Trabalho de OSGEMEOS na Avenida 23 de maio, em São Paulo. (Foto: Reprodução/Google)

Do cinza às cores: a revolução do grafite na arte urbana e a luta por valorização

Em meio a leis controversas, os desenhos ganham espaço em muros de grandes centros urbanos e também no interior

Daniela Nogueira
Portal Vertentes
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6 min readSep 8, 2017

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Daniela Nogueira e João Victor Tavares

Arte. Palavra cheia de significados, provocadora de emoções e debates. Com diferentes formas, ela é capaz de atingir os mais diversos tipos de pessoas. Em um mundo em constante movimento, a arte o acompanha e a partir dela nascem manifestações, retratos de novas culturas e povos. Nos últimos anos, um novo formato, por alguns considerado arte contemporânea, tem ganhado espaço. Esse, por sua vez, não teve origem nas grandes galerias francesas. O grafite é filho da confusão urbana, das grandes metrópoles, e da sede de revolução.

Há quem diga que as pinturas rupestres já eram uma forma de grafite e, assim, ele continuou crescendo e se aprimorou junto com as civilizações. No Brasil, a referência para a arte de rua é a cidade de São Paulo. Os primeiros grafiteiros surgiram na região na década de 80. Naquela época, já traziam consigo ideias políticas e a representação de figuras da sociedade nem sempre enxergadas.

Entretanto, nem tudo são flores. A trajetória do grafite das ruas às galerias foi cercada por discriminação e preconceito, sendo até hoje vista por alguns como algo ilegal e confundida com poluição visual. A partir disso, o grafiteiro se tornou uma figura marginalizada, periférica e, seus desenhos, um ato de vandalismo. As políticas públicas nacionais também não contribuíram para a valorização do grafite e, como exemplo, temos a Lei nº14.223, chamada de Lei Cidade Limpa, em São Paulo.

O ano é 2008. Grandes painéis ocupam o território paulistano e a cidade tem espalhados pelo mundo renomados artistas do gênero como OSGEMEOS, Nunca, Nina, entre outros. Antes dos convites para compor murais em castelos e expor em galerias a céu aberto, cada um deles deixou sua marca em São Paulo. No período citado, eles se envolveram na mesma polêmica, tiveram um mural de 700 metros na Avenida 23 de Maio apagado.

Criada em 2006 pelo ex-prefeito Gilberto Kassab, a Lei Cidade Limpa tem como premissa a ordenação da paisagem urbana, com apelo a preservação do patrimônio histórico e integridade das edificações. Ela diz ainda do controle de peças publicitárias como outdoors, mas o ponto de maior debate é a cobertura de pichações e grafites.

O episódio envolvendo a 23 de maio pode ser acompanhado no documentário “Cidade Cinza” (2013), dirigido por Marcelo Mesquita e Guilherme Valiengo. Ele mostra a reação dos artistas à lei e também os critérios controversos da Prefeitura para apagar os desenhos. Na ocasião, a administração municipal alegou ter se enganado ao cobrir o mural. Com investimento da Associação Comercial de São Paulo, os grafiteiros fizeram um novo trabalho. As imagens da produção são intercaladas com passagens dos artistas por outros países, contrapondo a valorização exterior aos obstáculos internos.

Grafite de Kobra é pichado na 23 de maio, em São Paulo. (Foto: Sérgio Castro/Estadão Conteúdo)

A história da 23 de maio não acaba por aí. Em janeiro deste ano, na ação chamada de “Cidade Linda”, o Governo de São Paulo apagou um painel de 1.000 m² do artista Eduardo Kobra. O trabalho em questão havia sido feito em 2009 no dia do aniversário da cidade. Em pronunciamento, o prefeito João Doria afirmou ter ordenado que fossem cobertos os desenhos danificados na via, e que oito, entre eles o de Kobra, seriam preservados. Porém, dias antes, pichadores desenharam sobre a obra, fazendo traços cinza e colando uma figura do prefeito recém-eleito.

Grafite X Pichação

Ações como a que atingiu o desenho de Kobra são raras. Especialmente em São Paulo, existe respeito daqueles que se consideram pichadores em relação ao trabalho dos grafiteiros. A confusão maior costuma ocorrer entre os termos para aqueles que não fazem parte do movimento. No geral, o piche se coloca como aquilo que é proibido, o vandalismo sem sentido. Enquanto isso, hoje o grafite é a arte.

Essa diferença é ressaltada no Artigo 65 da Lei nº 9.605/98, onde o ato de pichar é qualificado como crime, enquanto no parágrafo segundo, é usada a palavra grafite para definir um ato de cunho artístico com intuito de valorização de monumentos. Apesar dessas diferenças, ambos nascem do mesmo desejo de expressão.

(Foto: João Victor Tavares)

Para o artista plástico, Bruce Kennedy, o principal debate sobre a questão está na autorização para executar o trabalho. “Em nível universitário se tem melhor essa noção de diferenças, mas até entre os próprios grafiteiros e pichadores existe uma rixa, porque tem uns que defendem que tudo é grafite, até a pichação que o cara faz com a letra. E quem vai dizer que aquilo não é arte? Mas a grosso modo o pessoal não sabe distinguir bem não. Aí um trabalho bem valorizado igual Eduardo Kobra, OSGEMEOS — que hoje são os mais famosos — o pessoal fica naquela: mas isso ali é pichação? Não, é grafite, é mural”, explicou.

Bruce considera ainda que o problema da desvalorização do grafite no Brasil está ligado a questão cultural. “Quando você viaja e vai num museu fora do país, você vê crianças de 5 anos que o pai leva ao museu e senta em frente a um quadro e aprecia aquilo. É diferente. Então, eu acho que nosso grande problema ainda é cultural, o pessoal banalizou a cultura. E isso é prejudicial”, argumentou . “Fora que tem a questão do custo, não só nas artes plásticas, mas também na música. Não é que o brasileiro não gosta de arte, só que ele não tem condição e nem acesso. Veja só os filmes hoje, cinema é muito caro, você vai num show é caro. E os políticos não facilitam o acesso, porque a arte também é um meio de expressão política”, completou o artista.

O interior do grafite

Diferente das metrópoles brasileiras, o grafite nas cidades do interior do país ainda cresce timidamente. As políticas de apoio aos artistas são escassas, dando pouco ou nenhum espaço para que mostrem seu trabalho. Em Divinópolis, município do centro-oeste mineiro, o grafite é encontrado em poucas ruas, sendo mais explorado em murais de escolas e painéis de restaurantes.

William Pinguim, 39 anos, é um dos principais nomes do gênero na cidade. Porém, não se considera um grafiteiro clássico, prefere ser chamado de artista plástico. “Eu sempre fui ligado a arte gráfica, pintura, mas transitando na borda do grafite”, explica Pinguim. “Utilizo técnicas do grafite, um momento sim, outros momentos não. Eu faço peças que pareçam mais grafite, ou menos grafite. Mas eu nunca fui grafiteiro clássico, o cara que faz a modificação urbana”, completou.

Obra do artista Pinguim na Rua São Paulo, em Divinópolis. (Foto: João Victor Tavares)

O mineiro ressalta que no interior é impossível viver somente como grafiteiro. William tem um ateliê, onde produz trabalhos de diversos gêneros, como artes plásticas e audiovisuais. O “mercado sanfona” obriga o artista a transitar entre os meios, buscando o melhor jeito de se sustentar e completar a renda mensal.

Assim como em São Paulo, os grafites que enfeitavam a Escola Municipal de Música de Divinópolis foram apagados pela Prefeitura. Os desenhos feitos em 2014, no evento “Usina de Rima”, no Complexo Gravatá. Pinguim não estava envolvido no projeto, porém, sentiu o impacto do descaso da administração com os desenhos. “A Prefeitura, através da Secretaria de Cultura, devia olhar pra aquilo e falar: isso é uma apresentação cultural”, desabafa o artista.

“Acho que talvez o diálogo evitasse muito esse impacto negativo da decisão de tapar os grafites. Embora eu não concorde de forma nenhuma que tenha que tapar. Deveriam fazer mais. Se é um local de arte, que a arte se apodere”, ressaltou.

Bernardo Rodrigues, secretário de cultura de Divinópolis na época, revela que o Conselho Municipal do Patrimônio Histórico solicitou a pintura do espaço grafitado após uma denúncia de um cidadão ao Ministério Público, o qual constatou a inviabilidade do desenho. O ex-secretário defende a importância da cultura urbana no local, apesar do acontecido durante sua gestão. “No meu entendimento como secretário, até caberia o grafite, e eu inclusive defendi na época que se disponibilizasse aquele espaço para grafitar”, explicou Bernardo. “Pra mim é uma forma de valorização e de promoção de maior intercâmbio e diálogo entre a cultura mais tradicional e a cultura urbana”, enfatizou.

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Daniela Nogueira
Portal Vertentes

Jornalista. UEMG-Unidade Divinópolis. Growing wings to fly.