O limite do politicamente correto: repressão ou liberdade de expressão?

Malu Damiao
Portal Vertentes
Published in
4 min readSep 26, 2017

H á quem diga que eles se ofendem por pouco e tornam o mundo chato e sem graça, com regras que impedem a livre manifestação. Não se pode mais fazer piadas, apelidar pessoas e rir de situações que seriam engraçadas. O discurso ficou entediante, e as pessoas também.

Mas as minorias não declaram essa mesma opinião. Negros, gays, mulheres: entre eles, poucos são os que defendem as piadas preconceituosas e os apelidos ofensivos. Dificilmente, você verá uma mulher defender brincadeiras machistas ou um negro rir de discursos que inferiorizam pessoas pela cor da pele. O mundo ficou mais chato para quem, claramente, é preconceituoso.

A cautela ao nominar ou apelidar as pessoas em situações que possam ofendê-las é vista, pelas maiorias ditas “abastadas”, como algo que reprime o direito de se manifestar livremente — isso quando o outro é o foco do apelido.

O mundo está chato, eles dizem. Mas, quem gosta de virar piada ou motivo de chacota ou preconceito para os outros? Qualquer associação é vista como ofensa, e qualquer brincadeira se torna alvo de acusações de preconceito — mas, o que cada um entende como brincadeira? Atacar minorias, com o objetivo de inferiorizar grupos que não atendem aos clássicos padrões da sociedade, não torna o mundo mais divertido — isso não uma brincadeira.

Como já disse o escritor e humorista Gregorio Duvivier, o que chamam de “politicamente correto” também pode atender pelo nome de “processo civilizatório”. O mundo definitivamente está mais chato se você for racista, machista ou homofóbico. Se ninguém mais rir de uma piada machista, não é porque as pessoas perderam a graça, mas, sim, porque o machismo perdeu a graça.

(Foto: Reprodução)

Ayana Odara, 19, é negra, feminista e militante de causas e movimentos sociais que defendem o direito e o espaço da mulher negra na sociedade. A jovem afirma que em alguns momentos as pessoas utilizam a expressão “politicamente correto” para desqualificar uma luta, de forma a exagerar determinadas ações em prol do seu ponto de vista. “Problematizar ações sem embasamento é muito diferente de defender, e lutar pelos direitos humanos e contra as opressões. Entretanto, algumas pessoas que são contrárias a esses argumentos de luta (na maioria das vezes não reconhecem os seus privilégios ou não conseguem pensar além do seu universo) na verdade não se esforçam para entender algo simples”, relata Ayana.

Não bastasse sentir essas atitudes na pele e no dia a dia, a pessoa que se manifesta em em rodas de debates ou em discursões cotidianas, pode, ainda, ser acusada de se fazer de vítima e de apresentar um discurso cheio de “mimimi”. Não nascer dentro do padrão incomoda, escolher não se enquadrar a ele é um insulto e não permitir críticas ou ofensas leva as maiorias à loucura.

O problema não é só racial. Jéssica Silva, 24, é deficiente física, teve paralisia infantil e, desde então, tem problemas para se locomover com a perna direita. Ela diz que os insultos vêm de todos os lados, se sente inferiorizada por ser mulher, por ser deficiente e, mais ainda, por estar acima do peso. “Possuo todos os estereótipos que a sociedade rejeita. Sempre ouvi piadas sobre a minha perna e sobre o meu peso. Cresci repreendida em todos os sentidos”, desabafou.

Jéssica diz que as pessoas não acreditam que ela pode estar satisfeita com o próprio corpo. “Muitos dizem que eu posso até aceitar, mas que ninguém gosta de ser gordo. As pessoas passaram do limite. Elas não conseguem enxergar o absurdo em seus próprios discursos e é mais do que necessário que a sociedade julgue quem reproduz esse tipo de fala”, defende a jovem.

A beleza negra é vista como exótica, o decote na mulher gorda é visto como ato de coragem. São pessoas e atitudes normais que não deveriam ser tratadas ou enxergadas como algo fora do padrão. Aliás, o que é mesmo o padrão? A população brasileira é constituída por 54% de negros e por que será que o padrão é ser branco? As mulheres são maioria e por que será que o padrão é ser machista? A população LGBT cresce a cada dia e hoje é admitida por 17,9 milhões de brasileiros, e por que será que o padrão é ser hétero, preconceituoso, machista, racista?

“Vitimismo” e “mimimi” são expressões criadas e compartilhadas por brancos, abastados e héteros que reproduzem e reafirmam os padrões todos os dias ao escolherem um modelo branco para uma campanha, ao guardar o celular quando avista um menino negro, ao defender padrões estéticos e discursar sobre a incompetência das mulheres no volante, na presidência ou em qualquer cargo ou função. “Vitimismo” e “mimimi” são expressões que buscam camuflar o mal que é feito ao outro por meio do preconceito velado e que, ao ser discutido, tenta inverter a lógica da opressão. A questão não se baseia mais em ser ou não ser “politicamente correto”, mas, sim, em agir de igual para igual, reconhecendo o outro como o semelhante que ele, de fato, é.

--

--