Leãozinho

Jhonatas Elyel
Os Arquivos Jota
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6 min readMar 19, 2022

A história que estou para contar de fato aconteceu… Em um tempo não muito distante, onde os leões enfrentavam a pior de todas as suas ameaças: o homem. E contavam apenas com a ajuda de sua própria coragem inata, além do auxílio de todos os orixás que designavam de tempos em tempos alguns humanos de coração nobre para defender a causa dos antigos reis da selva. Nossa história começa quando uma nuvem de poeira aos poucos baixou e gigantes chifrudos foram embora, enquanto uma leoa permanecia deitada a poucos metros do arbusto onde seu pequeno leãozinho esperava amedrontado. O medo era grande, os monstros podiam voltar a qualquer momento, mas ele precisava, ele queria saber se sua mãe estava bem, então deu o primeiro passo, e imaginou que nada de mal fosse-lhe acontecer. Deu o segundo passo com um pouco mais de confiança e rezou aos orixás antes de sair correndo em direção à mamãe.

Ao encontrá-la percebeu o cheiro de sangue, respirou fundo e aproximou-se um pouco mais, notando como sua face demonstrava um grande sofrimento. Chamou-a com um miado e ela abriu os olhos, que remelavam, esforçando-se ainda mais para passar a pata sobre sua cabeça, trazendo-o para junto de si e naquele momento nada mais importava. O cheiro da mamãe e o calor de sua pelagem… sensações que ele conhecia desde antes de poder se lembrar. E ali adormeceu, com o rosto enfiado no pelo dela, antes que um vento poderoso o acordasse. Com medo de que fossem novamente os chifrudos levantou, rosnando para qualquer um que pudesse tentar machucar mais sua mamãe e só então nosso leãozinho percebeu que o vento vinha de um grande clarão no céu, onde as nuvens dançavam em longos círculos, criando uma imagem repleta de fogo e trovão de onde o guerreiro da justiça, Xangô, surgiu resplandecente, em piedade ao jovem e nobre leãozinho.

– Não precisa ter medo meu filho. Tu naceste pra ser o rei dos animais e não vai sair dessa vida com menos do que isso. Mas aquela que jaz caída no chão… — enquanto ele falava aquelas palavras ao coração do pequenino outra figura surgiu, circundando os pés de Xangô, antes de se deitar a seu lado, para só então o jovem leão perceber que tratava-se de sua mãe, sorrindo-lhe com o olhar, aprovando sua lealdade e abençoando as palavras do orixá.

– Ela deu a vida por ti e faria tudo de novo porque mãe é assim. Seja a leoa ou seja a galinha… Tu agora vai ter que honrar ela, pequeno, se quiser mesmo ser digno do teu futuro. Por que rei de verdade não é só quem manda… não, o rei de verdade é rei por fora e — disse ele, apontando com o dedo indicador para o lado esquerdo do próprio peito forte — rei por dentro. Corre então, pequeno! Corre antes do sol sumir e as hienas dominarem o mundo e vai ter com o homem, porque de todo ele não é ruim e vai saber o que fazer. Corre, pequeno, corre porque a vida não espera… — E com um único raio, na frente de seus olhos, o leãozinho viu o bravo guerreiro e sua mãe sumirem.

Não havia como não ficar atônito com tudo aquilo e por alguns minutos o pequeno pareceu uma rocha, inerte no chão da savana, olhando para o horizonte, no rumo da visão antes que sua sombra no chão lhe mostrasse o tardar da hora. Corre… porque a vida não espera. As palavras do poderoso Xangô ecoaram em sua cabeça e lá foi-se ele. Correndo, entre os arbustos e os suricatos, que observavam curiosos e atentos, como sempre; correndo atrás do homem branco, que, segundo ouvia-se falar, tanto mal já fizera àquela terra, mas que mesmo assim, ainda era homem e ainda podia ajudar, ainda querida ajudar; correndo… atrás do seu destino.

E assim nosso pequeno príncipe de pelos castanho-claros avistou um dos humanos, caminhando sozinho, como eles faziam as vezes, apenas para observar. Não chegaria perto demais dele nem que o rei dos orixás descesse à terra e lhe mandasse fazê-lo. Mas ali, atrás daquela moita, ele sabia, que o homem branco podia vê-lo e esperou, até que ele se aproximasse. Então correu de volta, não rápido demais, mas nem tão devagar também. E passou pelos suricatos, pelos arbustos hirsutos e pelas acácias enormes, de onde elefantes potentes e girafas magníficas tiravam seu sustento, e toda sua vida também passou por ele até aquele dia chegar, onde sua mãe jazia quieta. Suspirou, ainda triste, mas guardaria a tristeza para depois, pois o sol já se deitava sob o fim do mundo e em breve o mar de escuridão da noite estrelada cobriria a terra. Sentou ao lado do corpo de sua mãe e esperou enquanto o homem rodeava, agachava, espreitava, até cutucá-la com um galho. Ao perceber que ela não se mexia ele finalmente compreendeu e cobriu a boca com a mão em espanto, olhando para o pequeno, que devolvia seu olhar sem entender muito bem tudo aquilo que se passava entre os dois.

E o humano foi embora. Deixando o nosso pequeno e bravo leãozinho tão confuso quanto quando vira pela primeira vez uma hipopótamo com hérnia. Bom, ele tinha feito a sua parte… O que mais Xangô queria que ele fizesse? Olhou para o céu, então, e vislumbrou a primeira estrela, surgindo no oeste distante e sorriu, imaginando que sua mamãe estivesse observando-o de lá e esperando para que ela estivesse se orgulhando dele e protegendo-o, como fizera até o fim. E ele realmente precisaria de proteção.

O sol já havia sumido e a penumbra cobria grande parte da savana quando as risadas histéricas e medonhas, que sempre o assustavam, começaram ao longe… Logo elas sentiriam o cheiro, não só do sangue, mas também do medo e chegaram ali em minutos. O leãozinho olhou para trás e viu sua mãe, jogada, olhou para a estrela na outra direção e não arredou o pé. Ficaria ali até o fim e se tivesse de morrer, que fosse como o guerreiro e o rei que Xangô disse que ele era. As gargalhadas começavam a ficar mais altas e misturavam-se a gritos e rosnasdos raivosos de um bando grande em conflito. Hienas não eram os animais mais sociáveis da selva, ele mesmo já havia visto várias delas brigando em conjunto por um naco de carne putrefada… Agora será que elas brigariam por ele?

A pior coisa que podem haver no mundo é o encontro com uma hiena faminta. Normalmente elas já são grosseiras e perigosas, mas quando famintas tornam-se retardadas ao extremo e riem e babam de qualquer coisa que lhes lembre comida fácil. E lá estavam elas, mais de quinze, ele conseguia contar, em volta do corpo e do forte leãozinho, que, apesar do coração acelerado permanecia firme. Elas abaixavam o focinho, olhando-o fixamente, cheirando o chão, certificando-se de que mamãe leoa não levantaria para contra atacar, no entanto, antes de começarem as luzes dos faróis de vários carros iluminaram o local, afastando as fedorentas como a luz do sol afasta as sombras da noite.

Agora enquanto vislumbrava o passado ficando para trás, junto com as dores e os sofrimentos mais fortes, que eram colocados em um grande saco e levados, por vários homens para dentro de um carro, nosso bravo pequeno rei podia respirar aliviado, ainda que a dor da perda fosse forte e recente ele jamais se esqueceria da bravura de sua mãe, nem da própria coragem de seu feito, ao passo que o humano que o havia encontrado aproximava-se sem medo, segurando-o no colo com um sorriso bondoso e o olhar destemido de Xangô para levá-lo rumo a seu destino.

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Jhonatas Elyel
Os Arquivos Jota

PT: Escritor e historiador 🕰👨🏻‍💻 ENG: Writer and historian 👨🏻‍🏫⏳