Seus pés não tocavam o chão

Douglas Vasquez
portalprisma
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4 min readMay 19, 2018

Eu só queria sentir a sua pele, mesmo que por uma vez.

Eu já havia prometido para todo mundo — inclusive para mim — que não iria mais esperar por ele. Nem mesmo criar expectativas por situações que são ilusórias e sem dúvidas, produções da minha cabeça.

Hoje eu o vi assim que entrei na sala de aula. Ele estava sentado logo na frente, na primeira carteira e na segunda fileira da sala de aula apertada e extensa. Ele estava com o corpo virado levemente para o lado, provavelmente desenhando de forma desajeitada naquelas carteiras horríveis da universidade. Não me viu, fingi que não o vi também.

Era algo constante em nossa rotina — e não, eu não me orgulho nem um pouco desse joguinho — e mesmo assim, continuei a jogar o jogo. Aonde isso irá nos levar?, pensei.

Nesta noite eu estava sozinho pela primeira vez em muito tempo. Sem as minhas amigas por perto para me fazer rir e, de certa forma, me distrair daquela aula complicada sobre direitos penais, a ignorá-lo ficou cada vez mais difícil. Procurei uma fileira vazia, mas de onde ainda fosse possível olhá-lo. Admirá-lo. Será que ele também pensava em mim quando eu não estava olhando para ele?

De onde eu estava pude contemplar seus cabelos macios. Os fios que estavam cada vez mais longos pareciam aparados com uma tesoura minuciosamente bem manuseada. Hoje ele estava vestindo um suéter por cima de sua habitual camiseta clara de botões. Fiquei alheio durante toda a aula enquanto tentava registrar em mina memória cada movimento de seu corpo, principalmente, quando seus dedos finos e longos ajeitavam a franja que insistia em cair sobre seu rosto.

Há alguns meses ele se mudou para mais perto de casa e algumas vezes nos encontramos pelos pontos de ônibus da cidade. Vez ou outra pegávamos a mesma linha para casa e íamos juntos, combinando diálogos com momentos constrangedores de silêncio que não pediam licença para surgir. Desde a primeira vez que fizemos o mesmo caminho juntos, ansiei por mais noites em que estivesse sozinho para que pudéssemos ir para casa, depois de um dia cheio de coisas, juntos.

Eu sentia o ar frio da noite tocar o meu rosto e olhava constantemente por cima dos ombros procurando por algum sinal de sua presença. Eu tinha esperanças todos os dias, mas quando ele apareceu, de fato, há alguns metros de distância, senti meu coração acelerar em meu peito. As palmas das minhas mãos estavam ficando geladas, não pelo frio, não pela brisa.

Caminhamos juntos pela rua quase deserta do centro da cidade, tarde da noite, ele sem dizer uma palavra e eu, tentando soar casual em meus movimentos. Ele estava ciente de minha presença há poucos metros atrás dele. Seus passos começaram a ficar mais lentos. Se eu não o tivesse observado por tanto tempo, tantas vezes, não notaria a sutil diferença de seu caminhar. Ele quer que eu me aproxime. Ele quer que eu me aproxime? Decidi não me aproximar até chegarmos ao segundo ponto de ônibus. O terceiro da noite.

Ele se sentou no banco de metal frio e lentamente levantou a mão para fazer um sinal de “oi” para mim, quando me viu. A esta altura, eu já estava me sentando ao seu lado, ignorando a sensação do banco gelado sob as minhas coxas.

Seu rosto exibia e exalava cansaço. Sua franja, que precisava de um pequeno corte (que o deixava ainda mais fofo) deslizava lentamente cobrindo seus olhos. Ele sorriu, sempre simpático.

“Está sozinho hoje?”, perguntei. Ele respondeu que sim. Era óbvio que ele estava sozinho. Geralmente, ele está acompanhado de dois amigos. Hoje, nem sinal deles. O que eu estava dizendo? Eu sou um desastre socialmente.

Tentei pensar em algo mais para dizer, mas me contentei em apenas olhar de canto de olho para seu rosto fino, pálido, sobre a brisa da noite escura. Pude sentir o calor de seu corpo emanando próximo ao meu.

Eu queria tocar suas mãos. Elas repousavam sobre seu colo, que segurava um saco pardo de um estabelecimento de fastfood que todos conhecemos bem.

Eu queria entrelaçar meus dedos nos seus ali mesmo. O desejo de fazer isso queimava tanto dentro do meu peito que eu quase o fiz.

Eu queria passar os meus dedos gelados em suas bochechas rosadas. Em seus lábios levemente abertos. Mouth breather, como Simon, de “Carry On”.

Olhei para meus pés, que não alcançavam o chão de cimento da calçada do ponto de ônibus. A poucos centímetros dos meus, estavam os dele, calçados em um par de tênis vermelho.

Ele também não alcançava o chão.

Não sei bem porquê presumi que estivessem repousados sobre o concreto. Talvez por ele ser poucos centímetros mais alto do que eu. Só sei que seus pés flutuavam pelo ar, assim como os meus.

Não sei se ele havia reparado que eu estava olhando para ele pelo canto do olho. Tentei disfarçar respondendo mensagens em meu celular, pois toda vez que eu o guardava no bolso de minha jaqueta, eu podia olhá-lo sem muitas restrições.

Quando o ônibus que vai para a sua casa (mas não a minha) passou diante de nós, ele hesitou por um segundo, debatendo-se se deveria levantar-se e ir. Até que foi.

Ele olhou em meus olhos com seus olhos escuros, cansados e sorriu, murmurando um leve “Tchau!” e acenando com a mão esquerda. Observei seus passos o levarem até o ponto de ônibus seguinte, onde o veículo havia parado, a espera da fila de pessoas terminar uma a uma.

Senti a brisa da noite mais uma vez tocar meu rosto e olhei para os meus pés, que não alcançavam o chão e balançavam, levemente no ar.

Queria apenas tocar suas mãos, seu rosto, seu corpo.

Queria apenas tocá-lo e respirar junto ao seu rosto.

Queria apenas… poder.

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Douglas Vasquez
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Um clichê no meio de tantos outros. Jornalista, autor e fangirl profissional.