MENTE HUMANA: SÉRIES QUE RETRATAM DISTÚRBIOS PSICOLÓGICOS

Clara Duque
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11 min readApr 22, 2020

O que todas estas séries têm em comum?

Antes de iniciar, vamos falar um pouquinho da similaridade entre as seis séries que serão citadas nesta curta crítica: Atypical, Bates Motel, Good Doctor, Sharp Objects, Spinning Out e The Act. Em primeiro lugar, todas abordam, a seu modo, sobre doenças da mente e como elas atingem a sociedade como um todo.

Arte feita por Clara Duque (vulgo eu mesma kkk surto).

Particularmente, sou apaixonada por qualquer assunto que envolva as complexidades da mente humana, como também por aprender sobre as particularidades dos diversos transtornos psicopatológicos que acometem tantas pessoas. Aqui, falarei de séries que tratam sobre diferentes graus de autismo, diferentes tipos de automutilação, transtorno bipolar, terror psicológico, e até a pouquíssima conhecida Síndrome de Münchhausen por Procuração. O intuito aqui é debater superficialmente sobre como estes transtornos mentais impactam o enredo das séries, e analisar a importância de tê-las tratando de temas delicados como estes.

Por último, mas não menos importante: enquanto estiver lendo, observe que em 4 das 6 séries escolhidas levantam reflexões acerca da influência familiar no desenvolvimento de distúrbios mentais, como também a imagem da mãe superprotetora. Até que ponto a superproteção realmente protege? Você sabe o que é alienação parental? Simbora descobrir! ;D

ATENÇÃO — Este conteúdo pode ser sensível: Se você não se encontra num período de estabilidade emocional e julga que sua saúde mental não está boa, sugiro que pare de ler aqui! É pro seu bem ;)

Atypical (2017, Netflix, Comédia dramática, 28 episódios e 3 temporadas)

Esta é uma série que todo mundo deveria assistir porque é leve, e busca retratar com humor a vida verdadeiramente atípica de Sam, um adolescente autista, que tenta viver uma vida comum para um estudante de ensino médio.

Sam Gardner e sua mãe, Elsa.

Sam Gardner (Keir Gilchrist) é superprotegido por sua mãe, Elsa (Jennifer Jason Leigh), mas a curiosidade dele sobre como o “mundo dos normais” funciona, faz com que queira ser livre para encarar os desafios de tentar se encaixar em espaços neurotípicos (como faculdade e relacionamentos amorosos, por exemplo). Ele conta com uma tríade para ajudá-lo a entender sobre tudo isso: sua terapeuta, Julia (Amy Okuda); seu melhor amigo, Zahid (Nik Dodani); e sua irmã mais nova, Casey (Brigette Lundy-Paine). No percorrer da trama, é fácil reconhecer a influência destas três personagens na vida de Sam.

Sam junto com seu melhor amigo, Zahid.

Cabe ao espectador compreender melhor como é a vida e a mente das pessoas no espectro autista: velocidade de pensamentos, incômodo severo causado por barulhos específicos, limitações na compreensão/interpretação de coisas “simples”, dificuldade em lidar com certos tipos de afeto/contato ou mudanças na rotina, e inclusive o senso de humor diferenciado. Porém, estas definições não devem colocar os autistas dentro de uma bolha, porque suas diferenças não os fazem incapacitados de aprender como viver no “mundo dos normais”.

Nós sabemos muito bem que, no fundo, ninguém é 100% normal. E Atypical nos ensina isso com muita maestria e delicadeza. É como o próprio Sam diz: “Quem inventou o ditado ‘A prática leva à perfeição’ era idiota. Os humanos não podem ser perfeitos. Porque não somos máquinas. O melhor que se pode dizer sobre a prática é que ela leva a… uma melhora”. ♥

Bates Motel (2013–2017, A&E, Suspense, 50 episódios e 5 temporadas)

Faz um booom tempo que finalizei Bates Motel, mas ela não poderia ficar de fora dessa análise! O terror psicológico foi baseado na obra cinematográfica Psicose (1960), e traz consigo a complexidade psicológica das personagens principais. Não só Norman Bates (Freddie Highmore), mas também sua mãe, Norma Bates (Vera Farmiga), são vítimas das perturbações de suas próprias mentes e passados. Incesto, voyeurismo, abusos sexuais, violência, psicopatia… Tudo isso é retratado muito bem no desenrolar da narrativa, nas 5 temporadas da série.

As personagens principais da trama: o filho, Norman Bates, e a mãe, Norma Bates.

Em meio a minha rápida pesquisa para recordar dos pontos principais do enredo, encontrei a crítica escrita por Thiago Rizan, colaborador do HuffPost Brasil, que me encantou do início ao fim com as suas descrições e análises da série (pra quem quiser ler, depois de assistir à série, é claro, tá aqui o link, principalmente no trecho quanto à similaridade dos nomes das personagens: “O acréscimo da letra “n” para formar o do filho, e que sugere uma Norma-homem (Nor-man) é sofisticado demais para ser aleatório”.

Norman Bates vs Norma Bates.

Além disso, vemos uma relação inapropriada entre mãe e filho, considerando que Norman é um voyeur (aquele que tem o fetiche de observar outras pessoas nuas, se vestindo, se despindo, tendo relações sexuais, etc), e acaba despertando sentimentos amorosos pela mãe. Inclusive, Norma é essencial nos momentos de apagão dele, que é justamente quando Norman tende a assassinar alguém. Em diversas cenas, podemos ver o que Norman vê: sua própria mãe colocando ideias na cabeça dele, até que perca o controle e faça o que ela quer. É uma mistura de personalidades tremenda que observamos em Bates Motel. Eu achei genial!

Uma das várias cenas super esquisitas entre Norma e Norman!

Good Doctor (2017-atual, ABC, Drama médico, 54 episódios e 3 temporadas)

Dr. Shawn Murphy, também interpretado por Freddie Highmore, é um médico autista extremamente inteligente, que luta para ser aceito num espaço onde só existem pessoas neurotípicas: o hospital San Jose St. Bonaventure. Então, podemos ver discursos preconceituosos de outras personagens, que acreditam que as dificuldades de socialização e compreensão de Shawn, fazem os outros médicos da equipe questionarem a capacidade mental dele ao lidar com pacientes e fazer cirurgias complexas.

À direita, vemos Dr. Shawn Murphy. À sua esquerda, vemos Dr. Glassman, personagem importantíssimo para a trajetória de Shawn!

Porém, Shawn nos mostra, desde o início, que sua inteligência é muito peculiar. Em várias cenas, ele consegue desvendar sozinho casos que uma equipe inteira de médicos não consegue. Minhas cenas favoritas são as que conseguimos visualizar o que há na mente de Shawn: diagnósticos possíveis, soluções das cirurgias e também o funcionamento delas. Observamos também a dificuldade que Shawn tem em se comunicar com os pacientes e familiares sobre qualquer coisa, principalmente sobre os diagnósticos e chances de vida dos mesmos, porque para ele tudo é muito simples e direto, e acaba não ponderando as palavras antes de dizê-las. Mesmo assim, é uma série muito boa pra quem curte séries médicas. ;)

Há muita criatividade e arte digital nas cenas em que ele imagina as soluções cirúrgicas.

Sharp Objects (2018, HBO, Drama, 8 episódios e 1 temporada)

Automutilação, traumas envolvendo mortes, alcoolismo, depressão, alienação parental, Síndrome de Münchhausen por procuração… Não foi a toa que assisti aos 8 episódios em menos de 24 horas! É uma séria super interessante, por abordar tantos temas de uma vez.

Sharp Objects relata a história de Camille Preaker (Amy Adams), uma jornalista criminal que é obrigada a ir à sua cidade natal para acompanhar de perto a investigação do assassinato de duas garotas. O problema é que estar de volta em Wind Gap aflora as memórias com sua irmã mais nova, Marian, que morreu devido a uma doença misteriosa. Mesmo assim, Camille se sente culpada de alguma forma, porque sua mãe nunca a amou de verdade, e isso se tornou um fardo mais pesado após o falecimento de sua amada irmã (a própria Adora Crellin [Patricia Clarkson], mãe de Camille, diz isso para ela numa das cenas).

Da direita para a esquerda: Amma, Camille e Adora.

O que é mais interessante na série é que, durante os 8 episódios, todas as personagens tentam reforçar que o assassino não necessariamente seja um homem. As próprias mulheres de Wind Gap compreendem que mulheres também podem ser assassinas, mas parece uma grande piada para o xerife e o detetive da investigação, porque ‘violência’ e ‘mulher’ são palavras que não soam bem juntas, considerando que a mulher seja violenta, e não vítima da violência. A narrativa da série é lenta, mas não deixa de ser envolvente. Quando o espectador adentra na cidadezinha do Missouri, parece que todo mundo poderia ter assassinado Natalie e Ann, até mesmo a irmã adolescente de Camille, a imprevisível Amma Crellin (Eliza Scanlen). O mais legal é que o enredo nos entrega o verdadeiro assassino várias vezes, mas a gente pensa que não é possível (mas é!).

Amma mostrando sua casa de bonecas igual a casa delas, para Camille.

Muitas cenas mostram os gatilhos de Camille: estar na casa que viveu toda a sua infância, ver o quarto intacto da sua irmã falecida, ter que lidar com sua mãe amarga e conhecer mais de perto a sua meia-irmã esquisita, são todos fatos que fazem Camille recordar de outra morte… a de sua colega de quarto, Alice, num centro de reabilitação. O fato de Camille estar acompanhando de perto a investigação de duas garotas que foram assassinadas, faz com que ela quase nunca consiga fugir dessas lembranças. Também achei muito bem retratado a toxicidade de uma mãe superprotetora, como também o contrário: uma mãe que não ama sua própria filha cria feridas muito difíceis de cicatrizar (por dentro e por fora. Literalmente!).

Spinning Out (2020, Netflix, Drama, 10 episódios e 1 temporada)

Spinning Out é aquela série que você assiste só pra passar o tempo, mas que acaba trazendo reflexões e desconstruções acerca do glamour do mundo da patinação no gelo, e qual o preço que os atletas pagam para serem perfeitos/campeões. Assistam à série, mas vou logo avisando: a dona Netflix já fez o desfavor de cancelar após uma temporada, apenas com um mês de lançamento (o qual foi em janeiro de 2020). Mas vale assistir, assim mesmo!

Em todas as cenas de Kat no rinque de patinação, dá pra sentir o mix de emoções que ela sente em estar patinando: um sonho que, de repente, tornou-se um pesadelo.

Katarina Baker (Kaya Scodelario) tem sua potencial carreira destruída, após uma queda quase fatal, numa performance que poderia ter feito que ela deslanchasse de vez. Como se já não bastasse precisar lidar com o trauma e decorrente medo de voltar para o rinque de patinação, sua mãe bipolar, Carol Baker (January Jones), torna tudo mais complicado para Kat. A raiz do problema está no fato que Carol também era uma das melhores patinadoras de gelo de sua época, mas uma gravidez não planejada destruiu toda a sua glória e sucesso, e tudo ficou só como um sonho distante. Por isso, Carol culpa Kat, e faz com que a filha vivencie o sonho que ela não pôde vivenciar. Até a sua irmã mais nova, Serena (Willow Shields, nossa querida Primrose Everdeen, de The Hunger Games), também se vê pressionada para ser a melhor patinadora de sua faixa etária.

À direita, vemos Carol Baker. Ao seu lado, está Serena Baker, irmã mais nova de Kat.

Não saber lidar com toda essa pressão é o maior dilema de Kat: ao mesmo tempo que ela quer parar de tomar medicações para bipolaridade que herdou de Carol, quando está medicada, consegue ter um melhor controle para não se automutilar ou fazer “loucuras”, digamos assim. Todas as vezes que Kat não conseguiu se controlar, eu consegui sentir a frustração dela do outro lado da tela, pois era quase palpável. Spinning Out é sobre mostrar que atletas podem até parecer perfeitos em suas performances, mas a rotina de treinos é exaustiva, não só para o corpo, como também para a mente. É triste saber que há tanta obscuridade e sede pela perfeição num esporte tão magnífico de assistir. Mas, como todas as outras séries, é necessária para haver compreensão da influência de todos esses aspectos na vida pessoal do atleta.

The Act (2019, Hulu, Drama, 8 episódios e 1 temporada)

Agora vamos relembrar do termo “Síndrome de Münchhausen por Procuração”, e entender de uma vez por todas o que acontece quando alguém possui essa síndrome. Este problema mental faz com que o cuidador, de crianças ou idosos, induza-os a doenças. Como assim? Bom… Por meio de mentiras. Mas, para que a mentira pareça verdade, o cuidador causará danos físicos à criança ou ao idoso, medicando-os para lidar com doenças inexistentes. E faz isso não apenas para controlar a vítima, como também para aparentar ser alguém bondoso, devoto… Chamar atenção com a sua dedicação pelo outro, por assim dizer.

Essa síndrome é mais comum entre mães e filhos, mas pode ocorrer entre um cuidador e um idoso, ou entre pais e filhos, etc. De qualquer forma, ela é caracterizada como abuso infantil ou abuso de idosos, porque, de acordo com a rotina de remédios impostas pelo(a) cuidador(a), a vítima pode acabar ficando seriamente doente (fisicamente e psicologicamente, vale salientar), e até mesmo falecer.

Você deve estar se perguntando o que essas explicações têm a ver com The Act… E, infelizmente, terei que te responder: TUDO. A série é baseada em fatos reais, e retrata a relação doentia entre Dee Dee (Patricia Arquette) e Gypsy Blanchard (Joey King), mãe e filha, respectivamente. Em Sharp Objects, Adora também é portadora da Síndrome de Münchhausen por Procuração, e podemos ver que as ações dela são por puro poder e prazer de controlar as filhas. Com Dee Dee, não é muito diferente. Ao tratar sua filha adolescente como uma criança de oito anos de idade, o que fica bem explícito pela maneira em que ela veste Gypsy e como a controla de todas as formas possíveis, podemos descrever a relação como tóxica, do início ao fim.

Na foto de cima, vemos as verdadeiras Gypsy e Dee Dee Blanchard. Abaixo, as atrizes que interpretam mãe e filha. Quando comparamos as cenas da série com as do documentário, vemos o cuidado de retratar com fidelidade este caso real.

Algumas curiosidades sobre o caso real:

  1. De acordo com históricos médicos, Dee Dee levou Gypsy para hospitais locais mais de 100 vezes entre 2005 e 2014;
  2. Gypsy foi submetida às seguintes cirurgias, desnecessariamente: operações gastrointestinais (lembrando que ela vivia com um tubo alimentar ligado diretamente no estômago), procedimentos nos olhos e remoção das glândulas salivares;
  3. Quando Gypsy tinha 19 anos, sua mãe insistia que ela tinha 15. Imagina o tanto de coerção psicológica que essa menina sofreu? Ela demorou muito tempo para descobrir sua idade verdadeira;
  4. Gypsy era proibida de ter amigos, celulares e computadores, e ela considerava que Dee Dee era sua melhor amiga, apesar de todo o abuso;
  5. A página compartilhada de Dee Dee e Gypsy no Facebook ainda está ativa, o que é bizarro (entendedores entenderão o motivo).
Uma das inúmeras cenas em que Dee Dee leva Gypsy ao hospital, para realização de procedimentos médicos sem necessidade. Nessa cena em específico, Gypsy extraiu todos os dentes, e dessa vez foi algo necessário (mas só dá pra entender se vir a série, hehe!).

Essa é uma série muito difícil de digerir, confesso. É aterrorizante pensar que isso tudo foi real e tão recente: o caso foi à tona nos meios de comunicação em 2015! Os únicos pontos que deixam a série mais fácil de assistir são: as atuações impecáveis de todo o elenco, principalmente Joey King, Calum Worthy (o qual interpreta Nick Godejon) e Patricia Arquette, além de alertar às pessoas sobre a ainda pouco conhecida Síndrome de Münchhausen por Procuração.

*Se você se identificou com algum dos transtornos descritos ou conhece alguém próximo que sofre com alguma psicopatologia grave, peça ajuda!*

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Clara Duque
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Fascinada por arte e a mente humana. Amo ler e escrever também. Se pudesse me definir com uma palavra, seria artista: porque arte flui daqui de dentro! ♥