Sobre lembranças, cabelos e árvores

O tempo a gente percebe pelos cabelos, mede pelos caules e confirma pelas lembranças — Um relato sobre meu avô, um velho conservador ranzinza e minha tia Naide, uma eterna adolescente

Gustavo Serrate
Povaréu

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Minas Gerais foi o segundo lar da família Maia. Geraldo, seus oito filhos e a esposa Carmen. Chegaram do sertão nordestino com uma cachorra vira-latas que não era a “Baleia”, mas “Lessie”, em homenagem a cadela mais famosa do mundo, da TV norte-americana. Moravam em um bairro do subúrbio chamado Contagem. Entre morros e ladeiras, carregavam uma vida pobre, de luta pacífica. Geraldo trabalhava como operário nas indústrias siderúrgicas. Dois de seus filhos, Gessé e Batá, tornaram-se caminhoneiros. Marcos foi para Brasília, batalhou e venceu a vida entre os candangos. Gilse casou e tornou-se dona de casa, assim como Débora. Cleide é coordenadora pedagógica, gosta de estudar. Paulo trabalha com madeira e elaboração móveis para grandes empresas e Naide foi uma adolescente trabalhosa, fugia de casa para viajar em companhia dos hippies, que o pai Geraldo, um conservador, odiava.

Depois de adulta, Naide saiu de Belo Horizonte para visitar nossa casa em Brasília. Muitas vezes passávamos da meia noite ouvindo histórias dela. Eram as melhores histórias, pegava carona em estradas, protegia animais e tinha sempre um jeito amoroso com crianças. Cabeleireira profissional, ela estava acostumada a trabalhar conversando, ouvindo e contando causos. Para nós, ela contou uma história sobre o pai Geraldo, nosso avô, que morreu de Alzheimer há pouco.

Quando criança, Naide observava o pai todo dia no quintal, esperando o coqueiro dar frutos. O lugar onde moravam não era terra boa pra se plantar coco, mas Geraldo tinha paciência. Naide dentro de casa encostada no parapeito da janela com os braços suspensos e o queixo apoiado. Todo dia Seu Geraldo aparecia no Coqueiro, se abaixava passava a mão na terra e examinava os frutos pequenos, em fase de crescimento. Ameaçavam despontar, mas ele reclamava: “Ohh demora. Parece que não cresce nada aqui”. E a cena se repetia, dia após dia.

À tardinha Naide ia para o comércio escondida da mãe e conversava com a cabeleleira. “Senta ai menina”, dizia. Naide via os cabelos caindo no chão e ouvia as histórias sobre filhos problemáticos, vizinhos cornos, vizinhos esnobes, cães raivosos e remédios pra doenças. Ela gostava daquele ambiente. O lugar onde se corta os cabelos é onde se desprende do passado. Tanta história existe em cada centímetro de cabelo, quando você passa a tesoura é um desprendimento simbólico.

Um dia, com cabelos no pé e orelhas atentas, Naide ouviu uma conversa botânica entre a cabeleleira e uma cliente. “Garota… pra fazer planta crescer não tem coisa melhor do que prego enferrujado. Você prega um no meio do caule e espera, é uma beleza”. Naide arredou o pé e correu pra casa animada: “Vou ajudar meu pai”, pensou.

Seu Geraldo tinha uma garagem velha cheia instrumentos de trabalho e ferramentas. Naide catou um martelo e uma dúzia de pregos enferrujados e foi pregando prego por prego na árvore do pai. A cada estocada o jovem coqueiro tremia, ela prendeu uns 10 ou 11 pregos dando a volta na árvore. Prendia um, dava um passo pro lado e prendia outro, cobrindo toda a circunferência do caule.

Depois desse dia Seu Geraldo voltou ao jardim. Tudo normal, mas nos dias seguintes reparou que o coqueiro não crescia, até que começou o declínio. Um dia, a família reunida jantava em casa de noite. Seu Geraldo comia aos trancos e barrancos, nervoso comentou: “Droga. Logo agora que o fruto tava quase maduro essa porcaria começou a morrer”. E analisando a árvore atentamente, Seu Geraldo encontrou um monte de pregos fincados na base do caule da árvore estancando a seiva. Não tinha mais jeito, o coqueiro estava morto.

Seu Geraldo revoltado, destruiu o Jardim, arrancou o coqueiro, as flores e decepou outras árvores. Depois desse dia Geraldo nunca mais gostou de árvores.

Anos depois, Dona Carmen tinha um jardinzinho próprio e Geraldo já estava consumido pela dependência do álcool. Chegou no quintal da esposa e cheio de raiva e arrancou todas as plantas deixando o jardim devastado. Destruiu também o quintal da filha Gilse numa visita a casa dela. Passou a odiar árvores e jardins. Odiava também as árvores enormes no percurso do trabalho para casa. Ninguém entendia o porquê, exceto Naide.

Em 2005, quando Naide já tinha uns quarenta anos e Seu Geraldo estava prestes a falecer, ele teve um lapso de memória e comentou com a filha sobre o episódio: “Matar minha árvore foi a pior coisa que você me fez, Naide. A pior coisa que você me fez na vida”, Naide deu um sorriso amarelo, feliz pelo resquício remanescente de memória do pai. Semanas depois Geraldo morreu, completamente calvo, sem nenhuma lembrança remanescente cravada na raiz de seu couro cabeludo.

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