Quando a doçura de Ariana Grande me fez pagar a língua

Se a Bíblia ordena que os cristãos sejam o sal da terra, o Deus mulher do disco “Sweetener” nos convida a ser o adoçante

Vinicius Mendes
p o p k l o r e
6 min readAug 23, 2018

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Imagem promocional do álbum Sweetener, onde Ariana Grande flerta com o onírico para expressar seu apelo por um mundo mais doce (Foto: Divulgação)

Apesar de ter uma ou outra música legal e uma voz imensa, eu sempre subestimei Ariana Grande, a sub-Mariah Carey que eventualmente virou mais uma das meninas da programação infantil da TV a lançar músicas feitas para atingir o Top 40 das paradas. Assisti ao clipe de no tears left to cry de curioso, um jeito de não me alienar completamente dos xófens, e a música foi parafusada no meu cérebro desde então, além do belíssimo vídeo. Quando God is a woman saiu, mais uma vez fiquei maravilhado com o que vi.

Não seria a primeira artista pós-adolescente a brincar com meus sentimentos e depois rir das minhas esperanças. Ainda assim, fiquei ansioso para ouvir o Sweetener. Seria eu convertido em fã ou, mais uma vez, minhas ilusões voltariam para chutar minha bunda? Vejamos a seguir!

Capa de “Sweetener”, quarto álbum de Ariana Grande, sendo o adoçante de um mundo de ponta-cabeça (Foto: Reprodução)

Deliciosos doces estranhos

O álbum abre com raindrops (an angel cried), versão da música A Angel Cried, do The Four Seasons, em acapella com reverb nos vocais, dando ao mesmo tempo um gostinho da capacidade vocal da cantora e o tom do que virá pelas próximas 14 faixas: pop bem produzido, com vocais elegantes, precisos e muita doçura.

Logo em seguida, vem a deliciosa blazed, dueto com Pharrel Williams, que produziu boa parte do trabalho, seguindo na direção que o produtor vem tomando desde o final dos anos 2000, uma visão atualizada do funk e do dance americanos dos anos 1970. Polarizante, the light is coming foi a primeira música promocional e também a primeira das faixas onde Ariana pega uma direção mais ousada, apesar de começar com um verso protocolar da onipresente Nicki Minaj. Aqui é revelado o estado de mente (ta dun ts) da artista durante a produção deste trabalho, ao misturar a repetição de um sample de viral do YouTube com um bordão, também repetido, que vem pra deixar claro que esse não é um álbum sobre momentos ruins, mas sobre como sobreviver a eles. Nessa polarização, estou firmemente entre os que gostaram.

“The light is coming to give back everything the darkness stole”

R.E.M., um dos vários momentos românticos do disco, chamou atenção na internet ao identificarem elementos de uma demo previamente descartada por Beyoncé. Ao se ouvir a faixa com isso em mente, é fácil visualizá-la no meio de qualquer um dos três últimos álbuns de B. A produção tem uma leveza onírica e delicada e o vazamento só serve para deixar o mundo melhor ao oferecer duas versões tão boas dessa música. Obrigado, Ari e Bey.

Demo descartada por Beyoncé que mais tarde deu origem a “R.E.M.”

Divina doçura feminina

God is a woman é uma musica sexy e delicada, com um “quê” de sublime religioso. Esse território da mistura do divino com o erotismo é basicamente o que definiria Madonna como artista — e se você pensa que é viagem da minha cabeça, que sou daqueles fãs que acha que todo mundo copia a veterana, fique sabendo: é ela quem dá voz a Deus no belíssimo clipe da faixa. A memorável apresentação no VMA 2018 também é fácil algo que ela teria feito nos anos 1990.

No sexy clipe de God is a woman, Ariana une o divino a representações variadas da genitália feminina

A faixa título, sweetener, reforça o objetivo de Ariana com esse trabalho depois de passar por uns últimos anos pesadíssimos, indo de perdas pessoais ao terrível atentado terrorista em Manchester ao fim de seu show. Partindo da expressão popular “se a vida lhe der limões, faça limonada”, inspiração também para o título do maravilho blockbuster de Beyoncé, Grande declara: se a vida se tornou salgada e amarga, seja o adoçante. A música é animada, otimista e leve, com uma letra de duplo sentido, juntando ao mesmo tempo os três temas centrais da obra: a liberação sexual, o romance e o otimismo como ferramenta para enfrentar os momentos difíceis.

Suavizando o amargor da vida

everytime e breathin são algumas das poucas músicas que lidam com temas mais negativos. A primeira, com um relacionamento ruim, lembrando algo que, vejam só, Mariah Carey teria feito nos anos 2000, com direito a uma dose do exibicionismo vocal que todos sabemos Ariana ser capaz de mostrar, mas ter evitado até aqui. Já a seguinte lida com as crises de ansiedade da cantora, com Ariana se lembrando de continuar a respirar nos momentos ruins.

Alguns críticos enxergaram nessa faixa referência ao seu estado emocional da cantora pós ataque de Manchester. Mas como já foi dito várias vezes no álbum até aqui, isso não é um trabalho sobre sofrimento, e sim sobre como lidar com ele. E ninguém melhor no mundo para entregar um refrão grudento que eleva qualquer ânimo do que o rei do pop, Max Martin. Com começo melancólico, no tears left to cry explode em um hino de superação com aqueles refrãos que dão vontade de cantar gritando. Excelente escolha de single principal.

O clipe da principal faixa de divulgação do álbum é uma super produção que faz referencia a M. C. Escher.

borderline logo se inicia com uma batida mais agressiva e animada e Ariana cantando em um registro anda mais delicado e suave que o seu normal. É uma música sexy, dançante, que logo me remete a Janet Jackson, enquanto a letra me lembra Milkshake de Kelis, só que nesse caso o tesão foi tanto que nem deu tempo de bater o sorvete com leite. Missy Eliott arremata a faixa com versos que talvez tenham sido breves demais. Ainda assim, mais um excelente momento.

A mesma pessoa, só mais doce

A partir daqui, as faixas ficam mais próximas do que a cantora normalmente já faz: se em poucas faixas atrás Ariana reclamava do relacionamento tóxico, na introspectiva better off ela já sabe que tá melhor sozinha, em um momento musicalmente mais seguro, com as batidas do pop contemporâneo acompanhadas de cordas. Mas a solidão não dura muito, essa menina é volúvel e já tá lutando de novo contra outra paixão em goodnight n go, onde também descarrega o arsenal de notas altas que economizou até agora.

Em pete davidson temos uma curta, mas doce declaração de amor ao noivo, quase um interlúdio, e se Sweetener começa com Ariana chorando, aqui ela declara que não vai mais chorar. A balada get well soon, a música com a produção mais tradicional do álbum, com piano, estalados de dedo e harmonizações vocais, serve para acabar nosso processo de adoçamento.

Faz mal? Engorda?

Apesar de eu ter reconhecido muitas influências de outras artistas, em um álbum que foi divulgado com uma música declarando o gênero feminino de Deus, essas influências parecem mais homenagens a parte do Olimpo feminino da música pop do que falta de direção, como parecia no começo da carreira. Não importa se lembra Beyoncé, Madonna, Mariah, Janet, aqui é Ariana, porra!

A performance de God is a woman no VMA 2018 gerou comparações com performances clássicas de Madonna na premiação

Um álbum maduro, sexy, delicado e ousado. Este trabalho nos mostra que Ariana sobreviveu ao pop adolescente e está preparada para se tornar adulta em frente aos nossos olhos. Crescer é provavelmente a coisa mais difícil que um popstar que começou na infância tem a fazer e a grande maioria deles nunca consegue. Ariana, por outro lado, passou por coisas muito piores e nada disso a parou. No final das contas, a moral da história é que não importa mesmo se o sabor da vida vai te forçar a fazer uma careta de tão ruim, graças ao Sweetener de Ariana Grande, temos aquela dose de doçura para sobreviver ao dia.

Ariana Grande me fez pagar a língua e este é melhor álbum americano de pop de 2018 até agora.

Ouça “Sweetener, de Ariana Grande:

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