Ana Barradas. A esquerda “precisa de recomeçar do zero”
Praxis Magazine
O Praxis Magazine desafiou uma série de activistas dos mais variados quadrantes à esquerda a responderem às mesmas questões sobre activismo, movimentos sociais em Portugal e situação política actual. Esta é a terceira entrevista.
Qual é a visão que tens do activismo e da militância?
Nos dias de hoje, o activismo e a militância realmente existentes estão circunscritos a um extracto reduzido da pequena burguesia despossuída e sem futuro aparente, que luta por aquilo que julga ser o seu lugar, e uma minoria de semiproletários igualmente maltratados. Muitos deles não estão organizados, outros estão mas são reféns de estruturas reformistas ou “regeneradoras” da sociedade. No geral, vivem alheados do que se passa entre os mais desafortunados (operários, camponeses, desempregados, marginais, reformados pobres, etc.), convencidos que estão de que os seus programas e actos políticos são bastantes para melhorar a sorte de todos.
Nos primeiros anos da troika, os movimentos sociais assumiram uma nova relevância no combate político. Que análise fazes desses movimentos sociais?
Os cortes na despesa pública naqueles anos contraíram a economia e a dívida pública foi sempre em aumento. A austeridade recaiu toda sobre os trabalhadores: baixa de salários e pensões, devastadoras “reformas estruturais” no mercado de trabalho, fim do Estado social, privatizações e rodos de dinheiro para os bancos e os patrões.
Essa terrível compressão sobre as “classes de baixo” trouxe para a rua centenas de milhares de cidadãos indignados e em carência, em manifestações imponentes e cheias de significado, por serem multitudinárias, interclassistas, intergeracionais, espontâneas quanto baste e demonstraram a disposição popular para a luta. Só que foram protestos pontuais que, infelizmente, nenhuma força política ou sindical canalizou no sentido de favorecer o surgimento de uma corrente popular de resistência. Por falta de orientação política, o movimento social desvaneceu-se. A responsabilidade histórica do desperdício dessa fantástica energia deve ser assacada aos dirigentes que na “esquerda” reclamaram louros indevidos.
Que lições se podem retirar?
A grande lição é que esta sociedade é irreformável e está em declínio global. Tudo aponta para o seu fim e para a necessidade de um modelo de desenvolvimento melhor que este. Segunda lição: a única bagagem que trazemos para esta viagem é a convicção de que só a luta independente dos trabalhadores que tudo produzem poderá libertá-los para apostarem no derrube deste regime caduco e na construção de uma vida nova liberta de exploração. Acontece que isso não cai do céu: é preciso um programa político coerente e um partido que saiba fundir-se com o povo explorado para aplicar com ele esse programa — esta é a terceira lição.
“A grande lição é que esta sociedade é irreformável e está em declínio global”
Que análise fazes do actual momento político que se vive em Portugal?
A “geringonça” vinha para erradicar todos os males do governo Passos. Só que no essencial nada mudou. As estatísticas optimistas do governo não enganam, já conhecemos os truques de manipulação: basta ver como a vida de cada um está cada vez mais difícil para saber que só para os patrões, os bancos e os governantes é que ela corre bem. E se os chefes da União Europeia aplaudem a performance da economia e do governo que a gere, alguma coisa está mal para nós, os dois milhões e meio de pobres — 25 por cento da população — e os que não ganham o suficiente para viver decentemente.
Não foi por demagogia que o primeiro-ministro António Costa proclamou no grande palco internacional da Web Summit: “Portugal é um óptimo sítio para investir. A burocracia está domada e a encolher, há estabilidade política e económica e o ecossistema é próspero”. Além disso, assegurou, o Estado apoia os investidores, nomeadamente através de um fundo de 200 milhões de euros, programa de co-investimento para empresas inovadoras que precisam de capital de risco.
É preciso ser mesmo ceguinho para não ver claramente que este governo quer que aqui neste nosso país prospere o grande capital e por isso vai dar-lhe uma ajudinha, já que pensa ter convencido toda a gente de que nós, a populaça ignara, não precisamos de mais educação, saúde, apoios sociais e bem-estar.
A “esquerda” institucional à esquerda do PS, representada por reformistas que servem de suporte a este governo PS — o BE e o PCP — confina-se ao aconchego da luta parlamentar e desapareceu do espectro da contestação social, política e sindical. Os pequenos grupos à sua esquerda pulverizam-se em nichos estanques, sem estratégia própria e desligados da massa dos trabalhadores. Não há verdadeira esquerda no nosso país. É triste constatar, mas é verdade. É preciso recomeçar do zero.
Que perspectivas tens para a situação política portuguesa nos próximos tempos? E para os movimentos sociais?
É quase impossível prever o que se vai passar. Só sabemos que a história é feita de altos e baixos e que, de repente, não se sabe como, quando, onde e porquê, surgirão fenómenos novos que nos apontarão caminhos e saídas, quer aqui entre nós, quer no plano internacional.
Ou não. Porque sabemos também que o mundo está muito perigoso, as grandes potências dominam pela força e têm-se sobreposto a todas as resistências, sem querer saber de consequências devastadoras. Assim, tudo pode deflagrar num grande desastre.
Nós, aqui em Portugal, à nossa minúscula escala, dependemos não dos movimentos sociais como expressões de um activismo desgarrado das massas, mas do surgimento de um movimento social objectivo, resultante da intolerância ao agravamento das condições de vida ou a qualquer outro abuso como os que temos visto. E que esse movimento social se sobreponha às vacilações, medos e dúvidas que tudo paralisam e empolgue a grande massa, levando-a a radicalizar-se e a organizar-se para tomar em mãos o seu destino.
Já vejo daqui os sorrisinhos superiores dos que se compadecem com gente da minha laia, essa minha gente utópica que nunca se contenta com nada e que quer subverter tudo. Uma palavrinha derradeira para esses “sábios”: veremos quem rirá no fim.
“As grandes potências dominam pela força e têm-se sobreposto a todas as resistências, sem querer saber de consequências devastadoras”