Notas sobre aprendizados de pesquisa, recrutamento e Sociologia

Rangel Fideles
Pretux
Published in
7 min readJul 25, 2022

Neste texto, narro como a experiência com o Bootcamp de UX da How Education, derivou em alguns insights sobre aproximações e distanciamentos sobre os desafios envolvendo o recrutamento e seleção de pessoas entre a pesquisa acadêmica e a pesquisa em experiência da pessoa usuária. O texto finda com algumas recomendações. Adianto que o texto trata bem mais de um processo de recrutamento não bem sucedido.

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Através de um sorteio de bolsas, pude participar do bootcamp de UX da How Education. Um programa imersivo de 10 semanas em que as pessoas são convidadas a conduzir projetos passando por descoberta, definição, ideação e prototipação.

Descoberta — comumente denominada como discovery — diz respeito a entender o problema/contexto/identificar necessidades/dores/desejos. Principalmente: entender como as pessoas têm realizado atividades, feito uso de serviços ou produtos. É no decorrer desta etapa — mas não só -, que estaremos envolvidas na condução de entrevistas, leitura de relatórios feitos por outras pessoas (fora ou dentro de onde trabalhamos), artigos, notícias, questionários. Em resumo, estamos preocupadas com nos cercamos do máximo de informações já disponíveis, buscando, justamente, descobrir elementos estratégicos a serem considerados.

Nessa etapa e em todas as outras, estaremos em contato com pessoas com objetivos diferentes. Se no primeiro momento buscamos informações sobre como tem feito algo, seu contexto, quem são, nas etapas seguintes estaremos asseguradas pelo desejo de saber a avaliação das pessoas sobre um determinado tipo de aplicativo, programa, serviço, site que desenvolvemos. Isto para diminuirmos ao máximo as possibilidades de refazer o trabalho. Até aqui você deve ter entendido que realizamos coisas buscando incluir cada vez mais pessoas no centro. E ainda mais, que estas pessoas estão no centro, entretanto, não possuem a palavra final. Aspectos como objetivo da companhia onde estamos, onde o negócio se visualiza temporalmente, objetivos da área onde estamos inseridas, limitações financeiras, tecnológicas também entram nessa conta.

Para o bootcamp, devíamos formar equipes de 3 a 5 pessoas e escolher temas de projetos conforme uma lista de 6 a 8 opções. Atuando com estudos de gênero e sexualidade numa perspectiva pós-colonial/decolonial, olhar para diversidade/inclusão, mercado de trabalho, empobrecimento e afrofuturismo era algo que já estava dado.

Participei então da equipe 6, ao lado de Viviane Machado e Lorena Oliveira, todas em migração para UX. Éramos duas mulheres negras cisgêneras e eu, uma pessoa transgênera de gênero fluído, preta, nordestina, gorda e periférica. Numa primeira reunião, entendemos que a inserção de pessoas negras transgêneras era algo que nos motivava.

O cenário inicial do desafio comportava entender como as pessoas estavam inseridas no mercado de TI. Sem nenhuma surpresa, numa leitura inicial, percebemos que, majoritariamente, os times de tecnologias possuíam cor, idade, gênero, sexualidade e classe bem demarcadas. Para entender melhor esse contexto, cruzamos dados de duas fontes principais: relatórios dos últimos anos disponibilizados pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTTRA) e um conjunto de notícias que informam, grosso modo, sobre a situação da população trans no Brasil.

Após essa etapa, utilizamos como framework para organização dos dados, uma matriz de certezas, dúvidas e suposições. Dúvidas e Suposições tornaram-se pontos incorporados nos roteiros de entrevistas e surveys. De posse disso, algumas perguntas pareciam já ter um desenho. Isto é, sabíamos que queríamos conversar com pessoas trans e que estivessem no mercado de tecnologia há um certo tempo. Já possuíamos em mente um público geral a ser considerado na pesquisa.

Do ponto de vista do projeto, isso se alinhava à percepção de que esse perfil permitia que obtivéssemos insights sobre representação de uma população, mesmo que, tratando-se de transgeneridade, seria muito mais produtivo pensar em uma experiência aberta e contraditória. Digo isto pensando que por vezes, há uma subrepresentação no entendimento de públicos a partir da ideia de imagens sociais mais amplas que buscam engessar vivências enquanto homogêneas e não enquanto únicas, ao mesmo tempo que se relacionam com um entendimento mais amplo.

O primeiro desafio era que não tínhamos uma clareza de como acessar pessoas que estavam se inserindo dentro do mercado de tecnologia. Ou seja, possuíamos em mãos duas direções a serem exploradas. Seguimos com quem já está ou quem está chegando? Quem já está, nos diz sobre as agruras de algo já realizado. Mas quanto é possível pensar que não se trata de uma ‘labuta’ diária? Quem está chegando, prediz estratégias em consonância com as mais velhas? É possível pensar uma continuidade?

Ao que nos parecia, nossa preocupação era sobre quem estava se inserindo. Conversar com quem já havia obtido sucesso, nos oferecia informações sobre táticas e estratégias já mobilizadas. Não saberíamos, talvez, sobre quem está se inserindo num primeiro momento. Aqui é interessante apontar que mesmo o ideal de estratégias e táticas mobilizadas não significava a ausência de contradições e problemas, mas sim que o problema a ser compreendido era outro.

Esse contexto no projeto significou um momento de reavaliação das estratégias de recrutamento que estavamos mobilizando. Recrutamento diz respeito ao momento em que definimos com quem, com quantas pessoas e como iremos chegar até pessoas que buscamos conversar. Em geral, está inserido dentro de um plano de recrutamento. Uma parte de projetos de pesquisa em experiência da pessoa usuária contém critérios de inclusão, exclusão, quantas pessoas que irão ser consultadas. Esta parte diz respeito também a quem iremos considerar para entender melhor um problema.

A exemplo disso, se nosso objetivo geral era identificar gargalos na entrada de pessoas trans no mercado de trabalho em tecnologia, 2 critérios de inclusão foram considerados:

  1. Participação em algum processo seletivo afirmativo para vagas de tecnologia;
  2. Contato com ações de diversidade e inclusão, a exemplo de programas específicos de empresas.

O desafio se acentuava quando pensavamos no tempo de quase 3 semanas para encontrar pessoas, conversar, estabelecer um vínculo de confiança e observar o que havíamos aprendido em nossas conversas. Um ato falho no recrutamento significaria resultados que refletissem uma realidade paralela e consequentemente o sentimento de que os resultados gerados não se tornassem úteis.

E quando as coisas dão errado?

Desenhar processos não significa que eles vão ocorrer como pensamos.

Se nossas perguntas eram como então chegar até as pessoas e chegando, alimentar uma relação de proximidade que nos possibilitasse prosseguir com o projeto, era então que algumas memórias sobre a primeira vez que precisei selecionar pessoas para uma conversa de algum projeto de pesquisa começaram a surgir.

Nas minhas contas, entre a graduação em ciências sociais, passando pelo mestrado e mais recentemente com a mudança para UX Researcher, uma coisa estava certa: se já entendemos o que queremos com uma pesquisa e já pensamos com quem queremos conversar, devemos não só ter um plano alternativo, como também nos informarmos sobre quais vias nos permitem nos conectar com as pessoas. Nesse ponto, uma primeira questão: por quais vias você consegue acessar as pessoas?

Ao conduzir etnografias em ambientes acadêmicos o tempo e o rigor de controle de pessoas com quem conversamos não obedece a um escopo definido. Nós levamos, como salienta uma grande parte de pessoas autoras de estudos etnográficos, pelo desenho de redes de relação que permitem que os dados gerados por diferentes pesquisadoras, conforme um conjunto de características que informam posições de poder — como leitura social de gênero, raça, idade, cor, classe social — esclareçam sobre alteridade, autoridade intelectual ou ainda sobre os pontos de vista selecionados e aquelas que — processualmente — vão sendo deixados de lado.

Sobre o aspecto de autoridade intelectual, pensemos que um conjunto de pessoas historicamente vem sendo nomeadas como objetos de pesquisa, ocupando espaços em laboratórios e museus. É como se uma fotografia de sua infância fosse sempre apresentada para pessoas desconhecidas e que essas pessoas afirmassem rotineiramente que você jamais poderia modificar-se ou entrar em contradição.

Oferecer bonificação, por exemplo, costuma ser uma prática comum em pesquisas envolvendo a experiência da pessoa usuária. Entretanto, como pensar com grupos estigmatizados e violentados cotidianamente a oferta de benesses como uma forma de garantia de participação em um processo nem sempre claro sobre os objetivos e impactos para esse grupo?

Novamente uma lembrança da sociologia: as pessoas não são obrigadas a participarem de sua pesquisa. Sucessivas negativas, desistências, remarcações de entrevistas são uma realidade comum na agenda de uma maioria de cientistas sociais brasileiros. O ponto em comum das duas experiências — Sociologia/UX Researcher, era justamente que os momentos de contato são curtos e essenciais. Estudar com pessoas sobre seus problemas significa entender igualmente sobre nossas habilidades em prolongar uma relação, aqui cabe explorar justamente o que — aparentemente — não faz parte do escopo da pesquisa, mas é essencial para o projeto: você possui um leque de informações sobre as pessoas. Possuindo esse leque de informações, tentamos responder a questão de: quem poderia nos auxiliar como ponto de apoio?

Afinal, se já temos uma compreensão básica na formulação de perfis de com quem queremos conversar, devemos ter também anotações sobre indicativos sobre com quem as pessoas conversam e mantém contato.

Essa percepção tornou mais evidente que uma possível saída de encontro com pessoas trans pretas era envolver mais pessoas que possuíam algum contato com a atividade de seleção para vagas voltadas para o mundo Tec, aqueles situadas em diversidade e inclusão, assim como processos mais amplos.

Realizadas 4 entrevistas iniciais, entendemos que o problema era bem mais denso do que pensamos. Isto é, uma esmagadora parte das pessoas não chegava nem aos processos seletivos e quando dos processos seletivos, requisitos tornavam-se uma segunda barreira de entrada.

Aprendemos ainda que esses requisitos somavam-se como uma grande estrutura transfóbica racista. Entretanto, como uma pequena equipe, compreendemos que parte significativa das dores derivavam não só da participação em processos seletivos, mas também de soluções que oferecessem informações e avaliações sobre o clima organizacional de empresas. Mais uma dificuldade: uma grande maioria dos portais de divulgação de vagas não possuem qualquer tipo de campo para relatar aspectos como transfobia, violências, abusos ou assédios. Consigo saber o valor da remuneração, benefícios, mas não sei — por exemplo — como setores de gestão de pessoas e cultura administram situações envolvendo violências explícitas e aqueles, nem tão veladas.

Ao fim do projeto, entendíamos que havíamos encontrado uma ponta do problema, era tempo de aprofundá-la. Agora, ao fim deste texto, algumas anotações seriam:

  1. Trace redes de pessoas acionáveis que possam apoiar na chegada até outras pessoas. Exemplo de redes de pessoas em organizações: setores de atendimento, comercial.
  2. É válido reparar em como a comunicação e sua atuação serão reportados.
  3. Aspectos como leitura social de gênero, identidade racial, classe impactam diretamente não só no recrutamento, mas nas fases seguintes.
  4. Estabeleça os momentos da comunicação. Recrutamento, agendamento, comunicação 1 dia antes do encontro, 30min antes, após o encontro.
  5. Acompanhe a bonificação, garanta que as pessoas conseguiram utilizar a recompensa destinada.
  6. Um bom recrutamento abre portas para outras oportunidades.

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Rangel Fideles
Pretux
Writer for

Etnógrafa por paixão. UX Researcher na diversão.