O racismo velado de cada dia

Eu sabia que estava sofrendo discriminação, mas preferi me calar. A corda sempre arrebenta do lado mais fraco

Ariana Coimbra
Portal Vertentes
6 min readJun 18, 2017

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(Foto: Eliane Tavares)

*Os nomes dos entrevistados foram modificados a pedido dos mesmos.

Domingo, 20 de novembro de 2012.

“Havia momentos em que me sentia perdida, sem saber o que falar ou o que fazer. E, nessa situação, era obrigada a mostrar-me forte — dizia Stela ao conversar com o irmão Mateus. Contava coisas que aconteceram comigo, falava de grandes líderes negros, cantava ‘A mãe da limpeza’, de Chico Buarque, baixinho, e escondia minhas lágrimas. Ele seguia alheio a tudo, mas sofria a cada nova notícia que passava na TV ou que aparecia na internet. E eu seguia ao seu lado, tentando lhe mostrar que nós não somos inferiores a ninguém”.

Mateus* nunca deu muita importância ao Dia Nacional da Consciência Negra. Para ele, isso deveria ser todos os dias. Mas Stela* reforçava: “Eu sei, Mateus, mas olha onde eu já cheguei, olha onde já chegamos”. Ele frisava o “onde já chegamos” e sorria sem conseguir dizer nada. Enquanto isso, mexia em seu Tablet e via, nas redes sociais, internautas chamando uma jornalista de ‘macaca imunda’ por ela ser negra, e assistia a um programa humorístico em que o personagem era nomeado de ‘urubu branco’. Apesar disso, Stela seguia encorajando-o e, após algumas conversas, ele finalmente conseguiu dormir tranquilo.

Amanhecia, e Mateus acordava faminto. Em uma das idas à padaria mais próxima, funcionários o confundiram com um ladrão e chamaram a polícia. No susto, sua primeira reação foi correr, mas um policial atirou. Por sorte, o tiro o atingiu de raspão. Ele apenas prestou esclarecimentos à polícia e foi liberado por falta de provas e por ainda faltar um mês para atingir a maioridade.

Quando completou os 18 anos, compareceu ao Exército de sua cidade, Belo Horizonte, para fazer o alistamento obrigatório. Para seu azar, não foi dispensado. Teve de fazer o treinamento de tiro de guerra por um ano. Ao receber o certificado de conclusão do alistamento, notou que no documento, sua cor constava como ‘parda’ e não como ‘negra’. Após questionar o porquê, recebeu a seguinte resposta: “os seus olhos não são pretos”. Mateus apenas deu um sorriso tímido, agradeceu pelo bom tratamento durante o treinamento e foi para casa com Rodrigo*, amigo que fez no campo de treinamento, conforme conta Stela.

Em dezembro de 2013, de férias da universidade, Stela procurava emprego para ajudar nas despesas de casa. Olhou os classificados do jornal local e viu que uma clínica estava contratando secretária que tivesse curso superior. Enviou seu currículo e, no dia seguinte, foi chamada para a entrevista. Chegando à clínica, conversou com o responsável pelo RH da empresa. Ele elogiou seu currículo, mas disse que ela não possuía boa aparência para ocupar a vaga. “Eu sabia que estava sofrendo discriminação, mas preferi me calar. A corda sempre arrebenta do lado mais fraco”, lembra Stela.

Quando finalmente concluiu o doutorado em Filosofia, pensou que seria mais fácil arrumar um emprego. Começou a procurar, desesperadamente, por algum trabalho em sua área de atuação. Foi professora em algumas escolas estaduais, deu aulas em cursinhos pré-vestibular e em universidades privadas. Mateus também seguia pelo mesmo caminho: estudava para ter um futuro digno. Ele cursava a graduação em Engenharia de Produção e ela seguia ministrando suas aulas.

(Charge: Junião / Ponte Jornalismo)

Na tarde do dia 5 de fevereiro, enquanto Stela corrigia algumas provas, Mateus saía para uma festa na casa de um vizinho. Os ponteiros já passavam das dezoito horas, quando ela ouviu os gritos de seu irmão. Seu primeiro pensamento foi de que ele estivesse brincando com os amigos. Chegou até a janela para chamar sua atenção por causa do barulho excessivo, mas viu a cena que ficaria em sua memória pelo resto de sua vida. Mateus estava estirado no chão, com uma faca no peito e rodeado por sangue. Desceu os dois andares de escadas que a separavam da cena. O choro e o pânico a dominavam. Naquele instante, já havia uma multidão em volta. Uma vizinha teve de segurá-la e pedir para que ficasse calma, como se isso fosse possível. Ela gritava: “É meu irmão, preciso acordá-lo!”. Ao se aproximar, viu Mateus com a boca torta, olhos roxos e imóvel. Começou a repetir para si mesma: “Não há de ser nada, não há de ser nada”. Não imaginou que, a partir daquele dia, seria filha única.

Junto com Mateus, estava Rodrigo, seu amigo do Exército. No momento em que Mateus foi atacado, Rodrigo mexia no celular e não sabia ao certo o que havia acontecido. Foi algo muito rápido. Ele não conseguiu gritar para pedir ajuda. Um vizinho chamou o resgate, mas já era tarde demais: Mateus havia falecido devido a uma forte hemorragia.

Não dava para compreender como ele fora vítima de um crime tão cruel. A cor de sua pele custou a sua voz, o seu futuro, a sua cidadania. Custou o seu ser e a sua própria vida.

Ele não cometeu nenhum crime, e sim foi vítima de um. Vítima de pessoas racistas que o mataram por novamente terem o confundido com um bandido, como contou um dos suspeitos à polícia.

Cega de dor, mas obstinada pela justiça, Stela seguiu sua vida com a saudade cada vez mais forte do irmão.

Em 2015, quando a Universidade Federal de Minas Gerais anunciou vaga para professor substituto de Filosofia, Stela, que já estava cursando o pós-doutorado, foi até o campus para se inscrever. Ao chegar no local, a recepcionista perguntou se ela estava segurando vaga para sua patroa. Apesar de responder que era professora, que tinha doutorado em Filosofia e preenchia os requisitos da vaga, não foi contratada.

Quando voltou para casa, pegou uma caixa contendo fotografias e cartas do irmão. Até hoje ela guarda todos os presentes que ganhou dele: a lembrança de Porto Seguro, com a frase “Irmã, eu te amo”; um forro de mesa e uma poesia feita por ele. Lembranças da época em que Mateus seguia ao seu lado e estava presente em todos os momentos de sua vida. Mas, hoje em dia, é Stela quem escreve para o irmão:

Segunda-feira, 11 de março de 2015.

“A saudade de você, querido, me possui. E enquanto escrevo estas linhas tortas, tenho os olhos cheios de lágrimas. Estou chorando de saudades de você. E, hoje, a saudade apertou por causa do racismo velado de todos os dias. Já são dois anos sem você, e o vazio do meu coração e da nossa casa só aumenta. Papai e mamãe também só choram.

Tantas coisas você já perdeu nesse tempo, meu querido, que só me resta continuar estudando e ocupando cargos cada vez mais importantes nessa nossa sociedade preconceituosa. A meritocracia é uma falácia. Basta pensar como existe mérito se as condições de partida não são iguais? Resta-me continuar lutando para ver nossos direitos respeitados”.

Sem o apoio da Segurança Pública, Stela procurou um advogado. Uma nova maratona, em que saía com os papéis do crime debaixo do braço até encontrar o advogado perfeito. O primeiro, ao ouvir o caso, achou difícil e não quis aceitar. Com os outros também não foi diferente. Somente após um ano, quando visitou o nono profissional, as coisas então começaram a se encaminhar. Ele precisou apenas de uma semana para levantar casos como o de Mateus em outros países e abrir um processo.

A negligência foi constatada: a Polícia Militar libertou o assassino confesso do crime. Stela sabe que a prisão dele não acabará com a dor da perda do irmão, mas lhe dará a sensação de justiça feita e dever cumprido.

Hoje, ela abraça uma nova luta: a luta contra o racismo nas universidades e nas escolas. Viaja para várias cidades fazendo palestras sobre a violência contra negros. Stela é uma mulher machucada pela perda do irmão e não quer que mais ninguém morra devido ao racismo. Stela Faria Morais é uma negra que tem orgulho da sua cor e da luta que tem nas mãos. Ela se emociona muito contando a história de sua vida que, apesar de trágica, também é cheia de amor. Os olhos ficam marejados quando fala do irmão. E, em silêncio, Stela fala por todos os negros e pelas atitudes que salvam vidas — ela fala alto. Ela voa.

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Ariana Coimbra
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Quem escreve corre o risco de deixar a alma exposta. Além das ideias sentimentos.