O que dizer sobre “COISA MAIS LINDA?”

Clara Duque
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7 min readApr 15, 2019

“Coisa mais linda”, a mais nova série original da Netflix, retrata um contexto sócio-histórico em que o Brasil patriarcal tentava esmagar as mulheres a todo custo. Mas, sabe como é… Eles tentam nos enterrar, mas não sabem que somos sementes!

Arte feita por mim ❤

Ao assistir à série, senti uma mistura de coisas boas e ruins. O elenco é incrível, a atuação é excelente, o enredo também. Mas tem algumas críticas sociais que cortam o coração; e dói mesmo. E creio que era essa a intenção: abrir os nossos olhos, e ver que muita coisa mudou dos anos 60 pra cá, mas ainda há muito a ser mudado.

As protagonistas são Malu (interpretada por Maria Casadevall, a personagem é paulista, o marido sumiu com todo o seu dinheiro, e ela está tentando uma vida nova no RJ), Adélia (interpretada por Pathy Dejesus, é uma negra, trabalhadora, diarista, e um doce de pessoa), Thereza (interpretada por Mel Lisboa, é uma personagem de relacionamento aberto, que morou em Paris e é colunista/repórter da revista Ângela) e Lígia (interpretada por Fernanda Vasconcellos, é a melhor amiga de infância de Malu, que vive um relacionamento bastante abusivo). O elo que nasce entre elas durante os episódios é lindo!

Da esquerda para direita: Lígia, Thereza, Malu e Adélia.

A série retrata o Brasil do final dos anos 50, quando éramos um país estupidamente patriarcal. Era inadmissível uma mulher trabalhar no seu próprio negócio, ser dona de si, e não depender do seu marido (financeiramente e de todas as formas possíveis). Todas as empresas eram feitas por homens, para os homens, e só. A mulher só servia para ser secretária, empregada, ou qualquer coisa do tipo. Dona de um negócio? Chefe de uma empresa? Parecia piada deixar algo tão importante nas mãos tão “delicadas” de uma mulher. Era totalmente aceitável uma mulher ser subordinada, mas… ter uma carreira? Nem pensar!

Tendo em vista este contexto, escolhi algumas cenas em que poderei explanar um pouquinho sobre como a série retratou estes temas ainda tão recorrentes no nosso âmbito social (como feminismo, machismo, racismo...). Então, digamos que tem alguns spoilers, mas o importante é enxergar a crítica de cada cena. Vamos lá? ;)

1. Feminismo negro x feminismo branco

No terceiro episódio, “Águas de março”, acontece uma das discussões mais enriquecedoras da série. Depois de ter o seu clube inundado pela água da chuva, Malu se sente extremamente frustrada por ver o seu sonho destruído. E Adélia, com todo o seu otimismo, diz que com uma vassoura e um rodo elas resolviam boa parte do problema. E Malu continua choramingando, como a paulista mimada que sempre conseguiu tudo que quis.

Reprodução: Netflix.

Mas o que é importante nessa cena, é quando Malu diz “Eu tava lutando pelo meu direito de trabalhar, deixei meu filho na casa da minha mãe, tô tentando fazer alguma coisa pela minha vida, só que tá muito difícil!”. Adélia olha bem pra ela e diz “Lutando pelo meu direito de trabalhar? Eu trabalho desde os 8 anos de idade, a minha avó nasceu numa senzala, e é difícil! É bem difícil mesmo! Eu trabalhei seis, sete dias na semana. Saía de casa às 4 horas da manhã e ficava mais de uma hora no ônibus na ida, mais de uma hora no ônibus da volta, e chegava em casa e a Conceição tava dormindo! Tudo isso pra pôr um prato de comida na mesa!”. Isso é só um trecho do que Adélia fala, mas é um soco no estômago. O movimento feminista não dá pra ser um só; a vida das mulheres negras nunca foi como a das brancas (óbvio!). Não são os mesmos sacrifícios, não são as mesmas lutas, e, sim: tudo pelo peso de uma bagagem histórica que os negros ainda carregam em seus ombros diariamente.

Reprodução: Netflix.

2. As “escritoras” da revista Ângela

“Não precisa ser nenhum gênio para escrever como uma mulher”, é o que o editor-chefe diz para Thereza. A revista Ângela era feita para o público feminino: tinha colunas sobre ginástica, culinária, reportagens sobre tipos de tecido, moda… Mas, o que me chocou foi a cena em que Thereza contrata Helô para trabalhar na revista, e diz “Agora é hora de você conhecer suas colegas de trabalho!”. E a sala está REPLETA de HOMENS! Sim! Homens escrevendo para mulheres, como mulheres! Nem mesmo a equipe de uma revista estava livre do poder patriarcal. Pra mim foi uma das cenas mais marcantes, por deixar beeeem explícito que, para o homem, todo tipo de controle é válido: até mesmo escrever para “doutrinar” as mulheres como elas devem se comportar em sociedade, o que só reforça os estereótipos machistas de que lugar de mulher é na cozinha, e esse tipo de coisa que a gente já cansou de ouvir!

Reprodução: Netflix.

3. “Negócios”

No segundo episódio, intitulado “Garotas não são bem-vindas”, Malu tem um insight para conseguir abrir o seu clube de música: conversar com Roberto (interpretado por Gustavo Machado), um grande produtor do Rio de Janeiro. Ela vende a sua ideia como um local para “todo tipo de gente, com todo tipo de música”, e diz que gostaria de tê-lo como sócio. E então ele questiona “por que você acha que é a pessoa certa para abrir esse tipo de negócio?”. Ela rebate dizendo “Ah, porque eu sempre amei música, e…”, então ele a interrompe e diz “Olha só, eu acabei de ajudar uma pessoa que ama música! Minha vó. Dei pra ela um estéreo da Philips. Uma beleza de aparelho!”. Malu se recosta na cadeira, sem acreditar, e ele diz que não faz negócios com uma coisa que nem existe. No final da cena, ele termina dizendo algo como “Você é um broto, linda mesmo. Vai dar uma volta pela cidade e deixa a parte chata pros meninos”. Mal sabia ele que Malu precisava de mais um “não” para ter ainda mais vontade de abrir o seu clube de bossa-nova!

Reprodução: Netflix.

4. Seja generosa… No decote!

Thereza sugere uma matéria para completar a edição: mostrar as mulheres que trabalharam na construção de Brasília (que, de acordo com os dados da série, eram 1/3 da força de trabalho e ninguém falava sobre isso). Inclusive, ela mostra a foto de uma mulher que veio do RN, grávida de 7 meses, dirigindo um caminhão, para poder trabalhar nas obras. Logo, os homens começam a rir, e dizem que “Mulher nenhuma se interessa por isso! Só sapatão vai ler”. E aí ela pergunta o que eles sugerem, e vem “Sei lá! Alguma coisa de tecido, nova estação, de tendência… Ou quem sabe como ser generosa no seu decote, ou algo assim…”. Essa revista só tem absurdo, né? Nem Jesus na causa pra ajudar! E dá pra perceber como simples frases são capazes de reforçar muitas ideias ultrapassadas, como a de que sapatão é “caminhoneira”, “maria-macho”… *hora de revirar os olhos*.

Reprodução: Netflix.

5. “Eu cantei!”

Pra mim, é uma das cenas mais pesadas entre o casal. Lígia sempre cultivou o sonho de ser cantora, mas nunca teve coragem de seguir este sonho. Mas, finalmente, ela faz um teste para ser cantora de um clube e consegue ser aceita. Então, ela comemora e chega em casa um pouquinho feliz demais, e encontra o seu marido dormindo no sofá. Ela o acorda para dar a notícia, e ele fica transtornado, ouvindo ela falar. E é aí que podemos ver como cantar realmente dá vida à Lígia: os olhos dela brilham, o sorriso tá escancarado no rosto… Quando ela conta que passou numa audição para ser cantora, ele dá um tapa na cara dela, e sai da sala. Simples assim. Depois, enxergamos esse relacionamento como sendo completamente abusivo. Nos dias de hoje, parece difícil pensar em mulheres que deixam de seguir os seus sonhos porque o “companheiro” não aceita. Mas acontece mais do que imaginamos. É engraçado como a nossa liberdade fere tanto, né? Porém, se nós temos asas, devemos usá-las e seguir os nossos sonhos, por mais impossíveis que pareçam.

Reprodução: Netflix.

E aí, só me resta dizer uma coisa: se você ainda não assistiu à série, o que tá esperando? Mesmo que ela traga muita reflexão acerca de temas atuais (o que é bastante positivo), também é incrivelmente agradável aos olhos: a fotografia é maravilhosa, com aquele ar vintage dos anos 50… Enfim, obrigada por quem leu até aqui. É muito importante poder dar voz aos meus pensamentos sobre uma série tão importante para nós, mulheres. Que sigamos firmes na luta diária!

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Clara Duque
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Fascinada por arte e a mente humana. Amo ler e escrever também. Se pudesse me definir com uma palavra, seria artista: porque arte flui daqui de dentro! ♥