Pão e jogos: Gamificação para transcender a experiência do usuário

Edilene Mendes
Pretux
Published in
7 min readNov 30, 2020

Este artigo foi construído a partir do aprendizado no curso de Gamificação em UX, ministrado pela maravilhosa Carla de Bona e organizado pela Mergo User Experience. A participação nesse curso foi possibilitado pela iniciativa PretUX em parceria com a Mergo. E como retribuição para a comunidade, estou compartilhando alguns conhecimentos adquiridos no curso.

Foto de uma multidão de pessoas vista de cima, à noite. No fundo há 4 postes acesos e uma parte de uma montanha russa.
Multidão em busca de um pokémon raro, na Califónia (Foto: Reprodução — Época Negócios Globo)

Em 2016 foi lançado o jogo Pokémon Go, um jogo mobile de realidade aumentada e GPS que levou mais de 700 milhões de pessoas pelo mundo a irem às ruas atrás das criaturas virtuais da Nintendo. Com tantas pessoas imersas nessa experiência, muitas foram as ocorrências de assaltos, acidentes, invasões de propriedades entre outros causos.

No artigo intitulado (em tradução livre) “Morte por Pokémon GO” , os autores Mara Faccio e John McConnel expõem uma investigação com mais de 12 mil registros policiais em um condado no estado de Indiana nos Estados Unidos, apenas nos primeiros 148 dias de lançamento do jogo. Entre os registros, se destaca o aumento de acidente de carro, que foram 286 a mais do que o período anterior, sendo 134 próximos a Poké Shops (determinados lugares onde encontra-se itens do jogo).

Trago esse momento histórico dos games para a refletir:

O que faz tantas pessoas estarem tão envolvidas nesse surto coletivo….ops!…nessa experiência?

Quase como uma dinâmica de pão e circo, os seres humanos se sentem fortemente atraídos por jogos. Segundo Heródoto, o historiador grego, os jogos de dados foram inventados no reino da Lídia durante um tempo de fome. O Rei da Lídia, visando diminuir o sofrimento das pessoas, inventou os jogos de dados e instituiu uma política de governo que dizia que um dia todos poderiam comer e no outro podiam jogar pretendendo que, ao estarem tão imersos nos jogos, ignorariam a fome. E de acordo com o historiador, eles sobreviveram 18 anos de escassez com dinâmica.

Segundo Jane McGonigal, responsável pela criação do termo gamificação, “Nós sentimos que não somos tão bons na realidade quanto somos nos jogos”. A vida real é muito complexa, não temos metas claras, não sabemos se estamos indo para o rumo certo ou não. Porém no ambiente de jogos, você tem missões de acordo com seu nível, você consegue prever seu caminho, entende qual é o seu objetivo principal, recebe feedbacks de que você está indo bem ou não e ainda por cima tem chance de recomeçar, caso tudo dê errado.

Como mostrado na “Teoria das Necessidades” de Maslow (ilustrada abaixo), uma das necessidades dos seres humanos é a autorrealização e os jogos proporcionam experiências muito rápidas e previsíveis de atingir essa necessidade, mesmo que seja efêmera. Essa necessidade de autorrealização é o que faz as pessoas, voluntariamente, enfrentarem obstáculos desnecessários para cumprir um objetivo maior. Como todas aquelas pessoas mostradas no início do texto, buscando completar a sua Pókedex, recolhendo e treinando os mais diversos Pokémons a fim de completar todos os estágios.

Teoria das Necessidades por Maslow. Adaptado pela autora.

Sobre Gamificação

“A Gamificação é uma metodologia por meio da qual se aplicam mecanismos de jogos à resolução de problemas ou impasses em outros contextos.”

Não se trata de criar jogos, mas sim de inserir estrategicamente características de jogos para aumentar a participação e gerar engajamento nas atividades necessárias, explorando essa necessidade de autorrealização. A gamificação trata de trazer o lúdico para atividades que o usuário já teria que fazer, mas com a possibilidade de receber recompensas (virtuais ou físicas) e/ou explorar aptidões pessoais e assim despertar emoções positivas.

Mas quais características são essas?

As características essenciais de qualquer jogo são: meta, regras, sistemas de feedback e participação voluntária.

  • Meta — um propósito que o jogador persegue durante todo o tempo, a partir da realização de tarefas.
  • Regras — conjunto de disposições que condicionam a realização do jogo, moldando o comportamento do jogador.
  • Sistemas de feedback — informações para o jogador de como está sua relação com as atividades.
  • Participação voluntária — Disposição do sujeito em aceitar as condições e se relacionar com os elementos da maneira como foram propostas.

Há outras características relevantes como interatividade, narrativa, recompensas, conceito de vitória, competitividade entre outras, porém opcionais.

Contudo, conforme ilustrado na Teoria das Necessidades, existem todas as outras necessidades que antecedem a autorrealização. Ou seja, se a pessoa não tem suas outras necessidades resolvidas, ela não vai desfrutar do momento de autorrealização. O que quer dizer que se o seu produto ou serviço não estão resolvendo o problema do usuário, não tem gamificação bem feita que vai engajar as pessoas nele.

Então, depois de resolver problemas essenciais, podemos pensar em como transcender a experiência na realização daquelas tarefas através da gamificação. Para isso, precisamos analisar o comportamento dos usuários para tomar decisões apropriadas.

“Motivação é a palavra mágica”

Para construir uma boa estratégia de gamificação, precisamos entender: quem são as pessoas usuárias e quais os contextos em que elas estão inseridas.

Além disso, é importante entender suas motivações que podem se dividir em duas categorias: motivações extrínsecas e intrínsecas. As extrínsecas se referem aos recursos mais instigantes e que vão atraí-las; onde é mais fácil a gente instigar. E as motivações intrínsecas que são seus interesses pessoais na interação com aquele produto ou serviço.

De acordo com Richard Bartle, os jogadores se dividem em 4 categorias de perfis: Predadores, Conquistadores, Socializadores e Exploradores.

Taxonomia de tipos de jogadores, de acordo com Richard Bartle. Adaptado pela autora.

Descrição da imagem: Na imagem há uma ilustração com um eixo x,y. Na parte esquerda do x indica pessoas e na direita, ambiente. Em y, a parte superior indica ação e a inferior, interação. No primeiro quadrante (pessoas, ação) há os predadores que dizem “Eu vou vencer todos” e a ilustração de um ranking de 3 lugares. No segundo quadrante (ambiente, ação) há os conquistadores que dizem “Mais troféus, mais pontos” e a ilustração de uma medalha com uma estrela. No terceiro quadrante (pessoas, interação), há os socializadores que dizem “Eu só quero jogar para curtir” e uma ilustração de duas pessoas onde uma está com um braço apoiado nos ombros da outra. No quarto quadrante (ambiente, interação) há os exploradores que dizem “Eu quero ver o que está acontecendo” ilustrados por um diamante brilhante.

Os predadores gostam de derrotar outros jogadores.

Os conquistadores gostam de acumular riquezas e fazer pontos.

Os socializadores acham mais importante se relacionar com outros jogadores.

E os exploradores gostam de conhecer todo o terreno do jogo, gostam de descobrir todos os aspectos de jogo.

Conhecer com qual perfil seus usuários mais se identificam ajuda a escolher os mecanismos que eles se mais utilizam para alcançar a auto realização. Como por exemplo, podemos citar as batalhas e os rankings, que funcionam bem com perfil de predadores mas talvez não faça sentido para exploradores.

A escolha dessas mecânicas é fundamental para nos ajudar a despertar essa emoção positiva e ter a dedicação de nossos usuários.

Baseado no conceito “Design centrado no humano”, Yu-kai Chou criou o framework Octalysis que elenca 8 motivações principais que tornam os jogos divertidos e envolventes. Ele representa visualmente em um octógono (ilustrado abaixo) em que as características do lado esquerdo despertam os motivadores intrínsecos e os do lado direito os motivadores extrínsecos.

Octalysis de Yu-kai Chou, tradução livre e adaptado pela autora.

Abaixo foi listada, em tradução livre, todas as dinâmicas ilustradas no octógono em relação a seus eixos motivadores.

Significado épico e chamado

  • Narrativa, elitismo, herói da humanidade, coração revelado, sorte de principiante, almoço grátis, criança escolhida e criacionismo.

Desenvolvimento e realização

  • Pontos de Status, emblemas(símbolos de conquistas), recompensas de ações fixas, placar, barra de progresso, lista de missões, toca aqui, coroação, feito de aura, tutorial de sobreposição (passo a passo) e lutas com chefões.

Empoderamento da criatividade e feedback

  • Desbloquear marcos, controle em tempo real, combinações persistentes, feedbacks instantâneos, aprimoramentos, preencher lacunas e acumular venenos.

Propriedade e Posse

  • Pontos permutáveis, bens virtuais, construir do zero, Alfered effect, colecionar conjuntos, avatar, proteção, cargo de recrutador e conexão de monitor.

Influência social e parentesco

  • Fazer amizades, tesouro/presente social, SeeSaw bump, testes em grupo, bandeiras conquistadas, botão para “se gabar”(brag button), pausas para relaxar, âncoras de conformidade, ter/ser um mentor e socialização rápida.

Escassez e impaciência

  • Dinâmicas pontuais, cápsulas magnéticas, pendências, prêmio em partes, opções em partes, última trilha, cronômetro, pausas torturantes, fossos e the big burn.

Imprevisibilidade e curiosidade

  • Escolha brilhante, miniQuests, storytelling visual, easter eggs, recompensas aleatórias, maravilha óbvia, recompensas giratórias, interface de usuário evoluída, recompensas de repente e efeito oráculo.

Perda e prevenção

  • Sunk cost prision, perda de progresso, legítima herança, oportunidade efêmera, status quo sloth, ser o perdedor (Scarlet letter), visual grave e FOMO Punch.

Escolher as dinâmicas mais adequadas para o perfil de pessoas usuárias/jogadoras irá fazer com que elas acessem uma emoção positiva e se dediquem com prazer na realização das tarefas no jogo. Porém, essa escolha deve ser feita com bastante consciência e senso crítico para não causar nenhum dano físico e/ou psicológico nas pessoas que irão utilizar e também ao meio ambiente. Temos o compromisso de criar experiências envolventes, mas também comportamentos saudáveis e ecologicamente corretos.

Por fim, gostaria de agradecer à Carla de Bona pelas trocas, a Mergo Experience pela oportunidade e à PretUX pelo incentivo e fortalecimento da comunidade.

Para saber mais…

Tedtalk com Jane Mcgonigal: “Jogando por um mundo melhor”

Artigo: Death by Pokémon GO: The Economic and Human Cost of Using Apps While Driving (em inglês)

Wikipédia: Arquétipos de Bartle

Artigo: “Octalysis, o framework de Gamificação que você precisa conhecer!”

Artigo: Octalysis — the complete Gamification framework (em inglês)

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