Sim, mentalidade de produto pode salvar o jornalismo. Seis razões pelas quais veículos de mídia precisam de pessoas que tenham visão de produto
Este texto é a tradução do ‘Yes, Product Thinking Can Save Journalism. Six Reasons Why News Media Need Product Thinkers’, escrito por Rich Gordon para o Knight Lab. Este texto é o último de uma série sobre mentalidade de produto na redação. Rich Gordon é diretor de Digital Innovation da Medill School of Journalism, da Northwestern University.
A série do Knight Lab sobre mentalidade de produto em veículos de mídia começou com uma pergunta: “O jornalismo mudou e está em crise. A mentalidade de produto pode ser uma tábua de salvação? ” Depois de mais de 25 anos no jornalismo digital — e como editor desta série — acho que a resposta é sim.
Na verdade, eu iria mais longe. A mentalidade de produto é a mais importante a ser adotada pelas empresas de mídia hoje. Especialmente para os veículos de imprensa, o pensamento de produto é a melhor maneira –senão a única– de garantir que você pode alcançar e engajar as pessoas, além de construir um futuro sustentável.
Aqui estão seis razões pelas quais as organizações de mídia precisam de pessoas que pensem no produto –e uma cultura de pensamento de produto.
1. Os jornalistas estão aprendendo que posts, sites e aplicativos são, na verdade, produtos.
Quando comecei a ensinar desenvolvimento de produtos de mídia na Medill School, na Northwestern University, dizia aos meus alunos que não me sentia à vontade para chamar um jornal de “produto”. Isso porque, para mim, jornais –e jornalismo– eram minha carreira, minha vocação e minha paixão. Chamar um jornal ou site de um produto, de alguma forma, parecia equipará-los a coisas mais corriqueiras, como macarrão com queijo.
O nome “Desenvolvimento de produtos de mídia” parecia sem brilho e sem ambições para um curso. É por isso que, quando lançamos um programa de mestrado com foco nessa área, recomendei que o chamássemos de “Inovação de mídia”.
Aos poucos, mas com constância, porém, “produto” está se tornando o termo aceito para uma área de conhecimento emergente essencial nas empresas de mídia e jornalismo. A primeira conferência para pensadores de produto no jornalismo, “SRCCON: Product”, foi realizada em fevereiro de 2020. E há uma organização totalmente nova, a News Product Alliance, que está se tornando o ponto de encontro para as pessoas que fazem esse trabalho.
E convenhamos: um site, uma newsletter ou um app são produtos. Os usuários precisam decidir se vão usá-los dentro de um número infinito de opções. Cada produto de mídia compete com todos os outros produtos de mídia –e muitas outras distrações– pelo tempo e atenção das pessoas.
Como criar um produto de sucesso? Você precisa: 1) entender as necessidades das pessoas, 2) encontrar maneiras de atendê-las de formas que os concorrentes ainda não estejam fazendo, 3) fazer com que as pessoas conheçam seu produto, 4) entregá-lo –e fazer tudo isso enquanto descobre um jeito de fazer com que o produto gere mais dinheiro do que o custo que se tem ao desenvolvê-lo.
Neste ponto, é como macarrão com queijo mesmo. Um produto de mídia só terá sucesso se atender às necessidades das pessoas, entregar valor e for lucrativo. Portanto, precisamos nos orgulhar do desenvolvimento de produtos de mídia e descobrir como fazer isso bem.
2. O pensamento de produto não é novo para o jornalismo. Na verdade, é o que os inovadores sempre fizeram.
Quando comecei a trabalhar em redações de jornais no final dos anos 1970, era fácil pensar que nosso trabalho se limitava a escrever reportagens, contar histórias e desenhar páginas. Não precisávamos pensar no produto; nosso trabalho era apenas voltado para o conteúdo.
Mas isso acontecia porque os jornais eram uma indústria totalmente madura até então –o jornal como produto vinha sendo aperfeiçoado ao longo de dois séculos. Mesmo em cidades diferentes, ao comparar jornais, eles tinham muito mais semelhanças do que diferenças. E seu modelo de negócio também estava maduro: uma vez por dia, era preciso imprimir o jornal, distribuí-lo ao máximo de casas/pessoas (e com o valor da assinatura o mais baixo possível) e ver o dinheiro entrar com anunciantes que não tinham maneira melhor de propagandear suas mensagens ao seu público.
Se você voltar a épocas diferentes na história da mídia, verá que a mentalidade do produto foi como os produtos de mídia de sucesso foram inventados. Veja exemplos da história da mídia norte-americana:
- Benjamin Franklin lançou um folhetim de enorme sucesso no tempo em que os EUA ainda eram colônia da Inglaterra. Chamava-se Poor Richard’s Almanack (o Almanaque do pobre Richard, em livre tradução) e reunia conteúdo de tradicional de folhetim (previsão do tempo, dicas para a manutenção da casa, caça-palavras) com textos mais espirituosos e autorais. A revista foi uma das mais vendidas no período colonial dos EUA.
- Na Nova York dos anos 1830, Benjamin Day, Horace Greeley e James Gordon Bennett fundaram a “penny press” (“jornal do centavo”, em livre tradução, em referência ao valor cobrado pelas publicações). O trio se aproveitou de uma tecnologia que havia então sido desenvolvida, impressoras mais rápidas e mais baratas, para estabelecer um modelo de negócio que perdurou nos EUA por mais de 150 anos: cobrar um centavo pelo jornal do consumidor final, mas gerar a maior parte da receita com publicidade.
- No século 20, pioneiros do mundo editorial como John H. Johnson (Ebony), Helen Gurley Brown (Cosmopolitan) e Jann Wenner (Rolling Stone) criaram revistas e empresas prósperas com base em uma premissa: havia leitores com necessidades específicas de conteúdo que a mídia ainda não servia e empresas interessadas em fazer propaganda para estes públicos.
Várias vezes nos deparamos com empreendedores que descobriram necessidades não atendidas de um público e criaram produtos de mídia bem sucedidos com modelo de negócio viável. Em um momento em que o jornalismo enfrenta ameaças e oportunidades, precisamos de pessoas que considerem o bom jornalismo importante e possam descobrir como fazer produtos de mídia interessantes e financeiramente sustentáveis.
3. Na era do jornalismo de massa, a mentalidade de produto não precisava fazer parte do jornalismo. Na era digital precisa.
Ao começar no jornalismo no início dos anos 1980, uma das coisas de que eu mais gostava no meu trabalho era que eu podia ser um jovem idealista. Escrevia minhas matérias pelo dever de informar as pessoas e não precisava nem tomar conhecimento da parte do negócio, que envolvia vender anúncios ou assinaturas e ganhar dinheiro. Achava ótimo que houvesse essa “muralha da China” entre a redação e o lado comercial do jornal.
A maioria dos meus colegas da Redação e eu éramos completamente ignorantes sobre as parte financeira da empresa até que percebemos que nossos chefes começaram a tentar aumentar os lucros reduzindo os custos com a Redação. Pensávamos que eles estavam sendo antiéticos.
Olhando para trás, hoje percebo que o que eu entendia como normal, a “Muralha da China” entre Redação e negócios, foi apenas um acidente histórico. Quando comecei a trabalhar em jornais locais, a maioria era controlada por matrizes regionais fortes, capazes de aumentar preços dos anúncios mais rápido do que a inflação e aumentar as margens de lucro de 20, 30, 40 e até 50%. Os lucros eram ainda maiores nas emissoras de TV locais, que também obtinham lucros pelo monopólio da venda de anúncios para empresas que não tinham outra forma de anunciar para aquele público.
Naquela época, os jornalistas não precisavam se preocupar com a origem do dinheiro, que minava na empresa cada vez mais ano a ano. Nosso maior inimigo não era a concorrência, mas os gestores que visavam margens de lucro ainda maiores.
Portanto, nós, jornalistas, ficávamos perfeitamente satisfeitos em poder focar na reportagem. O trabalho de distribuir, impulsionar o conteúdo que produzíamos e comunicar ao público não era nosso. Verdade seja dita, a maioria de nós não gostava muito dos leitores e mesmo depois de todos termos e-mails pessoas, resistíamos a torná-los públicos.
Não preciso nem dizer que o mundo é totalmente diferente hoje.
As notícias não são mais subsidiadas por um negócio de publicidade extremamente lucrativo. Na verdade, agora parece que o modelo de negócios mais promissor para o jornalismo é encontrar leitores que se importem o suficiente para pagar por conteúdo.
Encontrar e maximizar a audiência do nosso produto não é mais tarefa de outras pessoas, como os departamentos de marketing e vendas. Agora são jornalistas, analistas de redes sociais, especialistas em audiência, editores de engajamento, etc. que estão fazendo o trabalho equivalente em plataformas digitais.
E nossas empresas não podem mais prosperar com um produto que foi lançado há décadas ou até séculos atrás.
Com a evolução rápida das tecnologias e as mudanças de comportamento do público, os veículos de mídia devem aprender a entender as novas necessidades das pessoas e estar constantemente inventando ou melhorando produtos para atender a essas necessidades.
Mentalidade de produto é sobre isso.
4. Agora existem metodologias bem sucedidas para o desenvolvimento de produtos.
Quando me tornei o primeiro diretor online do The Miami Herald em 1995, pensei que seria o editor de uma nova publicação, a “edição da internet” do nosso jornal. A gente achava que poderia alcançar uma boa audiência –e até sucesso nos negócios online– contando as mesmas histórias que publicávamos na mídia impressa.
Não demorou para descobrirmos que nosso modelo de conteúdo –um pouco de informação sobre muitos assuntos, mas nada muito profundo– estava totalmente errado para a World Wide Web. Tudo o que o jornal oferecia, com exceção das reportagens locais, seria feito com maior rapidez e/ou profundidade por um veículo que priorizasse o digital. Enquanto a edição impressa do Miami Herald já havia sido a única fonte de notícias nacionais e internacionais de um morador de Miami, o Herald online competia com The New York Times, Yahoo! e CNN. E, embora praticamente tivéssemos o monopólio da publicidade impressa para carros, casas e empregos em Miami, as startups bem rápido se mostraram fortes concorrentes na atração desses anunciantes.
Tentamos desenvolver e lançar novos produtos para fazer frente a esses concorrentes a partir de novas oportunidades de negócios: guia de turismo, serviços para compradores de automóveis e casas, guia de entretenimento. Mas, na época, não havia nenhum lugar para aprender sobre desenvolvimento de produtos, de tecnologia e entendimento das necessidades dos usuários.
O que precisávamos era de um kit de ferramentas que ainda não havia sido inventado –três pacotes de estratégias que viriam a surgir depois:
- Design centrado no usuário ou design thinking: técnicas para entrevistar e observar usuários, desenvolver percepções sobre suas necessidades e testar conceitos e protótipos de produtos com eles.
- Desenvolvimento ágil de software: abordagem de construção de software em pequenos pedaços e testá-los com os usuários durante o processo de desenvolvimento
- Desenvolvimento de produto “enxuto”: investir recursos de forma incremental, conforme você testa hipóteses, aprende com elas e prioriza a geração de receita no processo.
Esses são os pilares da mentalidade de produto. A série de textos do Knight Lab sobre mentalidade de produto na Redação inclui dois estudos de caso (os alertas de notícias locais no Newsday e uma publicação impressa semanal para o Daily Maverick, na África do Sul) que ilustram como o pensamento de produto funciona na prática.
5. Carreiras de jornalismo focadas em produto estão começando a aparecer
News organizations now employ design researchers, audience development specialists, software engineers — and, increasingly, product managers. These job titles have long been common in technology companies (though non-media companies usually label as “marketing” what news organizations call “audience development”). Media companies are coming to the realization that if they deliver their content digitally, they need to become technology companies.
As empresas de mídia empregam design researchers, especialistas em audiência, engenheiros de software –e, cada vez mais, gerentes de produto. Embora esses cargos sejam comuns há muito tempo nas empresas de tecnologia, agora é que as organizações jornalísticas estão percebendo que, se entregam conteúdo digital, precisam se tornar empresas de tecnologia.
Os gerentes de produto são particularmente importantes nesta equação. Conforme explicado na parte 1 desta série, o campo de gerenciamento de produtos nasceu nas empresas de tecnologia, mas chega agora às redações.
Em uma empresa de software –uma categoria que agora inclui organizações de mídia–, os gerentes de produto são essenciais. Eles são encarregados de coordenar o trabalho dos engenheiros de software enquanto mantêm o roadmap do produto alinhado às necessidades do cliente e à estratégia de negócios.
O jornalismo precisa de bons gerentes de produto. Esta série explica as habilidades, experiências, modelos mentais –e até inteligência emocional– de que os gerentes de produto precisam, conforme os próprios gerentes de produto de mídia vêm definindo.
Mas não são apenas os gerentes de produto que podem ter mentalidade de produto. Existem mais de 1.000 pessoas que se inscreveram para fazer parte da News Product Alliance, organização que reúne as pessoas de produto espalhadas pelas Redações. Alguns são gerentes de produto mesmo; outros estão fazendo o trabalho de gerentes de produto em organizações que ainda não criaram essa função de maneira formal. E alguns são jornalistas que se consideram pensadores de produtos, qualquer que seja o título.
Uma pesquisa recente com quase 300 pessoas de produto que trabalham no jornalismo descobriu que esses profissionais têm uma variedade muito grande de títulos. Cerca de um terço continha a palavra “produto”, mas outros títulos incluíam “público”, “editor”, “comunidade”, “dados” e “inovação”.
Em uma organização de mídia, o trabalho com produto é diferente de outros tipos de empresa. As pessoas de produtos que estão em Redações precisam entender de jornalismo, sua cultura, valores e ética.
Esse é um dos principais motivos pelos quais tantas pessoas que hoje trabalham com produto em Redações começaram suas carreiras como jornalistas –e por que pode ser um desafio para especialistas em produtos de outras indústrias entrarem em nosso campo.
“O gerenciamento de produtos na indústria de mídia é diferente do que vemos em tecnologia e em outras indústrias porque temos o desafio adicional de integrar a ética do jornalismo e missão editorial na estratégia geral de produtos”, disse Becca Aaronson, presidente interina da News Product Alliance.
Pode ser por isso que muitos profissionais de produtos em organizações de notícias acreditam que as escolas de jornalismo precisam ensinar as disciplinas de gerenciamento de produtos e pensamento de produto. Na pesquisa “State of the News Product Community 2020”, 87% dos profissionais concordaram com a declaração, “As escolas de jornalismo deveriam incluir tópicos de gerenciamento de produtos no currículo”.
Está começando a acontecer. Há um número crescente de universidades que oferecem cursos para preparar pessoas para trabalhar com produto em jornalismo. Por exemplo: a City University de Nova York, a Texas State University, a New School e minha própria escola, a Medill School da Northwestern University.
6. A mentalidade de produto nas Redações ainda tem um longo percurso pela frente
A pesquisa State of the News Product Community 2020, de Cindy Royal (Texas State University), sugere que a mentalidade de produto ainda não foi totalmente adotada em muitas organizações onde os entrevistados trabalham. Achei isso preocupante, dadas as ameaças que o jornalismo enfrenta e os desafios que suas organizações enfrentam para navegar no mundo digital.
Apesar disso, os resultados da pesquisa sugerem que esse número de organizações evoluiu significativamente. Quase dois terços dos entrevistados disse que seus cargos não existiam cinco anos atrás.
Entre as descobertas que achei mais preocupantes:
- Os entrevistados não têm certeza se suas empresas –ou a indústria do jornalismo– são um lugar onde podem construir um futuro. Apenas 18% concordaram com a afirmação “Tenho um caminho claramente definido em minha organização”. Apenas 21% concordaram: “A indústria do jornalismo fornece suporte de desenvolvimento de carreira para a minha função”. Apenas 31% acham que poderão fazer seu próximo movimento de carreira dentro de sua organização atual.
- As pessoas de produto no jornalismo enfrentam desafios substanciais, incluindo recursos insuficientes (58%), direção estratégica insuficiente (48%), desalinhamento na visão/objetivos (45%) e falha na comunicação entre os os setores da empresa (44%).
- Esses profissionais querem aprender mais. Quase 6 em cada 10 listaram “desenvolvimento de carreira” como sua principal necessidade. As próximas duas áreas listadas foram “gestão organizacional” e “mudança cultural”, que vejo como indicadores de frustração com os desafios de fazer com que suas organizações adotem totalmente o pensamento de produto.
- As estruturas organizacionais não estão maduras. Enquanto mais da metade dos entrevistados disse que suas organizações tinham uma equipe de produto dedicada, 13% dos entrevistados não responderam a esta pergunta e outros 13% escolheram “Não tenho certeza” ou “Acho que as pessoas estão fazendo este trabalho sem os títulos ou recursos’’.
- Em uma época em que as organizações de notícias precisam claramente se conectar com todos os tipos de usuários, os profissionais de produtos de notícias são majoritariamente brancos (70%), enquanto negros, asiáticos e Latinos cada um representando menos de 10% dos participantes da pesquisa. Os entrevistados estavam quase uniformemente divididos entre homens e mulheres.
O relatório concluiu:
“O gerenciamento de produtos introduz uma mudança profunda na missão do jornalismo, de uma cultura de reportagem e edição em plataformas limitadas para uma que é focada em construir confiança, representando comunidades e resolvendo problemas por meio de produtos.”
Eu concordo. A mentalidade de produto pode ser transformadora para o jornalismo. Essa transformação é desesperadamente necessária para que o jornalismo sobreviva e prospere.