Me-Jay, o viciado em autopublicação.

rosana hermann
Prato cheio de vida 
3 min readAug 17, 2014

Assim como o carrasco é escravo de seu escravo, o Me-jay é dependente de seus seguidores e não o contrário, como muitos pensam.

Meu marido é um cara muito bacana. Na intimidade ele tem um jeito todo particular de falar de si para mim: ele irradia seu dia todo. Inteiro.

Quando acordamos, ele me conta como foi seu sono, se sonhou, se levantou, se voltou a dormir. Me diz como está se sentindo e como será sua manhã de trabalho. No almoço ele me conta como foi a manhã e à noite recebo o capítulo completo, incluindo eventuais dores, dúvidas e pensamentos.

Brinco com ele dizendo que ele é o dono da “EuFM”, que passa 24 horas por dia no ar, para sua fiel ouvinte, eu.

Esse jeito de casal, no entanto, não é nem tão incomum ou íntimo no meu mundo. Ao contrário. Nas redes que frequento, verifico que há pessoas que como quase todos nós, começaram a relatar tudo o que fizeram durante o dia, todos os dias, ano sim e outro também.

Essas descrições contínuas evoluíram de texto para fotos e de fotos para vídeos completos. Viraram programas de TV que nunca terminam. Muita gente está nessa fase, com ou sem consciência.

E, como era de se esperar, ficaram tão viciados em estarem ‘on air’ que o conteúdo começou a não dar conta de preencher tantas horas de exposição. Então, além de contar o que fizeram, o que comeram, onde foram, passaram a relatar cada movimento, cada sentimento, cada pensamento.

Mas nem com tudo isso puderam alimentar a fome de exposição. E então, os junkies da auto-transmissão passaram a postar também todo o passado, incluindo todos os sonhos de infância com fotos escaneadas, lembranças pormenorizadas e todos os tipos de relacionamentos, com amigos, parentes, vizinhos, com avós e até amigos imaginários.

Basta acompanhar algumas dessas pessoas para ter a sensação de estar se afogando em tsunamis de autobiografias infinitas.

Esses conteúdos pessoais incessantes foram se expandindo de tal forma que a vida e as memórias desses seres se liquefizeram e, em seguida, se gaseificaram. Eles se tornaram o próprio ar, o éter, o meio onde irradiam-se e viraram, enfim, Me-Jays, os Jockeys que pilotam suas existências em redes sociais com o único conteúdo que lhes interessa e empolga: eles mesmos.

Claro, ninguém consegue APENAS falar de si mesmo, do que pensa, do que conquista. Assim, os Me-Jays também abrem espaço para outros temas, como por exemplo, outras pessoas que falam deles.

Postam notícias sobre eles mesmos, retweetam elogios feitos a eles e, sempre que alguém os apoia ou aplaude, ficamos sabendo em primeiríssima mão.

E não pense que os Me-Jays são egoístas ou insensíveis. Errado. Eles ficam muito, mas muito emocionados quando ganham novos seguidores, quando fãs se declaram ou os glorificam. Chega a ser bonito de ver essa auto-paixão.

Me-Jays estão em todo lugar, passam o dia inteiro autopublicando-se, de todas as formas que é possível. Postam selfies dúzias de vezes todos os dias e aguardam os likes, publicam textos e rastreiam os comentários, fazem incontáveis vídeos alegando que os fãs é que assim exigiram. Só que são eles mesmos, não os fãs, que têm necessidade de postar. Se eles sumissem, parassem, morressem, o mundo continuaria igualzinho.

O Me-Jay não é mau, nem cruel, nem perigoso. É só um carente insaciável, um narcisista implacável. E, de vez em quando, um tanto quanto insuportável. Porque nada pode ser mais difícil de aguentar do que alguém que supera, de longe, a nossa própria vontade de aparecer.

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rosana hermann
Prato cheio de vida 

physicist, writer, journalist, blogger, scriptwriter, professor, tv hostess, runner, knitter and twitter lover @rosana