A morte que faz nascer a esperança

Não parece muito, mas uma frase pode mudar a vida de várias pessoas que estão a espera de um órgão e/ou tecido

Camila Agner
Post Mortem
8 min readJun 9, 2016

--

Se você é uma pessoa que pensa na morte, já deve ter pelo menos considerado algumas possibilidades para depois da sua partida deste mundo. Quem vai ficar com aquele seu livro favorito, quem vai ter o privilégio de ter aquele objeto decorativo que você tanto ama, como será a doação dos seus órgãos e tecidos…

Opa. Para tudo. Doação de órgãos e tecidos? Sim. Nós precisamos falar sobre isso.

Foto via Secretaria de Saúde do Paraná

Desde maio desse ano, Andressa Cavalheiro, de 21 anos, tem a esperança de poder enxergar melhor. No dia dois desse mês, a jovem acadêmica de Jornalismo passou por uma cirurgia delicada: ela recebeu uma nova córnea no olho direito.

Produtora de TV e residente em Cascavel, Andressa fez o procedimento no Instituto de Visão, mas até chegar ao centro cirúrgico, ela percorreu um longo caminho. “Eu descobri que estava apta para receber o transplante ao mesmo tempo em que eu descobri a doença que eu tinha. Mas naquela época eu era muito nova e a minha doença poderia se desenvolver ainda mais, por isso eu não entrei na fila do transplante imediatamente. Faz quase 10 anos que descobri a doença, mas só entrei na fila há mais ou menos 4 anos”, observa.

Andressa comenta a cirurgia e o processo da recuperação

A DOENÇA

Aos onze anos, Andressa descobriu ser portadora da doença de ceratocone. Este problema afeta diretamente a córnea, causando um ‘estiramento’ no tecido ocular. Com o tempo, leva ao surgimento de miopia, astigmatismo irregular e baixa da acuidade visual. Os sintomas são diversos: vão desde as típicas dores de cabeça até a troca frequente das lentes de óculos, que passam a não ‘suportar’ mais as necessidades dos pacientes.

Gif via Hypeness

Andressa é prova viva dessa diminuição na acuidade visual. Mesmo usando lentes de contato com graus elevadíssimos tanto para miopia quanto para astigmatismo, as dificuldades para enxergar continuavam presentes. E foi com todas essas dificuldades que os médicos decidiram: era hora de deixar as medidas paliativas de lado para encaminhar a paciente a uma vida melhor. Mas colocar o nome de Andressa Cavalheiro na fila de um transplante de córnea vai muito além de simplesmente acionar a comissão responsável: aceitar a ideia de que o transplante é a última saída não é a coisa mais fácil a ser feita.

“Saber que você precisa de uma doação, no primeiro momento, é espantoso: você não espera isso. Mas eu tentei aceitar de uma maneira positiva e que eu era muito nova e que poderia resolver o meu problema de visão — que era o que mais me preocupava. Pela legislação brasileira, eu já era considerada cega e o transplante era a esperança de que o meu problema seria resolvido de vez”, relembra Andressa.

Com o aceite, Andressa teve tempo para pensar. Foram quatro anos de espera. Mas bem de verdade, foram quatro anos de agonia: primeiro por sentir a visão se despedindo a cada dia e segundo por saber que ainda não era a hora do transplante. Mas a boa notícia chegou — dizem por aí que ela sempre chega.

"Me ligaram numa quarta-feira e a cirurgia já estava marcada para a próxima segunda. Então, eu tive cinco dias pra me preparar, pensar e colocar as ideias no lugar. A primeira reação de fato foi agradecer, mesmo que mentalmente, pra pessoa e pra família dessa pessoa por essa doação… Porque é algo que eu já esperava há muito tempo e que resolveria boa parte da minha vida. A reação é de muita felicidade e gratidão mesmo”, destaca.

O resumo é a gratidão
Foto via Secretaria de Saúde do Paraná

Gratidão e felicidade que mais de 2 mil paranaenses esperam sentir. Isso porque, segundo dados da Secretaria de Saúde do estado, essa é a quantidade de pessoas nas filas de espera pelos transplantes de órgãos e tecidos. O processo é longo: muitas pessoas, assim como Andressa, permanecem numa espera agoniante pela ligação dos centros médicos Brasil afora.

Mais dois

No dia 12 de maio, uma paciente da Uopeccan realizou uma cirurgia para retirada de um tumor no cérebro. Depois de uns dias, ela passou a apresentar uma regressão significativa no quadro clínico… No dia 17 de maio, foi confirmado o óbito e logo já começaram os preparativos para uma possível captação, que ocorreu às 08h30. “A gente vai conversando com a família, explica o que aconteceu com a paciente e oferecemos a possibilidade da doação de órgãos. Nessa abordagem, a família foi muito suscetível. De imediato, o filho e o marido da paciente aceitaram realizar a doação”, contou Gladys Rodrigues, gerente de serviços do Hospital.

Essa paciente, no início da captação, poderia doar as córneas, o pâncreas e os rins. No andamento do protocolo, algumas possibilidades foram descartadas e foram, no fim, captados os dois rins.

Mais três

No dia 04 de junho, a assessoria de imprensa do HUOP, o Hospital Universitário do Oeste do Paraná, comunicou que uma captação de órgãos estava sendo realizada durante a madrugada. A cirurgia começou às 4 da manhã e às 7h30, os órgãos já estavam nas caixas, prontos para irem até Curitiba.

Naquele dia, um paciente que chegou ao hospital com um quadro de AVC teve a morte constatada. Ele passou por todo o protocolo de morte encefálica e, ao final, a família, que vinha de Corbélia para acompanhar todo o longo e agoniante processo, recebeu a possibilidade de doar os órgãos do senhor que beirava os 60 anos. A enfermeira membro da CIHDOTT, a Comissão Intra- Hospitalar de Transplante de Órgãos e Tecidos, Cristiane Costa Becker, acompanhou todo o procedimento e às 08h — quando a equipe vinda do Hospital Angelina Carón, de Curitiba, seguia até o aeroporto — se declarou satisfeita com o procedimento. “Foi tudo tranquilo. A cirurgia correu bem”, contou, nos bastidores.

Enfermeira comenta a importância de deixar, em vida, a vontade de doar os órgãos
Foto por Camila Agner

Naquele dia, foram captados dois rins e um fígado. Sobre a captação, ela contou os detalhes. “Após uma série de testes para título de diagnóstico foi constatado que o paciente estava em morte encefálica. Foi repassado para a família, que entendeu a situação. E aí foi ofertada a essa família a possibilidade de doar os órgãos desse paciente e a ideia foi aceita. Foram captados dois rins e um fígado que estão sendo agora transportados até Curitiba e após alguns exames de compatibilidade, vão ser transplantados em alguns pacientes que estão na fila de espera”, contou no dia.

Mais cinco

No dia 20 de abril, o HUOP, Hospital Universitário do Oeste do Paraná, realizou uma captação de órgãos. Mas antes disso, uma paciente chegou para ser atendida com aneurisma cerebral. Ela não resistiu e deu-se início ao protocolo de morte encefálica. Com o óbito declarado, a família foi avisada e a resposta foi sucinta: eles decidiram que todos os órgãos que pudessem ser doados deveriam ser retirados. A enfermeira da UTI do HUOP, Joelma Terêncio, que também é membro da Comissão Intra Hospitalar de Transplante de Órgãos e Tecidos, acompanhou tudo.

Joelma ressalta a importância da conscientização
Foto por Camila Agner

Segundo ela, a doação foi grandiosa, pois se tudo desse certo, somente esta captação poderia beneficiar cinco pessoas nas filas de espera. “Foi uma paciente de 41 anos. Depois de terminado o protocolo, a comissão de transplantes atua com a família. Fizemos a solicitação da doação de órgãos e num momento de dor, eles aceitaram prontamente. No caso dessa paciente, nós pudemos doar o coração, os rins, as córneas e os globos oculares”

É preciso dizer aos familiares. A enfermeira alerta: são eles que serão responsáveis pela decisão da doação

O RENASCER DA ESPERANÇA

Andressa relata que a pior parte de estar numa fila de espera do transplante é a incerteza. Quanto a isso, no entanto, os dados não são muito favoráveis. No ano de 2013, o Paraná recebeu 623 notificações de possíveis doadores, mas apenas 217 terminaram com órgãos ou tecidos encaminhados a transplantes. O motivo? Recusa. Segundo a Central Estadual de Transplantes (CET), mais de 60% das doações não ocorrem por causa da recusa da família dos potenciais doadores.

Foto via Secretaria de Saúde do Paraná

Eu já não tinha mais tanta esperança de resolver meu problema pelo tempo da fila de espera, pela gravidade da minha doença… E cada vez que eu ia no oftalmologista, era uma decepção diferente. Mas no dia que a gente recebe a notícia, tudo muda, sabe? A gente volta a ter esperança. A principal sensação é de gratidão: mesmo sem conhecer a família do doador, a gente se sente muito agradecido por essas pessoas terem aceitado doar os órgãos do familiar. Realmente, o sentimento é de gratidão. (Andressa Cavalheiro, sobre a notícia do transplante de córnea)

Foto via Secretaria de Saúde do Paraná

Mas a luta é válida. A cada nova notícia de que uma captação será possível, uma enfermeira da CIHDOTT comemora. A cada novo órgão que tira uma pessoa da fila de espera, a família celebra o sopro de vida.

Foto via Secretaria de Saúde do Paraná

Para celebrar o sopro e para dar aquela alegria a uma enfermeira militante da causa da doação, é necessário falar sobre isso (lembra do nosso papo lá do começo desse texto?). A enfermeira Cristiane Becker esclarece. “Num momento de dor, a família é que vai autorizar essa doação. Mesmo que o paciente diga que quer doar ou que não quer doar, posteriormente é a família que tem esse poder de autorizar ou não. Então converse com a sua família em casa, diga dessa sua vontade de ajudar o próximo que depois fica tudo mais fácil”, diz. “Nada adianta você deixar escrito se a família não autorizar. O que vale é a assinatura da família. Eles que são os responsáveis por você naquele momento”, acrescenta Joelma Terêncio. “Se um ente querido partir, deixe ele viver em outros corpos — isso é magnífico e várias outras famílias vão se sentir eternamente gratas também. Isso é maravilhoso”, completa Andressa.

“A sensação é indescritível. Eu era considerada cega pela legislação brasileira e isso pesava muito pra mim, eu queria acreditar que aquilo não era real… Mas a partir do momento que veio a notícia de que o transplante saiu, é como se a gente tirasse um peso das costas. Para quem tem receio de doar seus órgãos, vale aquele pensamento de que você está partindo e seus órgãos estão ficando: então porque não doar e reviver em vários outros corpos? É uma forma de trazer esperanças para outras famílias e salvar várias outras vidas. Você salva vidas sem ser um médico ou algo assim: doar órgãos é um ato incrível” (Andressa Cavalheiro sobre a doação de órgãos)

O recado de Andressa, que recebeu um sopro de vida e esperança por meio da doação de órgãos e tecidos
Foto via Secretaria de Saúde do Paraná

--

--

Camila Agner
Post Mortem

Jornalista resgatando o hábito de escrever “só por escrever”.