Artigo Científico| Uma breve história sobre o pixo

Portfólio do Fábio
Portfólio do Fábio
11 min readNov 25, 2020

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“A imaginação no poder”. Em 13 de maio de 1968, data ápice da revolução de Paris, um dos mais famosos lemas dos rebeldes franceses apareceu rabiscado na parede externa do teatro Odéon, histórica construção erguida uma década antes da Queda da Bastilha. A pixação dava seu cartão de boas-vindas ao mundo.

No atípico ano de 1968, a história respirava revolução. Em ebulição, o mundo assistia revoltas, lutas e sonhos refletidos em transformações na arte e no estilo de vida. Como que por casualidade, eclodiram, simultaneamente, manifestações sociais e políticas nos quatro cantos do globo. Operários, estudantes e artistas, ocupando as cidades, externavam seus sentimentos e vontade de mudança em gritos, canções, cartazes e muros. A rua, espaço público, começava a ser tomada como painel de expressão popular.

No Brasil, o ano fica marcado pela rebelião estudantil frente a um regime ditatorial. Estudantes universitários ocupavam universidades e ruas, enfrentando a repressão policial e reivindicando maiores verbas para a educação, reforma no ensino e pesquisa, e assistências sociais para alunos mais pobres. Paralelos à classe estudantil, como afirma Filho (1998), artistas, profissionais liberais, jornalistas, escritores, religiosos, partidos de esquerda e operários denunciavam e lutavam contra a Ditadura Militar.

No México, estudantes e comunidade acadêmica conseguiam legitimidade da opinião pública, em defesa da autonomia universitária frente às investidas do Estado e conflitos com a polícia.

“Os problemas educacionais foram menos importantes que as relações políticas entre universidade e poder. […] O mal-estar estava no anseio de modificar o autoritário e fechado sistema político mexicano. ” (FILHO, 1996, p. 74). Episódios semelhantes de choques entre polícia e estudantes também foram registrados na Argentina, Peru e Venezuela.

No Vietnã, os vietcongues, no episódio conhecido como Ofensiva do Tet, redefiniam os rumos da guerra entre o exército do pequeno povo contra a maior potência mundial, os Estados Unidos.

No exato momento em que os Estados Unidos defendiam a tese de que a guerra estava sob controle, que poderia até mesmo ser vencida, mais de 50 mil guerrilheiros brotavam da terra para atacar capitais provinciais, tomar cidades importantes e de forte simbolismo, como Hué, antiga capital imperial, investir contra a própria capital do país, Saigon, tomando — por seis horas — a embaixada dos Estados Unidos. Mais que o feito militar contou o impacto psicológico. A coesão do povo norte-americano, já abalada, não pode ser recuperada […]. As negociações de paz começaram em maio, em Paris. Embora fosse durar mais sete anos, a guerra fora decidida pela ofensiva do Tet. (FILHO, 1998, p. 33)

Se nos Estados Unidos a derrocada do exército, unida a protestos de intelectuais e artistas, reformulava toda a geração, destacando-se o fortalecimento, sobretudo, dos movimentos estudantis, feministas — com a liberação dos costumes permitida pela introdução da pílula anticoncepcional — e de poder negro — marcado pela influência dos Panteras Negras, e da revolta popular diante do assassinato de Martin Luther King –, na África, inspirados pela bravura dos guerrilheiros vietnamitas, movimentos armados começavam a se articular em Zimbabwe, Namíbia, Angola, Guiné-Bissau, Moçambique.

Na América Latina, movimentos de esquerda se mobilizavam diante do assassinato de Che Guevara, em outubro de 1967 na Bolívia. Suas imagens e suas mensagens tornaram-se símbolos de revolução.

“O heroísmo de sua dedicação continuaria sendo exaltado nos cartazes e bandeiras das passeatas, nas pichações e nos coros dos estudantes. ” (FILHO, 1998, p. 34).

No Japão, os estudantes travavam “verdadeiras batalhas campais” (FILHO, 1998, p. 36), com o objetivo de preservar a nação da implantação de armas nucleares em território japonês. Já na Europa Ocidental, os protestos se dividiam entre manifestos estudantis e passeatas contra o apoio dos Estados inglês e sueco à intervenção norte-americana no Vietnã. Na Bélgica, Espanha, Alemanha, Itália e França, os estudantes transformavam as universidades em polvorosos centros de contestação e batalhas. Pediam uma reformulação na estrutura educacional considerada autoritária e arcaica.

E estes foram apenas alguns exemplos dos muitos conflitos que dão a ideia inicial dos processos de transformação social, política e cultural que tiveram como epicentro e símbolo maior o Maio Francês de 1968. Como bem afirma Filho, “a verdade é que o tufão estudantil varreu democraticamente todos os quadrantes da geografia mundial” (1996, p. 14).

PARIS, 1968: A PIXAÇÃO COMO MARCO POLÍTICO

A contracultura é marco definitivo do fim da década de 1960. Se a situação política e social era conflituosa, a arte como espelho de sua época refletia a revolução e ideais de utopia e transformação no modo de vida e status quo. Em uma época de The Doors, Bob Dylan, Rolling Stones, Jimmi Hendrix, Janis Joplin e companhia, o mundo assistia a um choque entre gerações. Os jovens questionavam e se libertavam das amarras sociais preestabelecidas.

Enquanto “Born to be wild”, verdadeiro hino da contracultura, musicalizava as imagens de Peter Fonda e Dennis Hopper cruzando os Estados Unidos em motocicletas no filme considerado símbolo do cinema contracultural, Easy Riders, de 1969, e Woodstock entrava para a história como ápice do movimento hippie, um movimento cultural silencioso, porém muito mais transgressor, tornava-se presença marcante nos muros de grandes centros urbanos: o pixo, que expressava os lemas da juventude francesa nas paredes de Sorbonne as ruas de Paris, aparecia também em outros pontos do mundo.

No Brasil, por exemplo, enquanto tropicalistas e demais músicos como Chico Buarque e Raul Seixas criativamente transmutavam suas letras em metáforas, os muros gritavam sem medo ou pudor a repulsa dos jovens e rebeldes contra a Ditadura Militar.

Mescla de literatura, arte visual e vandalismo, o início do pixo enquanto expressão social pode remeter, para os mais exagerados, ao período neolítico e aos hieróglifos, ou às citações pornográficas e românticas nos muros de Pompéia, ou quiçá ao grupo feminino antinazista “Rosa Branca” que riscava as cidades alemãs no período da Segunda Guerra Mundial. Se a origem é incerta, fato é que sua proliferação enquanto ferramenta política e de expressão remete ao Maio de 68.

“Sejam realistas, exijam o impossível”, Inscrição em um Muro Francês em 1968 (Foto: arazaoinadequada.files.wordpress.com)

Em paralelo à ocupação de Sorbonne e os protestos que tomaram corpo com a união de estudantes e operários, parando a França por 30 dias, os jovens franceses davam vida a uma nova manifestação cultural. Embora os embates travados e o espírito de paixão aguerrida dos jovens franceses não tenham durado muito, as inscrições cravadas nos muros franceses e nos livros de história foram o ponto de partida para processos de transformações que permanecem ocorrendo até hoje: igualdade de direito entre homens e mulheres, quebra de tabus sexuais, criminalização da homofobia, instituição familiar sem o conservadorismo religioso, programas assistenciais, diminuição da jornada de trabalho, entre outros.

Como bem afirmava um dos principais lemas da época, para ser realista era preciso pedir o impossível. A revolução era alimentada pela utopia; utopia e sonhos, refletidos em discursos nas ruas, fábricas e universidades parisienses, e propagandeados em frases revolucionárias impressas em cartazes e riscadas em muros, tais como: “Corram camaradas, o velho mundo está atrás de vocês”, “É proibido proibir”, “O patrão precisa de ti, tu não precisas do patrão”, “Professores, vocês nos fazem envelhecer”, “Abolição da sociedade de classes”. A nova sociedade pedia uma nova forma de se expressar, e o pixo se apresentava como a voz do povo expressa no mais público dos meios: a rua.

NOVA YORK, ANOS 1970: A PIXAÇÃO COMO ELEMENTO CULTURAL

O pixo, que floresce como manifestação política dos jovens universitários parisienses, ganharia novos rumos e significado na primeira metade dos anos 1970, nos Estados Unidos, ao tornar-se elemento do hip hop, uma nova manifestação cultural que nascia nos guetos de Nova York.

Fruto da subcultura, o hip hop surgia como voz e representação dos subúrbios latinos e afro-americanos. Essas comunidades enfrentavam diversos problemas sociais, como racismo, violência e tráfico de drogas. Os jovens que tinham a rua como único espaço de lazer entravam em um sistema de gangues, guerreando por domínio territorial.

Nas vilas começavam a eclodir festas com equipamentos sonoros ou carros de som, conhecidos como “sound system” (semelhantes aos trios elétricos), levados para o Bronx — bairro negro de NY — , pelo Dj Kookl Herc, que foi pioneiro também do “toaster” (gênero reconhecido por letras politizadas e rimadas), semente do rap.

Ao mesmo tempo que as rimas do toaster descreviam a realidade dos guetos, despontavam, sincronicamente, novas formas de manifestações artísticas de rua como dança, poesia e pintura; ramificações que terminariam por estruturar os quatro elementos do hip hop.

Os pioneiros do gênero, os djs Afrika Bambaataa, Kool Herc, Hollywood, entre outros, começaram a organizar festas onde essas manifestações tinham espaço, as chamadas block parties. Nascia o hip hop. Afrika Bambaataa, reconhecido como o criador oficial deste movimento de transformação social, estabeleceu os quatro pilares da cultura hip hop: o rap, o dj, o breakdance e o graffiti (em ordem: voz, base, dança e expressão visual).

Tag e bomb, o início do pixo nos trilhos de Nova York

Nos anos 1970, quem tivesse uma visão inovadora da arte em Nova York não precisava ir até as galerias, mas apenas caminhar pelas ruas e descer às estações de metrô da cidade para apreciar o que ela apresentava de mais contemporâneo. As tags e bombs, modalidades primárias do graffiti, saíam das vielas do Harlem e do Bronx e como praga se multiplicavam e apareciam por todos os bairros da grande metrópole.

Processo comum a outras modalidades artísticas, a pintura ganhava traços menos aristocráticos, e saltava do circuito de críticos e intelectuais fechados em galerias e exposições para ganhar a rua com sua finalidade primordial: representar a sociedade tal como ela era.

A música deixa de ser uma câmara, de auditório, para conquistar amplos espaços ao ar livre; o espetáculo cênico e a dança saem do teatro, do palco, e conquistam as ruas com suas performances. Assim também as imagens, livres dos recintos fechados, seletivos — como igrejas, museus ou galerias –, são expostas diretamente nas ruas da cidade. (RAMOS, 1994, p. 29)

Fotografia interna de um metrô nova-iorquino (Foto: Martha Cooper)

Filho da marginalizada cultura hip hop e da reclusão social, o graffiti surgia como uma forma de as gangues marcarem seu território, bem como de os jovens, que não tinham acesso a nenhuma das formas de lazer das zonas centrais, se divertirem, se expressarem, e, sobretudo, de não passarem a vida como completos desconhecidos, esquecidos pela sociedade e governo nos guetos de uma cidade que não parava de crescer. Como afirma Baudrillard, consistia em dizer:

“Eu existo, eu sou tal, eu habito esta ou aquela rua, eu vivo aqui e agora”. (1979 apud RAMOS, 1994, p. 14)

No entanto, se as paredes e muros das periferias tornavam-se verdadeiras galerias a céu aberto, ainda faltava um modo dos “writers” demonstrarem sua existência em outros pontos da metrópole. Ser reconhecido nos guetos e ruas onde viviam não era o suficiente para sair do ocultamento social em uma cidade tão grande e caótica quanto Nova York.

“Taki 183” foi provavelmente uma das primeiras inscrições a aparecer em um metrô. A enigmática mensagem que se multiplicava em vagões e percorria os trilhos, chegando aos olhos de pessoas em todos os bairros da cidade, começou a chamar a atenção de curiosos. A população se perguntava o que significava e quem era a pessoa por trás dela.

Foi um artigo do New York Times em 1971, destacando a ação de Taki e outros writers, o responsável indireto pela febre que se tornaria símbolo das grandes metrópoles mundiais: as assinaturas. Taki, pseudônimo de Demetrius, era um adolescente de origem grega que vivia em Washington Heights; 183 era o número de sua rua.

Aos 17 anos, trabalhando como mensageiro, tinha facilidade em percorrer toda a cidade e no caminho assinava seu nome em paredes, muros, e inovadoramente, nos vagões do metrô. Sua inscrição e a forma com que aparecia em todos os cantos, somada às linhas dedicadas pela imprensa, o tornaram uma lenda. Não demorou para centenas de jovens seguirem seu exemplo. Frank 207, Julio 204, Bárbara 62, Chew 127 foram apenas alguns dos pioneiros que marcariam suas assinaturas, transformando metrôs em verdadeiros museus sobre rodas.

As assinaturas que começaram no Harlem e Bronx e sua simbologia transgressora, somada a seu poder de fazer com que os jovens da periferia se sentissem visíveis, tornar-se-iam em pouco tempo uma das maiores representações de expressão contracultural da história. Como narrado em off no documentário Bomb It, de 2008, nos mais distintos pontos do planeta “quando o sol se esconde, se escuta pelas ruas o som do spray”, e no Brasil não seria diferente.

SÃO PAULO, 1970/1980: O PIXO COMO LAZER

Se na década de 1960 o pixo surgia como ferramenta de representação política (com elementos socialistas e anarquistas, na maioria das vezes) em Paris, e nos anos 1970 foi engolido como elemento de uma cultura marginalizada em Nova York, foi em outra metrópole, a cidade de São Paulo, no Brasil, em meados de 1980 que ele sofreria sua nova transmutação, e se tornaria, oficialmente, uma forma de lazer da periferia, quase um esporte.

Formava-se assim a trindade que move a pixação até a atualidade, como bem relata Choque, fotógrafo paulista famoso por registrar o cenário desta modalidade na capital paulista, no documentário “Pixo”, de 2009.

“Existem três motivações básicas para o pixador se envolver com essa cultura de rua: o primeiro é reconhecimento social, o segundo é lazer e adrenalina e o terceiro o protesto. ”

Seguindo os passos do Maio francês de 1968, os primeiros pixos de que se tem registro no Brasil remetem ao final dos anos 1960, como protestos contra a ditadura militar. A segunda fase do graffiti e do pixo surge, curiosamente, a partir de grupos ligados à arte: poetas, artistas visuais, técnicos em desenho, entre outros, que diante da repressão dos anos 1970, representada vivamente pelo AI-5, não encontravam modos de se expressarem livremente, e como bem destaca RAMOS “aproveitaram a onda ‘nova-iorquina’ dos grafites dos trens de metrô, para espalhar suas poesias, ícones e mensagens pelas ruas paulistanas” (1994, p. 87).

Em depoimento a Ramos (1994), Walter Silveira, considerado o primeiro poeta a inscrever versos em muros paulistanos, conta que suas pixações não remetiam tão somente ao conteúdo poético, mas também a um estudo sobre tipografia, tratava-se de uma “especulação do ato gestual da escrita, a caligrafia, buscando os limites da letra enquanto design.” Silveira delimitava assim, sem o saber, uma das características marcantes das tags nacionais: a originalidade tipográfica.

Junto à adesão de artistas e de movimentos políticos, já nos anos 1970 as assinaturas começavam a pipocar em partes de São Paulo, tornando-se, uma década depois, uma representação marginal de lazer e expressão para jovens, em sua maioria da periferia. Segundo Choque, o precursor “inocente” dessa nova modalidade atendia pelo pseudônimo de “Cão Fila Km 126”. “Ele era um dono de um canil que não era bem pixador, mas era um dono de um canil que vendia cão fila e saiu espalhando pela cidade essa mensagem: ‘Cão fila Km 26’” (2009). Como ocorrido em Nova York com Taki, a curiosidade e a fama que giraram em torno da inscrição “Cão Fila” foram os impulsionadores para a proliferação das tags também no Brasil.

Cão Fila, um dos pioneiros do pixo nacional (Foto: Sérgio Sade)

Comum também aos primórdios da street art estadunidense e da cultura do hip hop, em São Paulo o pixo tornou-se uma forma de os jovens saírem das sombras para gritarem sua existência frente à cidade com maior população da América Latina, bem como uma forma de “disputa esportiva” entre gangues.

As regras do jogo são gravar o nome na maior quantidade de lugares, e o mais alto possível. Na obra “Ttssss… A grande arte da pixação em São Paulo, Brasil”, o jornalista Xico Sá poetiza a questão da visibilidade, bem como da adrenalina da modalidade difundida do centro-oeste para o resto do país:

“Pixo, logo assusto, impressiono, e existo no topo, invertendo a pirâmide escrota e naturalista. […] Eis o alfabeto de vera da PEDAGOGIA DO OPRIMIDO”. (2005, p. 7)

(O artigo acima é o primeiro capítulo de meu trabalho de conclusão de curso de curso para obtenção do Grau de Bacharel em Comunicação Social — Habilitação em Jornalismo, pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Em forma de grande reportagem, a monografia analisou como o movimento da pxiação se desenvolveu em Caxias do Sul, atentando-se, sobretudo, a sua importante utilização enquanto instrumento de ativismo político. Na primeira parte do trabalho atentei para a origem do pixo no mundo e os três grandes movimentos que o modificaram ao longo da história.)

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