Por que apresentar Kali como “a esposa de Shiva” é um insulto

Satya Devi
Satya Devi
Published in
3 min readJan 7, 2018

Kali é um dos poucos arquétipos sobreviventes de um feminino feroz e impiedoso, não-maternal: tudo que o arquétipo judaico-cristão de “esposa” NÃO representa. Sua lenda guarda profunda sabedoria e coloca uma figura feminina em uma postura ativa e agressiva.

E aí, a primeira coisa que se fala dela, a maneira de apresentá-la ao mundo é como “esposa de Shiva”?!

Pra começar, nunca encontrei em lugar nenhum a palavra ‘casamento’ descrita entre eles. Mas sim união ritualística, Maithuna. Inserir a ideia de ‘casamento’, de ‘esposa’… É uma imposição ideológica da qual possivelmente poucos estão se dando conta. Nossa cultura, aqui, judaico-cristã, com nuances de ‘american way of life’, associa união espiritual profunda a casamento. Mas essa visão é muito questionável. O casamento, enquanto instituição, não é sobre união espiritual ou sexual. É sobre administração de patrimônio através das gerações entre famílias. É sobre repressão sexual da mulher. Não significa que os casamentos todos sejam desprovidos de amor e significância espiritual, mas é preciso não sermos politicamente ingênuos de achar que é sobre isso que ele se trata.

…E aí querem meter um véu e grinalda na Senhora que degolou uma orda de inimigos com as próprias mãos e bebeu deles o sangue.

Estão transformando um dos últimos arquétipos femininos furiosos de que ainda se tem notícia e conhecimento, pouquinho a pouquinho, em algo ‘higiênico’, ‘polido’… Um eufemismo em nome de um pudor em dizer que na verdade, ela não ‘se casou’ com Shiva: ela ‘montou’ sobre ele.

E é essa uma das técnicas de apagamento deste feminino selvagem, implacável, feroz, furioso da qual a lógica colonizadora faz uso há séculos! Podem reparar: as imagens mais ‘ousadas’ das Deusas são sempre as mais antigas! Sobreviventes de invasões, colonizações e censuras (do cristianismo ou da própria ‘ciência’). Nessas imagens mais antigas, essas Deusas estão geralmente nuas, e não raramente com a Yonni (vulva) bem aberta e à mostra (quando não em um ponto central da obra), enquanto empunham espadas, flores, e outros símbolos. Se continuarmos nesse ritmo, daqui a alguns milênios, Kali será retratada do mesminho jeito que Maria, do cristianismo. Mas Maria, NÃO será retratada selvagem e furiosa como Kali.

A imagem de uma Deusa em ato violento e/ou sexual tem um impacto, uma importância vital na psique tanto de homens quanto de mulheres — devotos desta Deusa ou não. ‘Suavizar’ as imagens ou as descrições de Kali é privar pessoas de entrar em contato com este arquétipo em sua essência original. Contra o direito de não ser esposa, de não ser suave, de não ser maternal. Trata-se de um ato de colonização. E também, de uma mentira. Porque Ela não é suave. E Ela não é “esposa”. Ela é “A Negra”, que é o que seu nome literalmente significa. Portanto, não apenas uma colossal demonstração de machismo, mas também de racismo.

Gostou desse texto? Espero que sim ^.^Deixe seu comentário (a gente adora!) Clique nas palminhas abaixo (de 1 a 50 aplausos) para incentivar que o Portal chegue a mais mulheres❤

--

--

Satya Devi
Satya Devi

Escrevo sobre Deusas porque nós mulheres precisamos re-assumir o poder de escrever nossos próprios Mitos, e, consequentemente, reescrever nossas Histórias.