Valesca Popozuda: pra fora da Gaiola e de volta pra dentro

Como a rainha do funk de putaria foi abraçada pelo mainstream para depois ser obrigada a fugir dele

Vinicius Mendes
p o p k l o r e
5 min readMar 8, 2019

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Em seu novo EP, Valesca volta a cantar putaria (Imagem: Reprodução/YouTube)

Aviso: Não dá pra discutir Valesca Popozuda sem falar palavrão. Se você não gosta, nem comece a ler.

Vinda do funk carioca raiz, aquele que corre sem o aparato das grandes gravadoras, feito de forma independente, Valesca Popozuda foi ganhando notoriedade como vocalista do grupo Gaiola das Popozudas, ao cantar as putarias mais escabrosas em tom debochado. Sou especialmente admirador dessa fase da artista. As músicas hiper-sexualizadas têm algo de surreal de tão explícitas.

Mesmo as mais pesadas tematicamente, como “Agora Que Sou Puta” — a história de uma mulher que passa a se prostituir para sair de um casamento com um agressor — , não só têm uma construção bem particular da ideia do empoderamento feminino, uma que deixaria algumas linhas do feminismo arrepiadas de pavor, como contém na interpretação da Valesca um humor implícito.

Ela não é aquela mulher que vai sair da violência como vítima, mas mostrando o dedo do meio para o agressor e saindo de costas em um moonwalking, porque é o que aquela uma figura patética e ridícula merece.

Valesca Popozuda incorpora uma mulher que virou prostituta para se sustentar e largar o marido agressor

Pra fora da Gaiola

A irreverência de Valesca logo chamou atenção dos humoristas do finado Comédia MTV, como Dani Calabresa, Marcelo Adnet, Tatá Werneck e Bento Ribeiro. E mulher inteligente que é, sabia exatamente onde estava se enfiando.

As chances de pegar uma cantora de funk com o repertório de putaria absurda e transformar em piada para adolescente moderninho de classe média, afinal MTV é um canal pago na maior parte do país, eram enormes, mas, em partes por bom senso dos comediantes, que não parecem ser pessoas horríveis, mas em partes ainda maiores pela irreverência de Valesca, éramos convidados a rir com ela e não dela. Era parte integral da piada e estava ali se divertindo com os próprios absurdos, com sua imagem pública e com o choque que causava.

Valesca em uma de suas diversas participações no Comédia MTV

Esse traço do deboche de Valesca rendeu uma comparação com Rita Lee feita pelo André Luiz, e de fato, não consigo pensar em qualquer outra cantora brasileira que um nível de irreverência parecido ao das duas.

O tempo passou, Anitta cravou o funk carioca de vez como um dos definidores da identidade do pop nacional nos anos 2010 junto ao sertanejo, veio Beijinho no Ombro, e pela primeira vez, Valesca realmente transicionou para o mainstream. Beijinho no Ombro foi um dos maiores hits de 2014 e Valesca se apresentou em praticamente todo programa da Globo com espaço para música ao vivo. A funkeira debochada ensaiou virar diva pop, mas não foi isso o que aconteceu.

Com Beijinho no Ombro, Valesca foi oficialmente apresentada ao mainstream

A cara e o popozão do feminismo pop

No que, acredito eu, foi um cálculo errado, voltou sua imagem para os moderninhos do ativismo de Facebook. De diva pop para ícone feminista! Coluna em jornal! Clipes lacradores! Mas o sucesso de Beijinho no Ombro não foi repetido por nenhum de seus singles. Até aí normal, a maioria dos artistas não vai ter nem uma música desse tamanho, quiçá duas. Ainda assim, pouco a pouco, Valesca foi perdendo espaço no mainstream.

Voltou sua produção para o público de “mulheres empoderadas” e LGBTs que tem nojinho de pop e, não raro, elegem um personagem periférico para ser a face do movimento, mas só enquanto se comportar como a caricatura da periferia marginalizada e idealizada. Ao primeiro sinal de humanização, o que quase sempre vem nas contradições inevitáveis da vida, esse público gasta tanta energia para destruir o artista quanto gastou para levantá-lo.

Valesca “está cancelada” por defender que um amigo gay apoie Bolsonaro, não por ela gostar do presidente (e nós também não gostamos), porque até campanha contra fez bem antes disso ser cobrado pelo público, mas porque defender que as pessoas sejam livres para acreditar no que quiserem sem passar por linchamento virtual é a postura minimamente decente que todo ser humano civilizado deveria ter. A mulher que se tornou quem se tornou pela imagem de mulher favelada bem resolvida e livre se tornou refém de universitários moralistas de classe média e alta.

Valesca defendendo o maquiador Agustin Fernandez, apoiador de Bolsonaro

De castigo na Gaiola

Cancelada ou não, Valesca lançou recentemente o EP De Volta Pra Gaiola, onde volta a cantar putaria. São quatro músicas tão explícitas quanto as que cantava na época do Gaiola, com arranjos em consonância ao que tem sido feito no popfunk por Anitta, Kevinho, Ludmilla e Nego do Borel. O resultado musical não é ruim, mas falta o senso de humor que destacou Valesca das demais no passado.

Não acho que alguém realmente acreditou por muito tempo que a artista era uma máquina de sexo como aparece em sua obra, mas isso não justifica cantar sobre uma suruba de forma tão entediada quanto acontece em Festa na Baru, por exemplo, e Catarro de Porra, que parece simplesmente um exercício de escatologia gratuito. Não parece em qualquer momento que Valesca esteja se divertindo o mínimo que seja nessas duas músicas.

Gozada Fraca já carrega na letra aquele deboche pelo qual Valesca me conquistou no começo da carreira, mas, de novo, nem um pingo de malandragem na voz — que está bem melhor do que já foi, sejamos justos.

O grande destaque acaba sendo Meu Cu é Teu. Com um arranjo que referencia o tecnobrega e Valesca cantando, com direito a todos os duplos sentidos e tom debochado de seus clássicos, que fará sexo anal com o parceiro como prova de amor.

Em Meu Cú É Teu, Valesca mostra a irreverência dos templos da Gaiola

Aproveitando o carnaval, também foi lançada uma versão especial do EP, CarnaValesca: De Volta Pra Gaiola. Catarro de P, assim mesmo, censurando o palavrão, virou uma daquelas marchinhas carnavalescas de jovem saudosista que tem saudades do que não viveu, com uns elementos eletrônicos, inferior à original. Gozada Fraca consegue a proeza de estar desafinada em versão de estúdio, mas aqui Valesca canta com vontade e dá para imaginar pessoas em coro bêbadas acompanhando a música, tão desafinadas quanto, a plenos pulmões no final do bloquinho, quando a folia e o álcool já baniram qualquer inibição.

Meu Cú É Teu virou um sambinha que não deixa de lembrar o clássico Mama, gravado com o saudoso Mr. Catra. Tal qual Gozada Fraca, a falta de polimento dá maior sensação de espontaneidade e a faixa funciona. Encerrando, uma música nova, Vem Facin, no lugar da pavorosa Festa na Baru. Valesca cantando um funk dançante e irreverente com instrumentos de sopro que resultam num arranjo realmente interessante. Cheia de deboche, sem cantar nenhum palavrão, acaba por entregar a melhor faixa do lançamento de Carnaval.

Putaria e desejo

Nada contra os palavrões, por sinal, mas fica a sensação de que De Volta Pra Gaiola colocou Valesca cantando putaria na crença de que foi a falta disso que afastou o público, mas eu acredito que essa leitura é um erro. É legal ouvir Valesca cantando que deu o cu de cabeça para baixo em uma festa em que a champanhe fez a buceta dela piscar, mas só quando ela se diverte com isso. Porque, sinceramente, ninguém quer ir em uma suruba triste.

Ouça “De Volta pra Gaiola”, de Valesca Popozuda:

Ouça também “CarnaValesca: De Volta pra Gaiola”:

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