Difícil de Explicar

Bruno Barbieri
Pra ler e ouvir
Published in
9 min readSep 30, 2015

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Pra ler ouvindo: The Strokes — Hard to Explain

Alice tinha apenas 19 anos quando viu pela primeira vez aquele rapaz de calça jeans rasgada, camiseta do The Addicts e um moicano azul que mais parecia uma antena. Ele era bonito como os Garotos da Capricho e tinha a atitude dos vocalistas das bandas que ela assistia todos os dias no Disk MTV, ou seja, era perfeito! Depois desse dia, sempre que Alice via aquele moicano passando pela faculdade, sua boca secava, as mãos ensopavam, um frio inexplicável congelava sua barriga e por alguns segundos tinha a certeza que seu coração tinha parado.

O rapaz de moicano azul se chamava Paulo e apesar do nome, de santo não tinha nada. Fazia o que queria e o que bem entendia. Dizia não ter namorada, mas muitas o namoravam. Tinha moicano, mas não era punk. Estudava arquitetura, mas não gostava de desenhar e o mais próximo de futuro que ele planejava era o bar da próxima cerveja. Para Alice, isso só o deixava ainda mais interessante.

Finalmente em uma cervejada do centro acadêmico de arquitetura, Alice foi apresentada ao “Deus” nada santo do moicano azul. Eles passaram quase a tarde toda conversando. Na verdade, ele passou quase a tarde toda falando, enquanto Alice só conseguia se comunicar pelo idioma mais falado por pessoas que conhecem suas paixões platônicas, a língua do: “Uhum!”. Ele falava, falava e falava e ela: Uhum!, Uhum!, Uhuuuummmmmmm! e por incrível que pareça, Paulo adorou o jeito tímido daquela menina calada. Enquanto as outras faziam de tudo pra aparecer, ela se escondia atrás dos óculos redondos e da franja que cobria metade do rosto. No fim daquela tarde, Paulo a convidou pra sair e Alice soltou o seu último “Uhum!” daquele encontro.

Na noite combinada, a menina trocou de roupa 68 vezes antes dele chegar e mesmo assim odiou a combinação que vestia. Eles foram parar no bar preferido de Paulo, ou o boteco sujo do lado da faculdade. Ela tomou cerveja quente, comeu coxinha fria e ainda fez xixi no banheiro sem porta. Coisas que ela jamais imaginaria fazer, mas fez tudo com um sorriso gigante no rosto.

Passaram a sair constantemente e mesmo meses depois ela sempre ficava arrepiada quando ouvia aquela voz rouca no celular. Nunca sabia o que usar antes de um encontro. Tremia junto quando sentia seu celular vibrar com uma mensagem dele e não entendia como podia ficar sem ar a cada final de beijo. Ela finalmente estava vivendo o que achou só existir nos filmes. Isso sem falar no sexo. “Não Alice, orgasmos múltiplos não são uma lenda.” — ela repetia essa frase toda manhã quando acordava ao lado dele. Até que em uma madrugada fria de São Paulo, o agora um pouco mais santo Paulo, se ajoelhou no chão sujo do boteco e colocou um Cebolitos no dedo da garota. Alice meio sem ar, definiu aquela cena como a coisa mais romântica que alguém já tinha feito por ela.

Alice tinha a certeza de ter encontrado o amor de sua vida aos 19 anos. O cara mais lindo que ela já tinha visto dormia ao seu lado e não roncava. Ninguém fazia seu coração acelerar daquele jeito e ela não queria que ele desacelerasse nunca mais. Já Paulo, não acreditava até agora como tinha sido fisgado por uma menina tão quietinha. Ele adorava o sorriso escondido dela, as longas piscadas de olho que ela dava quando ficava com vergonha e principalmente o fato dela sempre tentar se arrumar pra ficar mais bonita, mesmo já sendo linda só de calça jeans e moletom.

Porém, toda essa paixão louca trouxe junto um ciúmes maluco, a insegurança e claro, as brigas. Eles se amavam e se odiavam em poucos segundos. Terminavam quase toda semana pelos motivos mais idiotas e voltavam. Daí terminavam ainda mais sério. Depois voltavam. Foram 4 anos de uma rotina que os amigos próximos chamavam de “Namoro PetShop”: brigavam como cães e gatos e faziam as pazes transando como os coelhos.

Foi depois de uma dessas brigas que Paulo arrependido apareceu na frente da casa de Alice segurando um rádio gigante sobre a cabeça, igualzinho o John Cusack na cena do filme preferido da garota. Quando ela apareceu na janela, seus olhos encheram de lágrimas. Ele ajoelhou e a pediu em casamento. Alice aceitou sem pensar muito e definiu aquela cena como a segunda coisa mais romântica que alguém já tinha feito por ela.

Mas, como previsto por todos, o noivado também não durou muito. Menos de uma semana depois, eles brigaram de novo. O motivo? Alice não tem a menor ideia, mas dessa vez ela sabia que era o fim. Depois de anos e anos tentando fazer o amor de sua vida, virar o homem da sua vida, ela desistiu. Não aguentava mais aquela vida. Amar não podia ser tão difícil. Na manhã seguinte ela pediu demissão do seu ótimo emprego e foi direto para o aeroporto. Viajou para Israel para encontrar alguns familiares. “Só o amor não é suficiente, Alice.” — ela repetia enquanto chorava.

Alice chorou por quase um mês sem parar. Não acreditava que tinha deixado o homem da sua vida pra trás e se odiou muito por isso. Chorava e chorava sem parar. Quando parecia estar melhor, o choro voltava. No meio da rua. Na fila do banheiro. Em qualquer lugar e sem motivo aparente. Mas do mesmo jeito que o choro vinha sem aviso, um dia ele parou. Alice finalmente parou de chorar e prometeu nunca mais chorar por homem algum. Resolveu aproveitar a viagem e a família em Israel que ela não via desde que era criança. Passou mais um mês em paz na casa da tia e depois resolveu viajar pela Europa. Foi primeiro para Paris onde o francês básico do seu currículo lhe garantiu um emprego em um café. Em Londres, foi “cleaning lady”, mesmo sem nunca ter limpado o próprio banheiro e assim foi vivendo os meses, viajando a Europa e fazendo o que aparecesse pela frente pra pagar suas contas.

Depois de pouco mais de um ano viajando e já em paz com suas escolhas, Alice resolveu voltar. Escreveu um e-mail para todos os amigos arquitetos a procura de um emprego como gerente em algum escritório. Depois de algumas semanas, só conseguiu uma única proposta para uma vaga de assistente. Bem menos do que ela esperava, mas o suficiente para pagar as contas. Alice então entrou num avião e, depois de algumas longas escalas, chegou ao Brasil.

No primeiro dia do seu novo emprego, Alice acordou antes do despertador e se arrumou como se fosse a um primeiro encontro. Não aguentava mais usar aqueles uniformes de restaurantes e se divertiu por quase uma hora entre os velhos sapatos e vestidos. Saiu apressada e, como de costume, insatisfeita com o que vestia. No escritório, ganhou um computador, uma mesa e uma cadeira pra chamar de sua. Coisas que podem parecer simples para a maioria das pessoas, mas pra ela que passou os últimos meses em pé ou ajoelhada limpando vasos sanitários, aquele era o melhor emprego do mundo.

Logo no seu primeiro dia, Alice reparou em um rapaz misterioso e muito concentrado que sentava bem na sua frente. Ele era o único de camisa, mas não era coxinha. Usava óculos e uma calculadora gigante, mas também não era nerd. Não era o cara mais lindo do mundo, mas também não era o mais feio. Ele não parecia ligar muito para as pessoas que viviam perto dele, o que deixava Alice ainda mais curiosa.

Naquela quinta-feira todos foram para o happy hour do escritório e Alice, cansada de esperar, foi lá e se apresentou para o misterioso colega de trabalho. Descobriu que o nome dele era João Pedro, que gostava de cachorros, tinha alergia a gatos, mudou-se pra São Paulo há poucos anos, era coordenador de projetos no escritório, adorava Palmito, odiava Tablito e era ainda mais tímido do que ela esperava. Mas nada que o terceiro chopp não mudasse. Depois do sexto então, João Pedro já tinha tirado os óculos e contava histórias como se fosse um comediante. Foi aí que Alice percebeu que todos adoravam o JP, como ele era conhecido no escritório, e ainda que ele tinha o sotaque caipira mais fofo que ela já tinha ouvido.

Naquela mesma noite, antes de entrar no taxi de volta pra casa, Alice sentiu sua mão sendo puxada. Era João Pedro, ou a versão depois de dez chopps do João Pedro. Ele a puxou pra perto, encostou seu rosto no dela e disse baixinho: Jantar semana que vem? — Alice sorriu, deu um beijo de canto de boca e disse que estava livre na terça.

Terça-feira finalmente chegou e como combinado, João Pedro foi buscar Alice em casa. Ele abriu a porta do carro pra ela entrar e a levou no seu restaurante preferido. Um pequeno bistrô escondido num corredor escuro do centro da cidade. Comida simples, mas com gosto de almoço da vó, foi assim que Alice definiu. Em poucos minutos sentada ali de frente para ele e ouvindo aquele sotaque caipira gostoso, ela percebeu que as coisas seriam completamente diferente do seu último relacionamento. João Pedro era carinhoso, amigo e prestava atenção em tudo o que ela dizia. Tanto que no segundo encontro, um almoço de domingo, João Pedro primeiro cozinhou um delicioso risoto de alho poró pra ela e depois atravessaram a cidade juntos só para chegar em uma doceria. JP tinha descoberto a melhor bomba de chocolate branco da cidade, não por acaso, a sobremesa preferida de Alice.

A garota sabia que no fundo não sentia aquela paixão maluca de começo de relacionamento, mas ela adorava cada segundo que passava ao lado daquele homem. Passaram a sair quase todos os dias escondidos de todos do escritório. Até que um dia João Pedro a chamou para ir ao cinema, mas na verdade ele a levou pra ver as estrelas de um mirante abandonado. Deitados no capô do carro, João Pedro apontou o dedo para uma estrela e na ponta do dedo, ele segurava um anel de namoro. Alice, quase sem palavras, só conseguia pensar que essa sim era a coisa mais romântica que alguém já tinha feito por ela.

Diferente de tudo que Alice tinha vivido, só tinha uma palavra que descrevia o seu novo relacionamento: fácil. Passava os dias rindo e não brigando. Era tão gostosa aquela companhia que na cama ela se entregava completamente. Se sentia querida e amada como nunca se sentiu. É verdade, não tinha nada de paixão maluca, mas também não tinha nada de brigas escandalosas. Seu coração não acelerava quando recebia mensagens dele, mas ela sempre ria de todas. Não tinha ciúmes. Não tinha gritos, não tinha palavrões. Tinha muito carinho e boa companhia. João Pedro estava completamente apaixonado por Alice e ela se sentia a mulher mais sortuda do mundo por isso. Gostar de quem gosta da gente não parecia mais ser tão impossível.

Depois de alguns meses juntos, em um domingo ensolarado, Alice acordou cedo, olhou pro lado e viu seu namorado dormindo ainda com um sorriso no rosto. Mas diferente de outros dias, Alice não tinha aquele mesmo sorriso. Ela tinha acordado com um aperto no coração. Uma vontade de chorar difícil de explicar. Pra distrair a cabeça, foi até o armário tentar escolher a roupa que iria usar, mas enquanto passava pelos vestidos, as primeiras lágrimas começaram a cair. Fechou o armário meio desesperada e foi pra sala pra não acordar João Pedro. Ligou a TV pra disfarçar o barulho e soltou o choro mais doído que já tinha chorado.

Sentada no sofá naquela manhã de domingo, Alice chorava sem saber direito explicar o porquê. Tudo estava exatamente como ela queria. Como ela sempre sonhou. Por que ela chorava então? O que mais você quer, Alice? — ela se perguntava. Você pediu por isso e agora não quer mais? O que você quer Alice? — ela voltava a se perguntar. O João Pedro é perfeito pra você. Você sabe disso.

Até que o namorado finalmente aparece na sala desesperado querendo saber o que aconteceu. “Por que você está chorando, meu amor?” — ele pergunta repetidas vezes. Mas ela não sabe como explicar. O que dizer pra ele? Como explicar que ele não tinha nada de errado? Que ela era perfeito! O cara perfeito. Ele era tudo que ela tinha pedido. Mas que talvez ela não o amasse. Ou amasse? Ela não sabia o que dizer. AHHHHH!!! — ela gritava por dentro . Era muito difícil de explicar. Não. Era impossível explicar aquilo que ela sentia. Ou não sentia. INGRATA! — ela pensava enquanto só conseguia chorar e chorar. Ela precisava falar alguma coisa. Qualquer coisa! Sem muito pensar, Alice apontou pra TV que passava o reprise do filme “Um lugar chamado Nothing Hill” e finalmente conseguiu soltar um pequeno suspiro: “ Eu adoro o final desse filme.”

João Pedro virou para a TV e viu Julia Roberts parada de frente para o Hugh Grant enquanto ele terminava aquele relacionamento dizendo todos os motivos racionais do porquê eles não poderiam ficar juntos. Quando ele finalmente terminou de falar, Julia Roberts, já com os olhos cheios de lágrimas e a voz trêmula, só conseguiu dizer uma frase: “Não se esqueça que eu também sou só uma garota. De frente para um garoto. Pedindo pra ele me amar.” Alice então olhou nos olhos de João Pedro, o cara mais legal que ela já tinha conhecido. O cara perfeito para ela. Respirou fundo para tentar contar pra ele tudo que ela estava sentindo, mas antes mesmo da primeira palavra sair, ela desistiu. Era difícil demais tentar explicar o que não dava pra ser explicado. Abraçou o namorado com força e voltou a chorar compulsivamente enquanto ele, sem entender nada, só tentava acalmá-la.

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