deixado pelo regime salazarista, acaba por ser produto de uma inspiração das então democracias cristãs europeias aglomeradas na União Europeia de Democratas Cristãos. Não é por acaso que em pleno contexto de revolução, e derivado das ligações de Salazar, enquanto jovem, ao CADC e ao Centro Católico, o posicionamento do CDS na base da democracia cristã se torna chama piloto para que as forças da extrema esquerda tentem banir o partido etiquetando-o como salazarista, fascista e reaccionário.

Entretanto o partido sobreviveu.

Instituiu-se como oposição ideológica ao socialismo radical e à social-democracia e solidificou-se como solução governativa em diferentes legislaturas.
Como o leitor já deve ter constatado, é muito difícil começar a falar da democracia cristã sem se recorrer a exemplos concretos de partidos, movimentos, instituições ou pessoas como forma de exemplificar o posicionamento democrata cristão em determinada época ou em determinado assunto. Tal não é coincidência. A democracia cristã é, de facto, e ao contrário de uma grande parte das ideologias mais conhecidas, muito mais complicada de definir com precisão. Não é fácil encontrar um filósofo ou economista de renome cuja obra a defina e marque de uma forma tão cabal e absoluta como outras ideologias. Existe um grande espaço de interpretação e maleabilidade de medidas concretas dentro da democracia cristã, precisamente por a mesma, e seus executantes, nunca a terem encarado de um modo científico.
Apesar de existirem personalidades responsáveis por ajudar a definir o pensamento e acção da democracia cristã em diferentes alturas, como o são o Papa Leão XIII, Jacques Maritain, Konrad Adenauer ou Helmut Kohl, as diferenças entre eles são tão manifestas que ilustram na perfeição o problema em se definir, a nível de algumas políticas muito concretas, o que postulará a democracia cristã.

No entanto, isto não significa que não existam princípios ideológicos base que a definam. Muito pelo contrário. Dos valores comuns à democracia cristã europeia pode-se salientar:

O direito inalienável à Vida, protegida desde a concepção até à morte natural e isenta de uma sujeição a livre arbítrio;
O pressuposto da Família como célula fundamental e definidora da sociedade, decorrente de um vínculo entre um homem e uma mulher e sustentada na natureza humana, anterior ao Estado e, portanto, independente do mesmo;
A Propriedade Privada e a Livre Iniciativa como realizações e aspirações do indivíduo que são colocados ao serviço da sociedade;
O Trabalho como uma dimensão fundamental do indivíduo, uma obrigação para consigo, para com a família, a sociedade e a nação;
A Solidariedade Social, onde ao Estado competirá actuar como regulador e dissuasor de potencial discriminação em áreas como a saúde e a segurança social;
A Ética como guia de toda a acção individual ou colectiva na política e inspirada no humanismo personalista, com vista à defesa do bem comum num profundo espírito de serviço público.

Pode-se portanto constar que, de uma forma resumida, a democracia cristã se define claramente por um certo conservadorismo social, sendo mais difícil de a posicionar no espectro económico. Ou seja, se é relativamente pacífico aproximar em diversas questões, a nível de política social, a democracia cristã com um conservadorismo característico da direita, já a nível económico é mais complicado porque variável. Geralmente, a democracia cristã é bem mais centrista em aspectos de política económica, querendo isto dizer que se encontrará mais ou menos a meio termo entre a social-democracia de inspiração keynesiana e o liberalismo de inspiração hayekiana, podendo oscilar para um lado ou para o outro consoante a questão, pessoa ou período concreto. Por isso mesmo se costuma rotular os políticos democratas cristãos, acima de tudo, como pragmáticos.

Do ponto de vista característico de grande parte dos democratas cristãos, os modelos teóricos económicos puros são extremamente duvidosos quanto à sua exequibilidade no mundo real, onde um sem número de variáveis implicam que em determinados contextos o Estado não deva obstruir o normal funcionamento do mercado, mas noutros já possa ter um papel regulador e interventivo se em nome duma quebra de posições dominantes e abusadoras que, em última instância, prejudiquem o bem comum.

É por isso muito complicado definir ad hoc, em termos económicos, qual o papel que o Estado deve assumir numa governação de inspiração democrata cristã. No entanto, e ao contrário de inspirações macroeconómicas socialistas, onde se parte do pressuposto que compete primeiramente ao Estado a promoção do investimento e papel como motor do crescimento económico, a democracia cristã privilegia preferencialmente a livre iniciativa privada e um Estado com a presença estritamente necessária para proteger o indivíduo de perversões que possam ocorrer do funcionamento do livre mercado. Além do mais, existe uma razoável concepção do Estado bem gerido que mantenha as contas públicas em ordem e onde o valor da solidariedade intergeracional tem um papel preponderante na maneira como se encara o investimento e o endividamento público, que acabam por fazer o pensamento económico democrata cristão pender para uma concepção mais liberal da economia. Nesta escola, os partidos democratas cristãos do norte e centro da europa são um exemplo fiel e de onde surgem (principalmente da CDU alemã) diversos textos estruturantes sobre a concepção da economia de mercado que vão desde textos de índole bastante geral até papers muito concretos, por exemplo contra a fixação estatal de preços artificiais.

Em Portugal, a identidade do CDS nestes aspectos tem sido bastante semelhante ao da batuta europeia. No entanto, onde sempre tem surgido, de tempo a tempo, alguns pontos de divergência entre partidos democratas cristãos europeus é em matéria de política europeia onde existe ainda, dentro de diversos partidos, uma corrente euro-céptica bastante acentuada. O CDS, na devida altura já foi declaradamente euro-céptico, e cujo preço a pagar foi a desvinculação do Partido Popular Europeu. Aqui, de facto, há muito caminho para trilhar no pensamento democrata cristão, desde logo pelo pragmatismo inerente ao mesmo e que força — principalmente de uma aguda crise institucional europeia — a constantemente reavaliar posições. Até agora, a posição dominante tem sido a da concepção alemã, que domina completamente o Partido Popular Europeu. No entanto, não podem passar despercebidas as recentes movimentações da CSU (partido irmão da CDU para a Baviera) que, em aspecto de política europeia, tem divergido do partido nacional. De igual forma, os partidos democratas cristãos da Holanda e da escandinávia são muito mais cuidadosos e menos entusiastas com os modelos europeus em experimentação, onde os princípios e valores de subsidiariedade e de soberania têm servido como ponto de partida para interrogações profundas sobre o futuro da União Europeia.

Neste último aspecto, tem faltado em Portugal, e no CDS em particular, uma discussão profunda sobre política europeia. Hoje em dia, falar de democracia cristã e pensar a democracia cristã implicará, em nome do pragmatismo da ideologia, uma definição premente das concepções europeias que possam resolver a crise instalada ao mesmo tempo que se tem em conta a coerência com os valores que sustentam a ideologia.

Em Portugal e no CDS, por responsabilidade acrescida advinda da urgência em sair do estado de protectorado o mais rapidamente possível, quanto mais cedo se quebrar o tabu de pensar em política europeia — desde a sua concepção monetária até à meramente institucional — mais cedo se caminhará em direcção a uma nova definição da democracia cristã que, como a realidade se tem encarregado de provar, está na ordem imperativa do dia.

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