Música e o silêncio com Ayumi Hamasaki

“TROUBLE” é carta aberta sobre como a cantora e compositora japonesa enfrenta o fato de estar ficando surda

Vinicius Mendes
p o p k l o r e
5 min readAug 18, 2018

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Detalhe da capa do álbum (ou EP): mão posicionada estrategicamente em seu ouvido esquerdo, o primeiro a perder totalmente sua capacidade auditiva, em 2007 (Foto: Kazuyoshi Shimomura / Divulgação)

TROUBLE é o novo álbum de Ayumi Hamasaki, o primeiro a ser lançado depois de dois anos sem um novo projeto, tempo normal para outros artistas, mas uma eternidade para Ayu. Também é a primeira vez que lança um projeto musical no ano em que comemora seus 20 anos de carreira, iniciada em 1998 no Japão.

O álbum, que pela quantidade de faixas convence mais como EP, foi divulgado principalmente pela internet, com alguns trechinhos no Instagram aqui, algumas demos misteriosas no Spotify acolá, e pequenas dicas de como seriam as músicas, jogando um grande quebra-cabeças em escala mundial pelo meio digital. Inicialmente, foram anunciadas duas capas para o projeto, além de uma terceira para um box especial com registro das duas versões da turnê nacional que Ayu fez entre 2017 e 2018.

As duas capas básicas e a capa do box especial (Fotos: Reprodução)

Os fãs ficaram decepcionados ao perceber que teríamos apenas cinco músicas, duas dessas lançadas anteriormente e já conhecidas (We are the QUEENS e WORDS), assim como se incomodaram com a sonoridade segura, mas teria TROUBLE algo mais a oferecer? Vamos a um faixa-a-faixa:

1. We are the QUEENS

O álbum abre com a faixa promocional do (horrível) jogo para dispositivos móveis Clash Of Queens. Temos aqui uma mistura de hard rock, batidas eletrônicas, sons épicos e tudo mais o que compõe esteticamente as anisongs contemporâneas. A letra faz referencias a se unir e lutar pelo que ama em um cenário de fantasia medieval. É uma farofona cafona? É. Vai fazer até o mais machão dos machões berrar “SIM, NÓS SOMOS AS RAINHAS!” no começo do refrão? Com certeza.

2. æternal

Se você conhece uma balada de tempo médio que Ayu lançou a partir de 2006, você conhece essa música. fairyland, BLUE BIRD, blossom, Summer Diary? Essa é a linha seguida aqui, com os sinos de vento sintéticos, as batidas eletrônicas leves e as guitarras de pop-rock. Ayu revelou em entrevista ao programa Music Fair que a decisão pelo “æ” no título vem por parecer dois “a”s opostos um ao outro, o que a deu a ideia de dualidade. Na letra, sobre viver o luto de um fim de relacionamento e seguir em frente, contrariando todas as músicas de verão similares, pela primeira vez a compositora diz que finalmente virou adulta.

3. WORDS

Lançada anteriormente de forma exclusiva para o fã-clube, tema do segundo capítulo da turnê Just the beginning -20-, WORDS é a balada de tempo médio pop-rock típica de Ayu e, mais uma vez, um som que o ouvinte de longa data já está mais do que acostumado a ouvir. A letra fala sobre as pressões que ela, a maior popstar do Japão, quiçá da Ásia, durante os anos 2000, sofre em relação às expectativas do público e da carreira. Uma música sobre o medo do amanhecer, uma figura de linguagem recorrente na discografia, pelo medo do que a aguarda no dia seguinte.

4. W

Apesar da grande pressão para manter um som inovador depois de 20 anos na indústria, lançando praticamente um álbum por ano, as faixas onde Ayu experimenta mais também tendem a ser àquelas recebidas de maneira mais negativa por seu público. W mistura rock, eletrônica, vocoder e lembra Shiina Ringo ao falar de uma mulher que se prepara para a guerra ao se arrumar para sair, usando seus atributos femininos e a forma como os homens a subestimam para manipulá-los. Parece estranho no contexto brasileiro, mas faz sentido em uma sociedade onde o papel feminino é muito bem delimitado e restrito, como no Japão.

5. The way I am

Mais uma vez, uma balada de tempo médio pop-rock padrão, que recebeu um arranjo a capella infinitamente superior em uma performance de divulgação. Mas não se engane, antes de ser uma musicista, Ayu é uma contadora de histórias e a peça central de toda sua música é a letra, e não raro, o musicalmente mais inócuo é seu veículo para as letras mais pessoais.

Afetada por uma surdez crescente desde o começo da carreira, Ayu, uma cantora que ganha a vida produzindo música, está na iminência de perder completamente a audição. Como alguém que escreve, consigo imaginar quão desesperador seria perder a visão, e ainda assim não é igual porque é possível ler escrever sem enxergar, mas não é possível ouvir música sem audição. Em tom melancólico, Ayu jura em The way I am continuar a cantar enquanto houver gente disposta a ouvi-la, pedindo para que ninguém continue a acompanhá-la por pena, liberando os descontentes com sua direção para apenas virarem as costas para o que vem fazendo.

Luz e sombras

Ayu, durante parada em Okinawa do terceiro capítulo do show Just the beginning -20-: o registro da apresentação está contido em um dos DVDs do box de “TROUBLE” (Foto: Masayuki Kamo / Divulgação)

Seguindo a sequência de faixas, TROUBLE é um álbum sobre uma mulher forte que se vê forçada a encarar suas fraquezas em um golpe impiedoso da vida, disposta a continuar até o fim, por mais triste que esse final seja. Ayu é forte, está disposta a por sua armadura e seguir em frente, mesmo sabendo que tudo acabará em breve. Ou não.

Uma das sacadas do lançamento foi visão alternativa do álbum. É normal na indústria musical japonesa que várias versões do mesmo produto sejam lançadas, como forma de inflar as vendas contando com fãs fanáticos e colecionadores, nem sempre isso vem acompanhado realmente de novo conteúdo. Em cada versão de TROUBLE, temos a a playlist invertida, uma com a sequência apresentada no faixa-a-faixa, e outra, começando em The way I am e terminando em We are the QUEENS.

Trailer promocional do lançamento de “TROUBLE”

A primeira tem como capa uma Ayu tensa, com a mão no ouvido que está aos poucos falhando. Na segunda, gargalhando descontraída. Na primeira, o disco é preto, na segunda, branco. Pode parecer pouco, mas a ordem alternativa muda completamente a sensação do disco, de um lamento para um grito de guerra.

Se antes tínhamos alguém no topo no mundo levando golpes da vida, disposta a avançar apesar das feridas, aqui temos alguém que sobreviveu a cada uma das feridas e vai lutar até o final. Vai vencer, afinal, “SIM, ELA É A RAINHA”, e vai mandar um dragão morder a bunda de quem quer que fique em seu caminho.

Apesar de todas as dificuldades, TROUBLE coloca um sorriso no meu rosto quando percebo que, em qualquer ordem, na otimista ou na pessimista, a conclusão é apenas uma: não tem para onde mais seguir, a não ser para frente.

Obs: Como a gente não fala japonês e você provavelmente também não, nos títulos das faixas tem links para traduções em inglês.

Ouça “TROUBLE” no Spotify:

Ordem 1:

Ordem 2:

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