Comida, Hospitalidade e Comensalidade na Igreja do Primeiro Século

Victor Castro

Victor Castro
PORTAL 132
7 min readJan 26, 2024

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Um Estudo de 1 Coríntios 9:19–23

Para ampliar nossa compreensão sobre a Comensalidade na Igreja do primeiro século, é crucial dedicarmos nossa atenção ao que Paulo fala acerca desse assunto. O texto em 1 Coríntios 9:19–23 se revela uma fonte valiosa para uma análise mais detalhada. Mas a interpretação tradicional de 1 Coríntios 9, sem um entendimento claro sobre hospitalidade, pode nos levar a interpretar esse texto de uma maneira errada. Um exemplo de má interpretação desse texto:

John M. G. Barclay afirma: C. K. Barrett [1971:211] comenta corretamente em 1 Coríntios 9.20 que Paulo “somente poderia se tornar judeu se, tendo sido judeu, deixasse de ser um e se tornasse outra coisa. Seu judaísmo não era mais de seu próprio ser, mas um disfarce que ele poderia adotar ou descartar à vontade”.

Ou como D. A. Carson também afirma sobre 1 Coríntios 9 em seu artigo "Pauline Inconsistency: Reflections on 1 Corinthians 9.19–23 and Galatians 2.11–14":

D. A. Carson: Paulo ocupa um terceiro terreno e, no que diz respeito à lei, está preparado para sair desse terreno para se tornar como um judeu ou como um gentio, porque em seu relacionamento com a Torá ele não é nem um nem outro. Isso também explica por que Paulo poderia ser acusado de ser antinomiano por alguns de seus contemporâneos — porque sua compreensão dos propósitos redentores de Deus na história deixou a Torá como aliança substituída.

Porém, existem mais de vinte e cinco referências à comida e hospitalidade em 1 Coríntios 8–11 e após 1 Coríntios 11:1, Paulo continua dando sua ênfase em comida e comunhão à mesa, discutindo sobre a Ceia do Senhor e a refeição da aliança instituída a partir dela (1 Co. 11:20–32). Paulo encerra o capítulo 11 com orientações de um comportamento adequado quando a congregação for se reunir para comer (1Co. 11:33–34). Ele os lembra que estão na casa de outra pessoa (deixando implícito que são convidados) e que não podem se esquecer os outros membros, esperando todos para comerem juntos (1 Co. 11:33).

Os versículos 1 a 18 (que precedem os citados anteriormente) de 1 Coríntios 9 se concentram em comida e hospitalidade. Compreendemos, portanto, que 1 Coríntios 9:19–23 parece presumir um contexto de hospitalidade para nossa interpretação na hermenêutica hospitaleira. Com este contexto em mente, podemos seguir adiante em nossa interpretação de 1 Coríntios 9.

Porque, embora seja livre de todos, fiz-me escravo de todos, a fim de ganhar o maior número possível de pessoas. Para os judeus, tornei-me judeu, a fim de ganhar os judeus. Para os que estão debaixo da lei, tornei-me alguém como se estivesse sujeito à lei — embora eu mesmo não esteja debaixo da lei — , a fim de ganhar os que estão debaixo da lei. Para os que estão sem lei, tornei-me sem lei — embora não esteja livre da lei de Deus, mas sim sob a lei de Cristo — , a fim de ganhar os que não têm a lei. Para com os fracos, tornei-me fraco, a fim de ganhar os fracos. Tornei-me tudo para com todos, a fim de, por algum meio, salvar alguns. Faço tudo isso por causa do evangelho, para ser coparticipante dele.
1 Coríntios 9:19–23

COM QUEM COMPARTILHAR UMA REFEIÇÃO?

Como, onde e com quem compartilhar uma refeição eram regras inquestionáveis para o Judaísmo do primeiro século. Compartilhar uma refeição unia as pessoas de uma maneira especial e foi a partir disso que surgiram certas preocupações com a pureza. Se um fariseu que buscava seguir estritamente a lei Hebraica, recebesse em sua casa e compartilhasse comida com alguém que pudesse tornar sua casa e refeição em algo impuro, esse fariseu preferiria “não se contaminar”. Como Finger aborda:

Os fariseus do primeiro século se esforçavam para viver cuidadosamente dentro das restrições da lei hebraica, incluindo as leis alimentares, e assim desenvolveram regras estritas sobre com quem se poderia ou não comer. Teoricamente, todo judeu deveria poder comer com qualquer outro judeu, mas as realidades práticas da pobreza, profissões “impuras” e gênero frequentemente impunham restrições.

Fazendo isso, a mesa se tornou um sistema. E dentro desse sistema, semelhante come com semelhante e existem lugares de honra ao redor da mesa. Dizer que você come com uma pessoa considerada impura te fará ser uma pessoa tão impura quanto.

Como foi citado no meu texto anterior: "Aqueles que não comem ou bebem juntos não têm obrigação mútua e podem até se tornar inimigos."

Dessa forma, compreendemos que, para um judeu, ao ser convidado para compartilhar uma refeição, esse convite era muito mais do apenas comer junto; era, de fato, um convite para um compartilhar de vida, amizade e relacionamento. Da mesma forma, se esse judeu aceitasse o convite, sua resposta não era apenas um simples “sim”. Na verdade, estava concordando com a experiência de compartilhar uma refeição juntos, mas também com o estilo de vida da pessoa que o convidou, abrindo o coração para aceitá-la plenamente.

AS DECLARAÇÕES PAULINAS SOBRE A ADAPTAÇÃO NA MESA

Ao examinarmos os costumes das refeições nas tradições judaicas e gentias do primeiro século, também conseguimos perceber que os visitantes faziam esforços para se ajustar às práticas de seus anfitriões ao adentrarem em sua residência. Como aponta Robert Kelley;

"Nas várias culturas subjacentes ao Novo Testamento, jantar com alguém indicava solidariedade com essa pessoa. Comer com é identificar-se com"

Quando Paulo menciona que se “tornou como” judeus ou gentios, ele pode estar se referindo a uma associação próxima com eles durante as refeições. Essa adaptação de Paulo em relação à comensalidade, destaca sua disposição em se tornar como judeus, gentios, ou aqueles que estão debaixo da lei, a fim de ganhá-los. Essa adaptação envolvia não apenas a questão alimentar, mas também a imersão nos costumes e tradições dos anfitriões. A hospitalidade era vista por Paulo como uma forma fundamental de se relacionar e compartilhar o evangelho. Além disso, o contexto cultural e as práticas de refeições do primeiro século são fundamentais para a compreensão dessas passagens. Através da adaptação à mesa, Paulo buscava estabelecer conexões significativas e compartilhar a mensagem de Cristo.

Se Paulo estivesse na casa de um fariseu (os judeus sob a lei), era necessário que ele se adaptasse e seguisse as leis do anfitrião fariseu. Se estivesse na casa de um gentio (os que estão sem lei), ele também se adaptava e seguia as leis desse anfitrião gentio.

Se essa interpretação estiver correta, as declarações de Paulo “eu me tornei como” se referem à sua prática regular de se adequar ao seu anfitrião, especialmente no que diz respeito à comida servida. Essa adaptação hospitaleira permitia a Paulo compartilhar o evangelho de Deus com seu anfitrião, como John Koenig aborda:

No caso de Paulo, podemos imaginar que ele e “todos os que vinham a ele” partiam o pão juntos enquanto ele pregava e ensinava (veja Atos 20:7–12). Ou seja, sua proclamação tomou a forma de uma conversa à mesa que incentivou o dar e receber com seus convidados. Assim, a partir de Atos, bem como das próprias cartas de Paulo, começamos a obter a impressão de que para o apóstolo “refeição” e “evangelho” pertencem um ao outro.

Segundo J. Brian Tucker, “Comida e comunhão à mesa” são os temas centrais em 1 Coríntios 8–11:

Os coríntios participavam de refeições que tanto os seguidores de Cristo quanto os pagãos compareciam, como visto em 1 Coríntios 8–10. Essas refeições ofereciam oportunidades para a missão. A abordagem missionária abrangente de Paulo é resumida em 1 Coríntios 10:31: “Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra qualquer coisa, fazei tudo para a glória de Deus” Paulo conclui com um imperativo ‘sejam meus imitadores’ Essa imitação se relaciona diretamente com o comportamento missionário de Paulo”.

AS DECLARAÇÕES DE CRISTO SOBRE A ADAPTAÇÃO NA MESA

A frase de Paulo em 1 Coríntios 11:1 “sejam meus imitadores” termina com “como eu sou de Cristo”, refletindo assim, uma adaptação à mesa que começou em Jesus, foi passada para Paulo e o mesmo está passando para a Igreja em Corinto. Paulo estava imitando a adaptação de Cristo e de sua comunhão aberta com todos. Assim como Jesus se tornou tudo para todos ao comer com judeus, fariseus e pecadores, Paulo se tornou “tudo para todos” ao compartilhar refeições com todos os tipos de judeus e gentios.

Em 1 Coríntios 10:27, Paulo está dando a possibilidade deles serem hóspedes na casa de um incrédulo:

“Se algum dentre os incrédulos vos convidar, e quiserdes ir, comei de tudo o que for posto diante de vós, sem nada perguntardes por motivo de consciência.”
1 Coríntios 10:27

No que diz respeito a ser um hóspede na casa de outra pessoa, Paulo está praticamente repetindo uma regra dada por Jesus aos seus discípulos em Lucas 10.

Permanecei na mesma casa, comendo e bebendo do que eles tiverem; porque digno é o trabalhador do seu salário. Não andeis a mudar de casa em casa. Quando entrardes numa cidade e ali vos receberem, comei do que vos for oferecido.
Lucas 10:7–8

O grande problema na interpretação literal de 1 Coríntios 9:19–23 é não conseguir explicar como Paulo poderia tornar-se judeu para os judeus e gentio para os gentios em um contexto mais amplo onde Judeus e Gentios estavam presentes aos mesmo tempo. Sendo assim, David J. Rudolph sugere:

Proponho que Paulo “tornou-se” tudo para todas as pessoas, adaptando-se ao seu anfitrião judeu ou gentio. Sendo um convidado acomodado à mesa, Paulo entrou na vida de todos para que todos pudessem entrar em sua vida em Cristo.

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Victor Castro
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partindo o pão e tendo os olhos abertos para o reconhecimento de Cristo uns nos outros