Ensaio sobre luz e trevas

Paula Prado
Praticamente Inofensiva
5 min readSep 29, 2021

Você se lembra quando deixou de ter medo do escuro?

Kary Percival — karipercival.com

O medo do escuro desaparece, quando a luz deixa de ser um lugar seguro. Nesse dia, os monstros debaixo da cama deixam de ser amedrontadores para se tornarem seus melhores amigos e protetores.

E nós estamos sempre procurando um lugar seguro onde podemos estabelecer alicerces e construir nossa vida. Quando as trevas são mais reconfortantes do que a luz, cria-se um espaço íntimo onde procuramos esconder e preservar tudo que é importante.

Um sótão que deveria caber só os bens mais preciosos se torna um depósito de tudo que somos. Trancamos dentro dele a nossa essência. Ninguém mais a verá, ninguém poderá tocá-la, ninguém a machucará.

Vive-se uma vida dupla, onde é criada uma realidade paralela e alternativa. Um mundo de faz de conta das possibilidades, que se torna perigosamente mais seguro e agradável do que o mundo sob a luz.

Um dia, o sótão fica pequeno e a bagunça se espalha por toda a casa, até que você se depara com a porta trancada do porão, cuja chave você escondeu há muito tempo. Não importa o que você faça, todos os dias ao andar pela sua casa, você não consegue mais ignorar aquela porta, sabe que precisa entrar lá e dar um jeito na bagunça.

Encarar aquela porta ressuscita os lapsos da memória. Jogamos essas memórias para o campo da imaginação. Não foi real. Talvez seja esse o estado negacionista da nossa mente tentando nos proteger do perigo que nos aguarda fora da zona de conforto criada ao nosso redor.

Demora muito tempo até a gente olhar no espelho e encarar a verdade.

Faltam-me palavras.

A morte da inocência e a caveira em chamas

Talvez seja porque ela se lembra exatamente do dia em que começou a se odiar e a mutilar sua alma.

Foi naquela volta da escola, ao entrar no transporte escolar. Ela ainda não sabia o que aquilo significava, mas se sentiu nua. Completamente exposta, sem saber verbalizar, sem saber como reagir, sem saber como se defender, sem saber se devia falar.

Foi só um olhar. Mas ela ainda se lembra dele. Todos os dias. Sob a camiseta escolar branca, surgiam pequenos seios, que ela ainda nem tinha notado, mas outra pessoa, sim. Ela não estava pronta para aquilo.

Foi um momento tão rápido, quanto intenso, ou ao menos ela acha que foi rápido. Porque bastou um segundo para que ela se recolhesse para o canto mais profundo da sua mente e, a partir daquele momento, ela passou a querer ser invisível.

Foi a partir dali que ela passou a evitar olhares. Evitar problemas. Evitar invasões. Porque daquele momento em diante, ela passou a acreditar que todos os olhares seriam como aquele e, então, ela decidiu que não queria ser vista. Tomou essa decisão do alto da maturidade dos seus nove anos.

Foi naquele momento que o véu se rasgou e ela tomou uma decisão instintiva. Seja invisível. Esconda-se. Cubra-se. Assim ela decidiu viver com a lanterna, em forma de caveira, em chamas nas mãos, escondendo-se na floresta, evitando voltar ao local de origem para não olhar novamente para a ferida, que ela não queria confrontar.

Foi com essa escolha, que ela viveu toda sua vida cheia de medo, tentando buscar segurança e refúgio da sua própria maneira. Passou a viver entre a segurança dos arbustos fechados no meio da floresta, nunca ficando sozinha para que ninguém mais a encarasse como naquele dia, na volta da escola. Ela então escolheu não dançar, não falar, não sorrir porque acreditava que, dessa forma, ninguém a olharia daquele jeito novamente.

Foi então que todos deram a ela rótulos que não lhe encaixavam. Ela sabia que não era nada do que diziam, porque quando estava sozinha ela podia voar, sonhar, dançar, cantar e ser tudo aquilo que precisava ser. Era somente na privacidade do seu esconderijo que ela sabia quem era de verdade. O refúgio era seguro, confortável, mas o tempo mostraria que ele não seria suficiente por toda vida. Por onde passava, a caveira deixava cair fagulhas. Sem perceber, o fogo ficou fora de controle.

Foi então que ela se viu em meio a um incêndio causado pelas chamas que saíam dos olhos da caveira. As chamas se espalharam pela floresta onde ela se escondia, devastando tudo que ela usava para se proteger. A floresta virou um campo aberto, não havia mais onde se esconder e somente o casebre de onde havia fugido ainda estava de pé, ainda bem distante dela. Mas ela não queria voltar, porque àquela altura, ela já sabia o que encontraria lá dentro.

Foi aí que, ao olhar em volta, ela percebeu que não havia mais para onde fugir. Não havia local seguro em nenhum lugar. Para ter um abrigo, ela teria que voltar ao casebre, com a caveira em chamas nas mãos e encarar as piores partes dentro de si.

Um passo de cada vez

O momento exato em que a mulher se dá conta de que foi violada é a libertação mais dolorosa da sua vida.

Às vezes, esse momento ocorre durante as ocasiões mais banais do dia a dia. É como se, num momento em que o corpo e mente estão num processo automático um flash retorne à lembrança. Do nada.

Você passa um tempo sem entender por que aquilo voltou assim, de repente. Você joga a informação para o inconsciente novamente e, então, num outro dia corriqueiro ela volta. A mesma imagem que aconteceu há cinco ou 30 anos. Ela volta. Ela sempre volta.

Com o tempo, a única escolha possível é pausar essa imagem e encará-la, não permitindo que ela volte ao inconsciente. É preciso assumir o controle para invocá-la novamente e quantas vezes forem necessárias até que se desvende tudo que ela esconde.

Depois de encarar essa imagem de frente, ainda pode ser muito difícil dar nome ao que se vê. Ao se dar conta do que viveu, a mulher percebe-se sozinha, vulnerável, exposta, sente vergonha e se culpa. Adquirir consciência pode ser um processo doloroso, porém inevitável se o objetivo dessa mulher for a liberdade.

Kari Percival — karipercival.com

Com a chave do porão em mãos, só há uma opção. Segurar firme sua lanterna, abrir a porta e encarar cada quadro pendurado naquelas paredes. Cada momento congelado e esquecido, dar nomes a tudo e atear fogo, até que só reste cinzas.

Assim as janelas podem ser abertas para que o vento sopre as cinzas para longe e, aos poucos, um pouco de luz possa brilhar também dentro de casa, a bagunça seja desfeita, o lixo descartado e o sótão se torne verdadeiramente um local seguro para abrigar somente o que é realmente precioso.

… e seguir sempre em frente, um passo de cada vez.

Escreva com c.Alma é um projeto da @ribeiro_isadora. Mais do que um clube de escrita, um mergulho em sentimentos adormecidos para encontrar o caminho para libertar as palavras.

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Paula Prado
Praticamente Inofensiva

Jornalista, Swifitie, ativista dos direitos femininos e equidade de gênero. Aprendendo e compartilhando sobre humanidade, comunicação e Jurassic Park.