Liberais e Conservadores

Harmonia e complementaridade

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8 min readOct 19, 2016

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por Rui Albuquerque

Tenho-me interrogado, ao longo dos anos, se a separação entre liberais e conservadores se justifica, e se eles não podem viver em harmonia e mesmo até numa plena complementaridade de princípios, ideias e valores. Por palavras distintas, a questão é a seguinte: ser liberal impede que se seja conservador e ser conservador exclui que se seja liberal? A minha resposta a esta questão, no fim de contas a mesma, vista embora por dois ângulos distintos, é inequívoca: um liberal nos princípios e nos fundamentos tem que ser politicamente conservador, enquanto que um verdadeiro conservador não poderá deixar de ser um liberal. Tentarei demonstrar, neste artigo, esta minha convicção.

Antes de mais, há alguns equívocos muito antigos e que estão na origem da dissensão, que convém afastar. O primeiro é histórico, e remonta à velha zanga entre whigs e tories do tempo de Gladstone e Disraeli. Na realidade, os dois políticos ingleses da segunda metade do século XIX marcaram, cada um à sua maneira, os então partidos liberal e conservador do seu país. Gladstone foi efetivamente um liberal clássico na política e um dos poucos governantes na história do mundo que aplicou no governo os valores da liberdade em que verdadeiramente acreditava. Ele aboliu a maior parte dos impostos e das taxas que vigoravam na Inglaterra do seu tempo (calcula-se que extinguiu cerca de 95%), abriu as fronteiras do seu país ao comércio internacional, pugnou pela arbitragem nos conflitos de interesses entre os estados em oposição à guerra, e acreditava piamente na ética da responsabilidade individual como cimento construtor de uma ordem social pacífica. Em contrapartida, o líder do partido tory e seu rival de sempre, Benjamin Disraeli, quando primeiro-ministro foi protecionista no comércio internacional, aumentou impostos, criou legislação trabalhista abundante, podendo ser considerado o verdadeiro pai fundador do estado social inglês, provavelmente de toda a Europa. Essa divisão então vincada entre liberais (whigs) e conservadores (tories) marcou profundamente a separação de águas entre as duas famílias políticas, e manteve-se até hoje no espírito de muitos autores conservadores e liberais, ao ponto de Hayek costumar qualificar-se a si próprio como um liberal à “velha maneira whig”, remetendo essa definição para o partido whig do tempo de William Gladstone, em contraponto ao espírito conservador e protecionista dos tories de então.

Essa separação profunda de águas já não se justifica nos dias de hoje, e deixou mesmo de fazer qualquer sentido, a partir do fim do primeiro quartel do século XX, com o quase total desaparecimento do Partido Liberal inglês, e a posterior criação do Labour, em 1900, que imediatamente se identificou com o socialismo e o estatismo, e que, acompanhando as tendências da época, acabou por atrair a preferência dos eleitores, substituindo-se aos liberais na oposição ao Partido Conservador. Muitos liberais ingleses voltaram, assim, à casa que fora também sua antes do abandono de Gladstone (que tinha sido dirigente do Partido Conservador, pelo qual chegou a exercer cargos ministeriais no governo de Inglaterra) provocado pela profunda antipatia que ele tinha por Disraeli e pela sua política. E, em boa verdade, a melhor tradição liberal inglesa reencontrou-se nos tories, protagonizada por líderes como Churchill, Thatcher e agora com Cameron, que assentou toda a sua recente campanha eleitoral nos princípios do governo limitado, da responsabilidade individual e da redução da tributação. O aparente renascimento dos LibDem, ainda que seja muito questionável que sejam os herdeiros do espírito whig do passado, acabou por transformar-se numa coligação natural de governo com os conservadores, até agora, pelo que se sabe, a caminhar muito bem.

Outro equívoco igualmente importante, este da responsabilidade dos liberais, resulta da crítica de Hayek editada em jeito de posfácio (Por que não sou conservador) ao seu livro The Constitution of Liberty [A Constituição da Liberdade]. Nesse texto, Hayek dizia afastar-se do conservadorismo essencialmente nos seguintes três aspectos que, segundo ele, caracterizavam os conservadores: em primeiro lugar, o receio da mudança e a tendência que os conservadores manifestam para manterem tudo como está (“A mudança é cansativa”, já escrevia Oakeshott…); depois, a “paixão pela autoridade e na sua falta de compreensão das forças económicas”; e, por último, a hostilidade que eles demonstram em relação ao “internacionalismo”, e o decorrente nacionalismo excessivo que os caracteriza em conseqüência dessa aversão ao que é “de fora”. Hoje em dia, a maior parte destas críticas cai por terra, desde logo, se atendermos às políticas seguidas nos governos dos três líderes políticos conservadores mais marcantes da segunda metade do século XX: Reagan, Thatcher e Aznar. Qualquer um deles defendeu a liberdade econômica, o comércio internacional, a globalização, e todos contribuíram para mudar o status quo socialista dos seus países e mesmo até da ordem política mundial. Deles poder-se-á dizer muita coisa, mas nunca que tenham sido complacentes ou passivos com as situações políticas que herdaram. A aversão à mudança esteve muito longe de qualquer um dos três.

Um terceiro e último equívoco que tem separado conservadores e liberais, este da inteira responsabilidade dos primeiros, reside na convicção de que o liberalismo é filho da Revolução Francesa e, por isso, que é revolucionário, jacobino e anticlerical. Este grave equívoco, muito provocado pela influência do pensamento revolucionário francês no equivocamente designado “liberalismo” político europeu continental de oitocentos, foi responsável pelo afastamento de muitos conservadores europeus do liberalismo, que preferiram assim aproximar-se de forças políticas conservadoras, como a democracia-cristã, mais próximas de ideais socializantes e intervencionistas do que propriamente da idéia da liberdade e da responsabilidade individual. Seria fastidioso reproduzir aqui, em contraponto a esta convicção, a lista dos liberais clássicos que foram profundamente crentes, muitos deles católicos como Lord Acton e Edmund Burke, ou até mesmo o nosso (português) Alexandre Herculano, que apesar do seu violento anticlericalismo, não desmerece figurar nessa lista, embora muitos outros pudessem ser citados. A questão religiosa que opôs “liberais” aos crentes, sobretudo aos católicos, nalguns países da Europa Continental nos séculos XIX e XX, nada tem a ver com o liberalismo clássico, tão pouco com qualquer idéia de liberdade, e foi resultado da influência revolucionária francesa sobre as mentalidades da época. O liberalismo clássico não é revolucionário, não toma qualquer atitude anticlerical, e rejeita mesmo a idéia revolucionária como forma de transformação da sociedade, contestando os princípios filosóficos do racionalismo cartesiano sobre que ela em boa medida se sustenta. É, aliás, na forma como o liberalismo concebe a ordem social e os processos admissíveis da sua transformação que se encontra, a nosso ver, a principal convergência teórica atual com o conservadorismo.

Na verdade, os conservadores temem a mudança política porque, como bem diz Oakeshott, a função do governo não é a de “sonhar”, mas a de “governar”. Ou seja, o governo não deve ser um agente de transformação política que projete as convicções ideológicas dos seus titulares, na medida em que isso faria dele um protagonista social, isto é, um agente portador de uma visão de sociedade, eventualmente até majoritária numa certa circunstância temporal, mas que seria sempre passageira e somente representativa de uma parte e não do todo social. Nessa medida, a função do governo, segundo um conservador como Oakeshott, consiste em amainar as paixões políticas dos homens, de si mesmas já muito exaltadas, não “atiçando os fogos do desejo, mas abafando-os”. Por outras palavras, o governo deve ser um árbitro da liberdade individual e não um protagonista politicamente vinculado a uma ideologia, um fator de pacificação social em vez de um “instrumento de paixão”. Acresce que, segundo Oakeshott, “a única forma adequada de governar é estabelecer e aplicar regras de conduta”: o governo não deverá preocupar-se “com pessoas concretas, mas com atividades, e apenas à sua propensão de colidirem com as outras”; não deve utilizar a soberania para a imposição, ainda que democraticamente sufragada, de um modelo de sociedade, aquilo a que designou de “desígnio amplo” da política dos governos atuais. Não estamos, por conseguinte, muito distantes do que Hayek considerava ser também a função ordenadora do governo e do direito, quando falava nas “regras de justa conduta” com caráter geral e abstrato. Para todos os efeitos, quer os conservadores quer os liberais, pelo menos nas abordagens dos dois autores referidos, entendem que a função social do governo não consiste em intervir em situações particulares, das quais não tem efetivo conhecimento nem domínio de todos os aspectos relevantes, mas criar as condições necessárias e suficientes para o exercício da liberdade individual. Estamos, assim, no domínio do estado mínimo, que não desagrada propriamente aos liberais.

Se não subsistem, como vimos, impedimentos impossíveis de serem dirimidos entre liberais e conservadores acerca da natureza e das funções do governo, há que convir igualmente que os conservadores têm sido, nos últimos anos, muito sensíveis à teoria econômica liberal, concretamente à sua defesa da propriedade, da liberdade de comércio e do minimalismo intervencionista estatal. Em contrapartida, têm os liberais muito a aprender com a visão pessimista, ou melhor, realista, que os conservadores têm do gênero humano e da política. Esta pode facultar-lhes, a meu ver, um plus de análise política da qual muitas vezes se costumam inadvertidamente distanciar e que muita falta lhes faz.

Na verdade, a convicção liberal de que as sociedades humanas não são teatros permanentes de guerra hobbesiana e que a cooperação e a sociabilidade são naturais aos homens, não exclui a dimensão política da vida humana, nomeadamente a ambição do poder e a permanente luta pela conquista do domínio que a soberania faculta. Mais ainda: a análise liberal do comportamento humano em sociedade remete muitas vezes para segundo plano, quando não ignora, a função do domínio político e a importância do seu aparelho monopolista que é o estado, na verdade o verdadeiro inimigo da liberdade. É certo que os liberais descrevem a dinâmica natural das sociedades humanas, mas a existência do liberalismo só tem justificação na medida em que nessa dinâmica passou a interferir um corpo estranho, um intermediário entre a ação individual que é o estado constituído pelos seus órgãos executivos de governo e de administração. Por outro lado, a História ensina-nos que a presença do político, da soberania, por outras palavras, do estado, é imanente às sociedades humanas, seja qual for o estágio da sua evolução, ou as latitudes que analisemos. A análise liberal não pode prescindir dela, ou melhor, só se justifica pela sua existência, já que sem política as ameaças à liberdade não nasceriam da soberania.

Ora, a isto os conservadores respondem com uma análise realista do poder político. Segundo eles, a política não se justifica nas cores com que os políticos pintam os cenários floreados das suas propostas, mas apenas na pura e dura ambição pelo poder, a sua conquista e manutenção a qualquer preço. Ainda que esta regra comporte exceções e que admitamos existirem políticos verdadeiramente sérios nas suas intenções, nada garante que da transformação das suas convicções em políticas governativas possam resultar benefícios para os indivíduos e para a sociedade. Por conseguinte, conservadores como Oakeshott defendem, e muito bem, que o governo não serve para realizar os “ideais” dos políticos que o conquistam, mas apenas e só para “governar”, no sentido acima descrito desta palavra.

O pensamento liberal terá, então, assinaláveis vantagens em aproximar-se do realismo político conservador. O conhecimento do inimigo, de resto a primeira regra da política, apenas o beneficiará quando procurar cumprir a sua principal finalidade, que é a de aumentar ao máximo possível a liberdade individual perante o estado que quase sempre se esforça por diminuí-la.

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