Fui até o fundo do poço e voltei

Gustavo Serrate
Povaréu
Published in
7 min readOct 25, 2016

Edson lava carros no estacionamento ao lado da catedral de Brasília. Um dia eu estava estacionando por ali e conversamos. Ele me contou como passou 14 anos encarcerado na penitenciária Papuda, e como hoje, o filho dele está no mesmo caminho. Um dia ele tentou aconselhar o filho a sair desse caminho e recebeu uma resposta dura: "Pai, meu maior exemplo é você". O relato a seguir é chocante e conta as tentativas de acerto, e os grandes erros da vida desse homem.

Edson Alves de Oliveira — 13/05/1968

Fui feito no Rio Grande do Norte, vim da Bahia de pau-de-arara na barriga da minha mãe com outros sete irmãos. Nasci em Sobradinho. Minha mãe era pobre, tinha um caráter muito forte. Sempre quis me educar para conquistar as coisas através do trabalho e do estudo, mas eu era adolescente e sempre rejeitei isso. Eu não queria saber de estudo nem de nenhuma profissão. Eu entrava no mercado, roubava biscoito, chocolate. Eu era pobre, queria comer e fazia isso.

Eu sempre tive uma facilidade de ser iludido pela vida errada.

Na época tinha o mercado SAB, e quando pegavam a gente, nos colocavam para limpar o mercado, varrer o chão, esse era o castigo. Não existia esse negócio de chamar a polícia para menores de idade. Eu sempre tive uma facilidade de ser iludido pela vida errada. Aos 18 anos eu casei e fui morar na casa da minha sogra. Ela me deu uma lanchonete para que eu tomasse conta, mas não gostei de ser manipulado por ela. Arrumei um emprego fazendo cobranças em consórcio. Comecei a desviar dinheiro do caixa do consórcio, e de todo dinheiro que entrava eu desviava pelo menos a metade. Eu comecei a comprar carro, moto, casa. Eu sempre tinha tudo do bom e do melhor. Em três anos de existência, o dono do consórcio nunca entregou um carro para ninguém. O consórcio foi fechado pela primeira DP e nos proibiram de fazer novos consórcios enquanto o processo estava correndo. Com o dinheiro que me restou eu comprei um lava-jato, parece que era o meu destino lavar carros.

Meu vizinho no lava-jato tinha uma das maiores lanchonetes de Sobradinho na época. Era a Lanchonete 2001. Por trabalharmos tão próximos, às vezes eu recebia ligações na lanchonete deles. Uma vez, quando eu entrei naturalmente, na intimidade que tínhamos, o casal dono da lanchonete estava numa discussão feia. Ele saiu e eu perguntei a ela: “O que aconteceu Jaqueline?”. Ela respondeu que tinha apanhado dele, e que não queria se separar porquê ela ficaria sem nada.

Naquele momento essa palavra foi de brincadeira.

Eu falei: "Então mata ele"

Naquele momento essa palavra foi de brincadeira. Puramente uma brincadeira. Eu falei: “Então mata ele”, e saí de volta para o meu estabelecimento. Duas horas depois ela me chamou na e conversamos. Ela disse que não tinha coragem, mas me perguntou se eu conhecia alguém que fizesse esse serviço pra ela. Eu me propus a fazer o serviço. Mas ela me falou a forma como ela queria e eu mudei de idéia, acabei convidando um conhecido meu para fazer o serviço. Ele pediu um valor, nós pagamos o triplo do que ele pediu. Demos fuga, demos arma. Fizemos todo um esquema. Até acompanhei ele na noite do crime. Ele fez o que ele tinha de fazer. Matou o cara. É uma coisa que dói no meu coração quando eu falo isso. Muitas vezes já pedi perdão a Deus, nosso pai, por ter feito isso.

O único tipo de conversa que tínhamos era marcarmos para nos vermos aqui do lado de fora para cometer novos crimes.

Após o serviço, comecei a me envolver com a viúva. Depois de nove meses de caso com ela, veio um mandato de prisão para mim e para ela. Fui condenado a 12 anos de cadeia. Eu tinha a companhia da minha família, minha mulher e da minha mãe. Nessa primeira vez que estive na cadeia, não foi uma tortura completa. Drogas pra mim não faltavam, buceta pra mim não faltava, porquê além da buceta da minha visita, tinha a mulher que foi presa comigo. Aquilo pra mim foi simplesmente isso, um internato. Mas no sistema carcerário, o CIR (Centro Interno de Reintegração), não reintegra ninguém para a sociedade. Pelo contrário, aquilo é uma faculdade para o crime. Eles não dão condição de trabalho, nem estudo. Não é para regenerar o homem. Ficavam, naquela época, de 400 a 500 presos, hoje deve ter o dobro. Todos eles tem o papo do crime. Um é ladrão de carro, o outro traficante, ladrão de banco. O único tipo de conversa que tínhamos era marcarmos para nos vermos aqui do lado de fora para cometer novos crimes.

O que ainda cheguei a aprender lá dentro foi a cortar cabelo. Virei barbeiro e ia em todos os pátios para fazer o corte dos prisioneiros. No pátio do HIV eu via aqueles homens doentes, condenados não só pela cadeia mas pela morte. A situação deles era pior do que a nossa. Lá, quase todo dia víamos um aidético morrendo. Na época não tinha apoio de nenhuma organização para quem tinha AIDS. Vi aquilo e fui me instruindo para quando saísse do sistema carcerário, fazer uma campanha de apoio as pessoas que tem AIDS. Eu tenho umas boas idéias. As vezes as idéias vem, eu fazia acontecer. Eu perguntava pros internos com AIDS e eles diziam que não tinham apoio. Tudo aquilo me doía. Isso foi nos anos 90.

Mas por melhor que eu estivesse no sistema carcerário, você ficar uma semana inteira trancado, comendo uma comida ruim, vendo polícia, cheio de outros encarcerados. Você não vive, você sobrevive. Apenas ouvindo o mundo sendo vivido lá fora. Tínhamos televisão na cela, víamos noticiário, programas de televisão, tudo acontecia mas não podíamos participar.

Quando sai de lá, comecei a roubar moto. Todo dia roubava moto. Depois da cadeia eu tinha contatos de Minas Gerais, da Bahia. Vendia uma moto por 2 salários mínimos. Como eu era um cara sem instrução, teria que trabalhar o mês inteiro para ganhar esse salário. Eu preferi cair pra vida errada.

Não me faltou oportunidade. Minha mãe tava viva e me dava qualquer apoio para fazer coisas boas. Quando eu sai, minha mãe me lembrou “Você não ia fazer uma campanha para ajudar as pessoas com AIDS ?”. Eu comecei a visitar clínicas, hospitais. Tive até um apoio da Secretaria de Saúde de Brasília. Eles me cederam quase 70 mil preservativos para apoiar essas pessoas. Mas eu não tinha uma boa mente. Eu peguei aquele monte de preservativos, comecei a procurar meus apoiadores, algumas clínicas, até o Correio brasiliense. Então na época, eu estava envolvido com uma pessoa, e essa pessoa me contou que havia outra pessoa, dono de uma rede de farmácias, que se interessava em comprar aquela quantidade de preservativos. Ai pela minha mente magnífica, excepcional… segui essa idéia e vendi esses preservativos.

O fundo do poço foi ter conhecido a “pedra”. E fiquei algemado na pedra.

Voltei para o sistema carcerário. Nesse período minha mãe já tinha morrido. Passei no total 14 anos e cinco meses na cadeia. Mas o fundo do poço para mim não foi isso. O fundo do poço foi ter conhecido a “pedra”. E fiquei algemado na pedra.

Nesse estacionamento que estamos aqui agora, se fosse naquele período, eu já teria saído pra jogar um balde de água no corpo, teria pegado o ônibus e ido para o Paranoá para gastar o dinheiro do meu dia de trabalho em mais uma pedra. Quando eu voltasse de noite, teriam algumas prostitutas me esperando para usar a pedra. Até que depois de quase dois anos nessa vida, um dia Deus me mostrou o que era a morte. Minha alma saiu do meu corpo, bem embaixo daquela árvore ali. Tinha acabado de chegar do Paranoá. Eu tinha um colchão, fui para baixo da árvore e comecei a fumar. Meu corpo ficou paralisado. Minha alma saiu do meu corpo e começou a vagar pelos locais por onde eu ficava a noite andando junto as prostitutas. Eu andei por tudo aqui, ví prostitutas fazendo programa, vi os caras fumando baseado, e eu clamando: “pai tem misericórdia de mim”. Clamando misericórdia pra que minha alma voltasse pro meu corpo para que eu pudesse viver. Eu queria viver.

Eles falavam “Eu falei para ele parar de se meter com isso. Ele era um cara legal. Ele trabalhava tão bem”.

Prometi ao pai que nunca mais colocaria essa droga na minha boca. Minha alma foi voltando e de repente eu vi o dia amanhecer. Então as pessoas começaram a chegar, meus clientes. E viram meu corpo lá. Eles falavam “Eu falei para ele parar de se meter com isso. Ele era um cara legal. Ele trabalhava tão bem”. Não teve uma pessoa que falou que eu era errado. E eu ainda estava fora do meu corpo. Eu tinha morrido.

Ai de repente, retornamos. A minha alma foi e voltou. Comecei a movimentar meu corpo de novo. Eu me prostrei de joelho e agradeci meu pai do céu e disse: “Pai, nunca mais coloco uma pedra na minha boca”. Eu mudei totalmente, mas não foi fácil: A abstinência veio. Eu continuei morando na rua, prostitutas me chamavam pra fumar pedra todo dia. Mas eu resisti.

Eu falei com Deus: “O senhor tá me concebendo essa visão maravilhosa. Quero consumar esse projeto de vida. Quero ter minha vida digna. O homem que mora na rua não tem condições nenhuma.” Eu sai e fui para um hotel e disse: “Estou indo para um motel, mas só vou sair de lá quando eu estiver numa mansão, na beira do lago sul”. Estou morando no hotel há três anos e pouco.

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