Microrrevolução em plena quinta-feira

Satya Devi
Satya Devi
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3 min readJan 21, 2018
Arte por Andrew Jones

Esses dias recebi em casa algumas bruxas, mulheres queridas, que vieram de longe, hospedadas em casa. Trouxeram suas crianças. Uma de cinco, outra de nove. Foi um pouco puxado pra todas (mas não impossível) organizar pra estar aqui. Cada uma sacrificou um dia de seus projetos, de suas rotinas, de seus afazeres cotidianos para fazer esse encontro especial acontecer.

Vida real. A pia tinha louça, os lixinhos não tinham sacolinhas (mas tb não tinham lixo), a varanda ficou por lavar pras crianças brincarem, e todas aquelas tarefas INTERMINÁVEIS estavam sendo o que são: intermináveis. Eu não tinha se quer cadeira pra todo mundo sentar lá fora.

Todas nós, inclusive as crianças, colocamos a mão na massa e organizamos o que precisava ser organizado pra desfrutarmos melhor daquele momento. Todo mundo contribuiu conforme sua idade e espontaneidade. Algumas horas depois, as coisas estavam encaminhadas. As meninas estavam se resolvendo no novo território, encontrando suas próprias brincadeiras e aproveitando a barra de pole dance pra dar umas risadas e umas piruetas. As mulheres, no por-do-Sol chuvoso, sentadas nos EVAs no chão, algumas acendendo seus ‘paieiros’ em prosas de comadre infinitas e curadoras.

Falamos (e ouvimos) em liberdade sobre nossos cotidianos. Nossas aflições, nossos traumas, nossos desejos, nossa sexualidade, nossos projetos… Encontramos apoio umas nas outras. Confiantes em nós mesmas. Confiantes umas nas outras. Às vezes, chorávamos. Às vezes, tínhamos crises de riso. Nada era bobo demais, nem obsceno demais, nem louco demais para se dizer.

Só fomos pensar em jantar quando a fome pegou forte, quase dez da noite. Juntamos trocados e pedimos pizza. A louça, ficou por lavar no dia seguinte. Estávamos ocupadas demais sendo livres. Falamos até capotarmos de sono. Sobre o que era raso e o que era profundo. Pra dormir, a gente se acomodou do jeito que dava, e dormimos bem. Acordamos ainda melhor.

Pela manhã, antes de uma parte de nós ir embora, a louça estava lavada, algumas levaram pão que fizeram em casa, as crianças (e adultas) bem alimentadas. Quem precisava entrar na internet pra trabalhar, trabalhou. Quem precisava descansar, descansou. Quem precisava de um rapé, fez seu rapé. E o indispensável do labor doméstico aconteceu — do jeito que deu pra acontecer. As crianças queriam ficar mais, mas entenderam que era hora de ir.

Durante algumas horas, ali, a opressão ficou pro lado de fora da casa. Respeitamos e fomos respeitadas em nossa diversidade. Acolhemos e fomos acolhidas em nossas diferenças. Os recursos da casa — assim como suas responsabilidades — foram partilhadas entre todas. Durante algumas horas, ninguém nos interrompeu, ninguém nos desrespeitou, ninguém nos assediou.

Durante algumas horas, não tivemos conflito em ser quem somos junto a outros seres humanos. Nem individualmente, nem coletivamente. E estávamos em companhia querida, divertida e potente.

Depois disso, vestimos nossas couraças e armaduras de volta, empunhamos nossas armas, e voltamos pro mundo. Cada uma voltou para sua rotina, suas batalhas, seus desafios. Mulheres e meninas. Desviando de assédios, se impondo na rua a cada passo, lutando pela sobrevivência, cada uma a sua própria forma, de acordo com seu próprio nicho social, missão e idade.

Voltamos pra luta. Mas voltamos renovadas.

Ficou em mim a sensação de que a transformação social que desejamos talvez não esteja tão longe assim. Talvez não seja tão loucura assim. Talvez não seja tão impossível assim…

Basta muito desejo, muita prática, alguma disponibilidade, e um bom tanto de amor. Próprio e alheio. E talvez, um tanto de tempo e intimidade, pra que as relações cresçam.

Mas pra isso é preciso deixar morrer as idealizações, romantizações do ‘ideal’ e germinar para as microrrevoluções possíveis, pé no chão, olhos no horizonte. Capaz de autocrítica, antes de mais nada. Capaz de se adaptar a diferentes habitats e ecossistemas, entendendo seus lugares de privilégio e opressão, respeitando individualidades e diversidades. Transformação orgânica. E selvagem. Mesmo que da selva de pedra.

Que se multipliquem e floresçam essas relações saudáveis, belas e pé no chão!

Voltem ❤

Amo vocês.

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Satya Devi
Satya Devi

Escrevo sobre Deusas porque nós mulheres precisamos re-assumir o poder de escrever nossos próprios Mitos, e, consequentemente, reescrever nossas Histórias.