O Desencarne do Nobre Guerreiro

Jhonatas Elyel
Os Arquivos Jota
Published in
5 min readMar 19, 2022

(Sugestão de OST para a leitura: https://www.youtube.com/watch?v=ztddVrAYPRc )

Ele precisava partir. Podia ser um grande guerreiro. Podia ser um líder sábio, mas era, acima de tudo um pai de família e amava os seus. Era um amor maior do que a própria vida e a morte também, mas precisava partir, por eles. E assim o caçador deixou seu povo, sua prole.

Era cedo. As estrelas não mais brilhavam no céu, que era lentamente pintado de rosa, anunciando os primeiros raios de sol, o despertar de um novo dia. Tudo era silêncio. Os predadores só vinham à noite e tão logo começava uma nova aurora recolhiam-se para suas tocas. E antes de sair o nobre guerreiro abençoou a todos com o pó da própria terra, derramando-o sobre suas cabeças.

Seu neném dormia, tranquilo, rechonchudo e pelado, com a inocência daqueles que ainda não conhecem o mundo. Os outros rebentos brincavam no chão, mas suas expressões eram tristes e já saudosas pelo pai que não mais veriam. Eles não sabiam, ninguém sabia, mas de algum modo podiam sentir o peso não característico daquele tipo de adeus não dito que paira no ar de uma separação forçosa quanto àqueles que se amam incondicionalmente. Ao canto, a mulher já se despedira e não mais lhe daria o rosto, mas ainda faltava a primogênita do guerreiro. E assim depositou o que restava da terra em sua mão sobre a cabeça da filha, bela, vigorosa; triste e saudosa. Então partiu.

A relva crescia mais baixa naquelas paragens e poucas árvores, de galhos retorcidos, acompanhavam-no, mas um de seus pequenos decidira ir até onde pudesse com o pai. E na entrada de uma caverna se despediram finalmente. Ele fazia aquilo pelos seus, por sua família, por sua tribo. E para lá se foi. Não era um caminho largo, tampouco claro como o mundo lá fora, mas suficiente para que avançasse sem para trás olhar. E assim o nobre guerreiro caminhou, caminhou e caminhou. Caminhou pelo que pareceram incontáveis dias. E aos dias sucederam as semanas, que sucederam os meses. O guerreiro não era apenas nobre, mas sábio também e por isso seguia o caminho, sabendo não haver outro. Nada o abalava, uma vez que não olhava para trás e ainda que seu coração estivesse pesado pela saudade de casa, sua mente estava firme e seus olhos viam apenas à frente. Não se abalou nem quando parte da caverna desmoronou atrás de si. Àquela altura já sabia em seu íntimo que nunca mais voltaria, mas como todo nobre guerreiro, este seguira em frente.

Aos poucos a caverna parecia ficar cada vez mais clara e nítida e o sábio guerreiro soube que logo chegaria a seu destino. Lentamente a caverna abriu-se à uma densa floresta, de modo que sua visão permanecia agora bloqueada pelas árvores robustas, arbustos densos e inúmeros cipós. Sua audição ferina não demorou a discernir entre os rugidos, gemidos e coaxados da floresta úmida o distinto clarim de vozes humanas, de guerreiros inimigos. Antes de os encontrar, no entanto, topou com uma criança e lembrou-se do seu pequeno filho que o esperava. E soube que não mais o veria em vida. Ainda assim, era um guerreiro nobre e não tiraria a vida de uma criança pelo breve deleite da vingança antecipada ao torpe crime. Sorriu e deixou que a criança corresse, alegre e sem roupas, para os seus.

Por fim, de trás da cortina de cipós dois outros guerreiros surgiram e se riram do nobre guerreiro que pedia passagem para ter com o que prover sua família. Riram das armas e da desvantagem numérica de seu oponente, uma vez que traziam grandes martelos e machadas de madeira. Mas o sábio guerreiro não se intimidou, pois aquele era o destino de todo guerreiro. Aquele era também o seu destino. E com os dois estranhos travou batalha sozinho, antes de cair perante profundos e intensos golpe do inimigo, que por fim lhe davam à cabeça.

Caiu o nobre guerreiro e ali permaneceu seu corpo. Sua carne e seus ossos volvendo à terra com a qual seu elevado espírito servira-se reverentemente até então. Pois aquela era a regra maior da vida, era o que a sustinha e a tornava bela, mesmo no trágico e injusto desfecho.

Correu então o espectro do guerreiro caído na honra e sem glórias para ter uma última vez com os seus, antes que se elevasse e dissipasse, tornando ao Um, à Luz, ao Universo que o criara. Pela floresta vagou como uma nuvem leve e rápida que encobre brevemente a luz do sol e logo segue seu rumo. Rumo este que levava de volta à caverna. E para lá se foi seguindo como o vento por entre as pedras que, mesmo onde a caverna desmoronara, não mais podiam impedi-lo de passar. Volvia pelas brechas mais estreitas e delas carregava seu punhado de terra antes de sair finalmente.

Logo voltava a seu lar. E onde antes deixara sua pequena prole, outras crianças o esperavam. Crianças com outras roupas e outros rostos, às quais logo soube tratarem-se seus herdeiros. E os abençoou com a terra que tomara de seu próprio túmulo, de seu sangue e de sua carne. Abençoou o pequeno neném de cabelos dourados como o sol, que dormia tranquilo e imberbe, coberto por mantos brancos. Abençoou as demais crianças, igualmente claras e alegres, que brincavam como quem tem a segurança de um lar seguro. E quando volveu-se para abençoar a matriarca daquela prole, com um rebento a tira colo, reconheceu sua primogênita, mulher feita, como pérola negra, segura e sábia, mas que ainda trazia nos olhos a tristeza da saudade e que agora recebia aquele punhado de terra aos prantos, sabendo que o vento invisível que a trazia sobre a fronte era o espírito do pai guerreiro e nobre a despedir-se.

E assim ascendeu o nobre guerreiro.

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Jhonatas Elyel
Os Arquivos Jota

PT: Escritor e historiador 🕰👨🏻‍💻 ENG: Writer and historian 👨🏻‍🏫⏳