Geringonça: Revolução Democrática ou Termidor dos movimentos anti-austeridade?

Praxis Magazine
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8 min readNov 3, 2017

Jonas Van Vossole

Os partidos de esquerda têm focado a sua estratégia política nas instituições parlamentares da democracia burguesa, e não na mobilização das ruas

Qual foi o impacto da geringonça — a acordo parlamentar entre o PS de António Costa e os partidos de esquerda, PCP e BE — sobre a democracia em Portugal? No seu livro — Para além da Geringonça -, o politólogo André Freire (2017, p. 218–220) faz uma avaliação claramente positiva desta experiencia até agora: a solução da geringonça permitiria ao governo português implementar mudanças necessárias às fortes políticas de austeridade aplicadas pelo governo de Passos Coelho entre 2011 e 2015, mantendo-se, no entanto, em conformidade com a legislação europeia. Uma solução que, segundo Freire, levou à satisfação do eleitorado; facto evidenciado pelas taxas crescentes de aprovação nas pesquisas de opinião em 2016 e na primeira metade de 2017.

Para Freire, a geringonça apresenta-se como uma “verdadeira revolução democrática” (p. 165), e isto por três razões. A primeira é a inclusão de 18% da população — que votaria na CDU e no BE — que antes tinham sido marginalizados. Desta forma, a geringonça restabeleceria o princípio de um homem/mulher, um voto (p. 165). A nível institucional, a participação da esquerda parlamentar radical do PCP, do PEV e do Bloco de Esquerda na solução governativa, democratizou as instituições representativas. A democracia eleitoral ampliou-se à medida que mais partidos e programas políticos se tornaram disponíveis para os eleitores com uma expectativa razoável de participar em formações de governo; assim o “voto útil” e o “arco da governação” ampliaram-se.

Um segundo motivo, segundo Freire, é a melhoria da qualidade da representação a dois níveis: primeiro que as “elites políticas” de esquerda finalmente fariam o que o eleitorado de esquerda — de todas as partes, PS e PCP/BE — queria. As pesquisas mostravam que os eleitorados de PS, BE e do PCP preferiam uma colaboração entre partidos de esquerda em vez de uma colaboração à direita. Por outro lado, o governo esclareceu diferentes opções políticas e aumentou a escolha política; puxando o PS para a esquerda (p.218–220).

Capa do livro do politólogo André Freire

Também significou um intervalo do discurso de que “não há alternativa” — frequentemente utilizado por Pedro Passos Coelho e a Troika. Sob a pressão do PCP e do BE, o governo implementou reformas, mesmo que limitadas, que quebraram com uma certa ideia de inevitabilidade das políticas de austeridade; como o aumento do salário mínimo para 557€ em 2017, a reintrodução dos feriados que tinham sido cortados pelo governo anterior e uma pausa nas privatizações no sector dos transportes públicos. Assim, segundo Freire, a geringonça rompeu com a ideia de que a recuperação económica só seria possível por meio de novos cortes salariais e da deterioração das condições de trabalho.

Por último, mas não menos importante para Freire (p.219–220), acredita que o governo poderá ter efeitos positivos sobre a própria Europa, e talvez se torne uma inspiração para outros países da Europa, desempenhando um papel no fim do statu quo neoliberal. Freire, por estas razões, conclui que a geringonça significa uma verdadeira revolução democrática.

No entanto, surgem alguns problemas. Na medida em que as políticas do governo tenham sido fiscalmente conservadoras, na prática não trouxeram o fim da austeridade. Nas áreas da educação e da saúde mantêm-se a maioria dos cortes do anterior governo. O governo congratula-se por superar as exigências orçamentais impostas pela Comissão Europeia. Freire já admite no seu livro que a acusação de que “o governo e os partidos de extrema-esquerda mentiram para o eleitorado quando prometeram acabar com austeridade” é parcialmente verdadeira (p. 214). Freire diz que isto pode ser parcialmente explicado pelas restrições impostas pela União Europeia. Como o governo não está inclinado a mudar radicalmente o ambiente macroeconómico e macro-político, as origens da crise de facto continuam em vigor.

Embora a austeridade, pela pressão dos partidos de esquerda, tenha sido mais equilibrada e equitativa, com padrões de distribuição de austeridade mais distribuídas entre Capital e Trabalho (Freire, 2017), não são dadas respostas estruturais; ao seja, aos desequilíbrios estruturais na área do euro, à desvantagem estrutural de áreas periféricas, à falta de legitimidade democrática da instituição da UE, ao viés pró-mercado/pró-capital da estrutura da UE, ao problema da insustentabilidade da dívida pública e privada, etc.

Num contexto de um precário crescimento económico, principalmente empulsionado pelo sector do turismo — com todos os problemas subjacentes, desde a precariedade de rendimentos, salários e condições de trabalho, à dependência externa e sazonalidade — o eleitorado, de acordo com as sondagens, aprova as políticas do governo (Freire, 2017, p. 214), tornando as políticas de “austeridade mais equitativas” democraticamente legítimas. Ao mesmo tempo, a solução da geringonça tem diminuído as opções parlamentares políticas disponíveis para quem continue na resistência: PCP e BE têm pelo menos perdido parcialmente o seu caráter anti-establishment. Suavizaram os seus discursos políticos e as críticas aos problemas estruturais.

Isto é importante, porque nas primeiras fases da crise, estes partidos funcionaram como plataformas parlamentares de muitas das exigências dos movimentos de protesto extraparlamentares. Através da solução Geringonça, algumas das palavras de ordem do protesto entraram na influência da governação. Mas, ao mesmo tempo, a fidelidade do BE e do PCP à solução governativa afectou a sua capacidade de se estabelecerem enquanto representantes e estimuladores desses mesmos movimentos. Não há voz de oposição credível com representação social e política que defenda claramente o cancelamento da dívida, a nacionalização do sector bancário ou a saída da zona euro após a entrada em vigor da solução da geringonça.

Até agora, o PS português não foi confrontado com uma chamada “pasokização” — o total enfraquecimento eleitoral dos partidos “social-democratas” — como a organização irmã grega Pasok, o PSOE ou, mais recentemente, o PVDA holandês e o PS francês. A solução da geringonça deu à “social-democracia” não só a hipótese de permanecer no poder, sem ser dizimada pela aplicação de medidas de austeridade severas, mas também a margem de para se manter viva como opção eleitoral legítima; impedindo uma paisagem política mais polarizada. A situação é potencialmente perigosa a nível eleitoral para o PCP e, em particular, para o Bloco de Esquerda, que tradicionalmente tem um eleitorado mais instável. Um sinal nesta direção surgiu nas recentes eleições autárquicas de 2017. Bem que as dinâmicas locais, principalmente fora dos grandes centros urbanos, têm uma relativa independência daquilo que acontece a nível nacional, são notáveis as grandes perdas do PCP (10 câmaras), e o facto que o BE não ter conseguido ancorar localmente os avanços eleitorais que tinha registado nas eleições legislativas e presidenciais de 2015 e 2016, respectivamente.

Protesto contra a precariedade

Nas sondagens, BE e PCP parecem estar a perder votos lentamente. Esse facto poderia ser a consequência de outro fator que, segundo Freire, contribui para a tendência positiva da revolução democrática; isto é, a geringonça obrigou a esquerda radical a assumir responsabilidades pelas suas propostas políticas em condições adversas. Pesquisas recentes mostram que o PS e António Costa são os que mais lucram com a solução actual de governo.

A geringonça também fortaleceu a tendência de paz social que já tinha começado no ano anterior às eleições. Os movimentos de rua massivos “apartidários”, manifestações e acampadas, contra a austeridade, tinham perdido força por falta de organização e perspectiva de atingir resultados. Os que ficaram mais organizados — nomeadamente no contexto do Que se Lixe a Troika (QSLT) — foram institucionalizados no sentido das suas lideranças serem integradas nas forças partidárias de esquerda e suas dinâmicas, que, ao longo do tempo, viriam a focar-se na luta política eleitoral e parlamentar.

Depois do braço de força perdido entre a liderança da CGTP e o governo acerca da manifestação do “Ponte-a-pé”, não se registaram mais grandes manifestações e greves. A esperança da mudança fora depositada numa mudança de política com base nas eleições em vez de pela mobilização nas ruas. Se considerarmos as lutas sociais e a mobilização como parte essencial da democracia e da democratização — particularmente na sua dimensão participativa e mobilizadora dos cidadãos — a democracia perdeu. O aumento da suposta “qualidade representativa” formal da democracia eleitoral e a institucionalização da mobilização afectou seriamente o caráter participativo e popular da democracia portuguesa.

Todos estes aspectos devem suscitar pelo menos algum questionamento em torno das contradições na designada “revolução democrática”. Contrabalançando com o conceito de revolução, o de um “Termidor” pode ser esclarecedora. Termidor foi o nome dado ao processo de reacção após a revolução francesa, o momento em que Robespierre foi executado. O processo revolucionário voltou à normalidade, afastando os objectivos mais radicais da revolução. O termo “Termidor” foi posteriormente popularizado por Leon Trotsky na sua obra A Revolução Traída para caracterizar o modo como a burocracia estalinista pôs fim ao processo revolucionário russo e à participação das massas em formas de democracia participativa — o sistema soviético -, que tinha surgido no processo Revolucionário Russo de 1917. O Termidor pôs fim a este processo revolucionário e emancipatório, retirando o poder dos movimentos revolucionários da classe trabalhadora e institucionalizando uma nova normalidade liderada pela burocracia estalinista, recuando não só formalmente mas também em muitas das dimensões substantivas da democracia soviética; no acesso a direitos sociais e direitos iguais para mulheres e a comunidade LGBT por exemplo.

O livro foi escrito em 1936 quando Leon Trotsky se encontrava no exílio

É claro que os conceitos de “revolução” e “termidor” são de uso meramente metafórico: da mesma forma que o conceito de “Revolução” no Trabalho de Freire só pode ser metaforicamente comparado com a Revolução de Outubro de 1917, não se equipara a política de geringonça à da reacção estalinista. Mas será que o processo eleitoral dentro dos limites da democracia-burguesa não desempenha esse mesmo papel de Termidor quando comparado com o surgimento de protestos, movimentos sociais e discursos alternativos sobre a democracia perante a crise?

Em muitos aspectos, a geringonça é certamente o retorno a uma situação de “normalidade” — pacificando os elementos radicais que surgiram durante a crise. Um governo relativamente estável que respeita as regras da zona euro e da União Europeia. A esquerda “radical” que durante os protestos formava a expressão política destes movimentos, pelo menos temporariamente, abandonou as suas posições radicais em direcção a uma transformação anticapitalista. Com a Geringonça, os protestos anti-austeridade e a perspectiva de uma democracia radicalmente diferente e anti-capitalista, socialista, desapareceram. Pelo menos por enquanto…

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