Dia 15 de setembro de 2018, a popstar Namie Amuro se aposentou de sua carreira na música.

O despertar do sonho de Namie Amuro

Uma breve recapitulação do começo ao fim de um ícone do J-Pop

Vinicius Mendes
p o p k l o r e
Published in
6 min readSep 17, 2018

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Era uma vez, em um período obscuro e selvagem chamado Anos 90, na longínqua terra do Japão, um produtor musical chamado Tetsuya Komuro, ou T.K.. Este músico introduziu a música dance no mercado mainstream nipônico e é reconhecido como o mais bem sucedido produtor da história do país, praticamente definindo a sonoridade radiofônica daquele povo durante toda uma década e vendendo música a rodo com sua “Família T.K.”.

Uma das artistas de tal família era a idol Namie Amuro, uma jovem garota vinda das periféricas ilhas okinawanas, com um visual que desafiava os padrões estéticos vigentes. Além disso, Namie era uma performer, dançava como pop stars americanos e se propunha a ter uma imagem abertamente sexy, apesar de bastante higienizada, algo completamente diferente do esperado para um artista japonês.

Namie Amuro em performance do hit “Body Feels Exit”, em 1996

Como toda boa idol, Namie enquanto pessoa era um mistério, sendo revelado sobre ela apenas as narrativas controladas pela agência que administrava sua carreira. Isso deu a T.K. e ao resto da equipe a possibilidade de projetar praticamente qualquer imagem que se fizesse interessante naquele momento, e desta forma criaram um ícone cultural, incluindo a música lançada por uma mulher mais vendida da história do Japão: Can You Celebrate?

“Can You Celebrate?”, de 1997, é até os dias de hoje o single feminino mais vendido da história no Japão

Graças a esse período, não é exagero falar que é possível dividir as artistas femininas japonesas em antes e depois de Namie.

Do sonho ao pesadelo

Infelizmente, a imagem perfeitamente controlada das celebridades, um conceito levado a níveis bem mais extremos do que os nossos quando se trata de um idol, não refletem de fato a realidade, e Namie passou por duas grandes provações públicas: Primeiro, em 1997, engravidou do dançarino Sam da banda TRF, ainda solteira, um escândalo para a sociedade machista japonesa até os dias de hoje. Casou, provavelmente obrigada, mas a relação não durou muito mais do que isso e culminou em longas batalhas judiciais de guarda.

Segundo, em 1999, sua mãe fora assassinada a machadadas pelo ex-cunhado, que acabou por se suicidar na sequência. Os escândalos, os problemas na vida pessoal, o desgaste da imagem pública, as novas tendências de mercado, tudo isso levou a cantora a ter uma grande queda de vendas, considerada ultrapassada perto de gigantes que produziam sua arte de forma mais pessoal, como Ayumi Hamasaki, Hikaru Utada e Shiina Ringo.

Os sonhos obscuros de uma bad girl

Ainda na virada da década, enquanto arrumava sua vida pessoal e aproveitando a liberdade que o sucesso lhe rendera, Namie tomou a ousada decisão de ocidentalizar e sexualizar cada vez mais sua imagem. Se aproximou mais do R&B e do hip-hop, gêneros que estavam garantindo seu lugar cativo no mainstream global, e, da idol com carisma misterioso, passou a exibir uma fachada fria, lida como “descolada” pelo público. As coreografias ficaram mais complexas, a dança ocupou maior lugar na performance, as vendas caiam, mas os shows continuaram vendendo.

“Put’Em Up”, de 2003, mostra Namie Amuro com uma imagem mais sexy e uma sonoridade mais ocidental

Descartada por parte do público como uma piada que não tinha percebido que sua hora acabara, seguiu produzindo naquela estética que se aproximava mais de seus ídolos, como Janet Jackson e Mariah Carey. Eventualmente as quedas de um projeto para o outro foram parando, os anos 2000 mostraram uma maior abertura para mulheres agressivas e sexuais no J-Pop, músicas como WANT ME, WANT ME causaram sua dose de polêmica, mas, dessa vez, aquele tipo de polêmica que vende e, apesar de não estar mais no topo do mercado, já não era mais comentada como carta fora do baralho. Baby Don’t Cry, de 2007, talvez possa ser considerado o primeiro hit blockbuster pós-queda de sua popularidade.

“WANT ME, WANT ME”, de 2005, gerou polêmica pela letra sexualmente explícita
“Baby Don’t Cry”, de 2007, catapultou Amuro novamente para o centro das atenções

Cada vez mais fundo no mundo dos sonhos

Capa de BEST FICTION, de 2008.

No final dos anos 2000, como alguém que nunca deixou de ser visto como um ícone de estilo, Namie realizou uma parceria com a internacionalmente conhecida Vidal Sassoon, uma série de músicas e clipes inspirados nos anos 60, 70 e 80, com direito a samples de faixas icônicas de cada período. A jogada de marketing se mostrou extremamente bem sucedida, e Namie finalmente voltou ao primeiro escalão do pop japonês, com a coletânea BEST FICTION (“Melhor Ficção”), com uma capa descaradamente photoshopada, que já deixava claro que nada sendo colocado a disposição do público era a realidade, se tornando um dos dez álbuns mais vendidos de 2008.

O projeto “60s70s80s”, parceria blockbuster com a Vidal Sassoon, de 2008
Em “Do Me More”, de 2008, somos convidados a adentrar nos mundos dos sonhos com Namie
Capa de “PAST<FUTURE”, de 2009

No próximo projeto, PAST<FUTURE, o melhor de toda sua carreira em minha opinião, o pau da barraca foi chutado em nome da experimentação em uma mistura contagiante, sexy e criativa de música eletrônica, hip-hop e R&B. Essa fase foi o mais próximo que cheguei de me considerar um fã e ainda considero esse trabalho a maior testemunha do enorme potencial de Namie enquanto artista, seja na música, no conceito ou até na incrível capa do projeto, mostrando coragem de passar por cima das obras consolidadas ao seguir em frente. O futuro era promissor e eu estava super animado.

Em “Dr.”, de 2009, Namie mostra disposição para experimentar

Sonhos confortáveis de uma noite tranquila

“Heaven”, de 2013, mostra um mergulho no mundo das farofas básicas

Depois de 20 anos no mercado e passando por um grande arco de ascensão, queda e nova ascensão, a garota que trabalhou desde o começo da adolescência para se tornar uma estrela mostrava seus sinais de cansaço. Não que tivesse aberto mão, por exemplo, de seus shows onde dançava interruptamente por praticamente duas horas seguidas, ou que não tenha lançado música, mas é a fase em que, na minha opinião foram lançados seus trabalhos mais desinteressantes.

Esteticamente, se aproximou cada vez mais do que vinha sendo produzido no Top 40 das rádios americanas, abraçando o EDM farofão com vontade. Os conceitos visuais baseados em fantasia iniciados no BEST FICTION se mantinham, mas as letras pouco a pouco passaram a focar mais e mais em sua imagem enquanto uma beldade, provocando, a meu ver, um grande esvaziamento de conteúdo. Não que eu ache que todo artista pop tenha que trabalhar temas profundos e complexos em sua obra — pelo amor de Deus, eu sou fã da Ivete Sangalo! — , mas sua obra foi ficando aos poucos cada vez mais burocrática, tendo alguns bons momentos aqui e acolá.

“Mint”, de 2015, é daquelas faixas que apenas Namie Amuro poderia ter lançado

Hora de acordar: finalmente um doce caminho de volta à realidade

Ao iniciar a comemoração de seus 25 anos de carreira, Namie Amuro anunciou que também estava a ponto de se aposentar. Uma nova coletânea com regravações e uma turnê pela Ásia, ambos batizados de Finally, seriam o encerramento de sua longa carreira, especialmente ao se considerar que os anos passam para as idols em um ritmo mais acelerado do que passam para cachorros.

Não fiquei surpreso, dado o nome do projeto (cuja faixa-título termina literalmente dizendo que finalmente ela pode parar de sonhar) quando revelou que a vontade de se aposentar já era forte cinco anos atrás, quando celebrou sua segunda década na indústria, e que os últimos cinco anos foram calculados a partir do que se sabia que funcionaria em vendas e rádio.

Divulgação de “Finally”, último álbum da artista

Seria fácil enxergar Namie Amuro como alguém que se manteve a contra-gosto no mercado apenas pelo dinheiro, uma acusação grave em um mundo que enxerga artistas como seres de luz que produzem por amor à arte, mas também é fácil de ignorar que quando essa mulher entrou para o mercado, não passava de uma criança, que deve sob seus ombros mais responsabilidade do que deveria e possivelmente sem fazer a mínima ideia de onde estava se enfiando.

Teaser do DVD da última turnê de Namie Amuro

Como eu já disse antes nesse texto, nunca me considerei um fã dela, tendo sempre preferido o approach mais personalista e esteticamente ousado de Ayumi Hamasaki e Hikaru Utada, mas o impacto que Namie teve na construção do pop asiático como o conhecemos, assim como a coragem necessária para sobreviver a um drama familiar devastador não podem ser negados.

Com a aposentadoria de Namie Amuro, que ocorreu neste domingo, no mesmo ano da aposentadoria de Tetsuya Komuro, uma era do J-pop morre, e agora só nos resta viver o luto. Mas ainda acho que não custava para um dos maiores ícones da música asiática organizar uma despedida menos protocolar. Ainda assim, depois de 25 anos vivendo nossos sonhos enquanto público, é natural que não veja a hora de passar a ter sonhos próprios.

Boa sorte na realidade, Namie, espero que esta lhe traga toda a felicidade tranquila que você sempre desejou.

Compilação de performances de Namie Amuro editada por fã

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