Apenasmente fantástica

Uma pena que “Saramandaia” não tenha tido melhores resultados.

Bruno Viterbo

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Se muitos telespectadores reclamam — e com razão — da falta de boas novelas que reflitam um tempo, uma época e que façam pensar, “Saramandaia” foi uma obra de encher os olhos. E as cabeças.

No remake — na verdade, uma obra inspirada — do original de Dias Gomes, o autor Ricardo Linhares permitiu-se criar novos personagens, uma história mais enxuta — apenas 56 capítulos —, novos “poderes”, mas sem perder a crítica social que permeou a primeira versão. Se no original de 1976 havia o temor da ditadura, em 2013 “Saramandaia” pegou carona nos protestos de junho e nos atuais momentos da política e dos moralismos. Uma coincidência soberba, diria o professor Aristóbulo (Gabriel Braga Nunes).

O apelo da nova versão estava nos efeitos especiais. “Saramandaia” foi cercando-se de uma expectativa que pouco se viu. Afinal, os efeitos de “pratrasmente” eram primários, mas uma tentativa de um novo modo de produção. Hoje, os efeitos especiais caminharam lado a lado com uma história consisa, porém sem sobressaltos.

Porém, “Saramandaia” pegou o embalo da história apenas a partir da metade da trama em diante. A expectativa anterior sucumbiu: a audiência não correspondeu (média geral de 15 pontos, abaixo das antecessoras “O Astro” com 19 e “Gabriela” com 17) e a história só deslanchou com os descobrismos dos poderes de grande parte dos personagens.

A novela, apesar da produção que recebeu muitos investimentos por conta dos efeitos especiais, mostrou-se convencional. Até demais. Foram poucos os momentos em que a fotografia se sobressaiu. A primeira metade da novela foi morna, apostando num romance proibido de Vitória Vilar (Lilia Cabral) e o vilão Zico Rosado (José Mayer). O casal não agradou — apesar das atuações brilhantes, emocionantes — e a tarefa ficou a cargo dos casais jovens, como o também protagonista visioneiro João Gibão (Sérgio Guizé) e Marcina (Chandelly Braz). Aliás, Sérgio Guizé brilhou. O ator, estreante na TV, mostrou-se um dos melhores talentos de uma nova geração. Ou de um novo tempo, que tanto seu personagem propagou — e voou.

O último capítulo revelou-se novidadeiro: o casal protagonista Zico e Vitória terminou junto. E morto. Apaixonados, os dois sucumbiram às ruínas da casa de Zico e morreram soterrados, assim como suas vidas: ele perdeu a família, não teve o amor da filha e não ficou com o neto; ela, sem o apoio da filha em relação ao pai e vendo que não teria mais solução, não resistiu à paixão que a fazia derreter, mesmo com as maracutaias e crimes de Zico. Surpreendente.

João Gibão também mostrou outro poder: além de ter visões e voar, o homem alado é capaz de fazer o tempo voltar: Gibão salvou Marcina de levar um tiro que foi disparado por Zico. No mais, a redenção de Maria Aparadeira (Ana Beatriz Nogueira), a união de Enconheu (Matheus Nachtergaele) com Bitela, a irmã gêmea de Dona Redonda (Vera Holtz, as duas), a revelação de que o delegado Petronilio (Theodoro Cochrane) é gay,a volta do corpo de Beliário (Luiz Henrique Nogueira) a Pupu (Aracy Balabarian), a despedida de Laura (Lívia de Bueno) e da mãe Helena (Angela Figueiredo) e a surpreendente excomungação do padre Romeu (Marício Tizumba) por ter casado um lobisomem (o professor Aristóbulo, Gabriel Braga Nunes) com Risoleta (Débora Bloch).

“Saramandaia” fez refletir nossos costumes, nossas diferenças e nossos preconceitos. O diferentismo de cada personagem, o preconceituosismo velado, o particularismo de cada um, fez da trama uma ótima oportunidade de mostrar o que temos de melhor e de pior. Os protestos de junho eclodiram com a estreia da novela, que talqualmente também tinha um protesto a favor das mudanças. A corrupção de Zico Rosado, tão importante na trama, tem praticamente os pés na realidade: o mensalão virou mesadão. A religiosidade também cumpriu seu papel ao mostrar o que as instituições religiosas tem de pior: o charlatanismo, o uso da ma fé e o preconceito.

O voo final de João Gibão ao som de “Pavão Mysteriozo” não teve o mesmo impacto da primeira versão. A revelação de que ele tinha asas para a cidade inteira não foi catártica: ele tinha algo mais importante a fazer. Na cena final, revelou-se que muitas crianças — a essa altura João e Marcina já com uma filha, e com asas — estão nascendo aladas, sinais de um novo tempo.

“Saramandaia” é a prova de que audiência menor não representa qualidade inferior. Muito pelo contrário. A novela provavelmente ganhará prêmios pela qualidade técnica e, quem sabe, algum Emmy International (os gringos adoram essas “viagens”). A novela refletiu um pouco dos costumes brasileiros. Foi uma novela essencialmente brasileira: os clichês estavam lá, os regionalismos, a sede por mudança. O último capítulo marcou 17 pontos, uma audiência satisfatória. Mas não à altura do que “Saramandaia” ofereceu.

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Bruno Viterbo

Redator, às vezes fotógrafo (como na foto ao lado) e às vezes jornalista. Mas sempre encontrando tempo para assistir alguma coisa (boa) na TV.