Raça e Design — Reflexões sobre impacto, inclusão e equidade

Rodrigo Muniz
Pretux
Published in
13 min readFeb 22, 2021

O que atravessa a relação entre Raça e Design na realidade (supostamente) pós-colonial brasileira?

Desconforto

⚠️ Nesse texto tocarei em algumas feridas sociais abertas. Caso sinta-se desconfortável em alguns tópicos, peço que faça a experiência de refletir sobre a raiz desse desconforto, perguntar-se de onde ele realmente vem e principalmente não deixar esse desconforto virar estagnação. Tente canalizar essa falta de comodidade para a movimentação, inquietação, curiosidade e ação! O desconforto tem um papel na minha escrita e peço que tenha um papel também na sua leitura. Combinado? 😉

Difícil falar de Design hoje e não citar o seu impacto no mundo e nas nossas vidas. Atrelado à tecnologia, o Design é uma ferramenta de mudanças em grande escala, com esforços que resultam em artefatos, produtos, serviços, redes, plataformas, sistemas e toda sorte de coisas tangíveis que são projetadas para mudar os contextos onde estão sendo inseridas. Para além do resolver problemas, o Design exerce um papel de projetar futuros e realidades. Não é mais uma questão de se mudaremos o mundo com Design, e sim de como vamos seguir causando essas mudanças.

Quem imaginaria que uma rede social criada para avaliar mulheres ‘gostosas’, como o Facebook, iria quebrar gravemente a democracia no mundo todo?

Muitas vezes as pessoas designers não se colocam nesse lugar reflexivo sobre o impacto (sobretudo o não intencional) do nosso trabalho nessas realidades projetadas, tampouco são colocadas nesse lugar pelos processos de Design que usamos ou por suas lideranças.

Isso não é um apontar de dedo, pois eu—uma pessoa negra, gay, do interior de PE e designer—seria tão culpada de uma prática pouco reflexiva de design quanto essas pessoas. Também não tenho a intensão aqui de cobrar ou culpabilizar sobre essa responsabilidade que carregamos. Com esse texto também não quero posar de dono das respostas e da verdade, mas sim trazer provocações para usar o desconforto de forma intencional com o objetivo de convocar o diálogo, e sim: o texto deverá ser tão desconfortável para ler quanto está sendo para escrever (principalmente se você for uma pessoa branca).

Dados e cenário

Imagine um lugar onde 56% de sua população é negra; que a cada 10 habitantes, 3 são mulheres negras 🔗. Okê, okê não precisa imaginar, pois você já deve saber que estou falando do Brasil e a maioria negra da sua população.

Olhando para índices socioeconômicos como renda, violência e opressão: em 2015, brancos ganhavam o dobro do que os negros em média.🔗 O número de mulheres negras assassinadas cresceu 54% ao passo que o feminicídio de mulheres brancas caiu 10% no mesmo período.🔗 A cada 23 minutos um jovem negro é assasinado no Brasil. 🔗

Enquanto isso, ao fazermos um recorte demográfico focado no mercado de UX Design no país, vemos uma realidade bastante diferente do cenário demográfico brasileiro:

https://brasil.uxdesign.cc/resultados-da-pesquisa-panorama-ux-2020-diversidade-5aa14ed95060

Os números da pesquisa Panorama UX 2020 revelam que das 1210 pessoas participantes, 73% se declaram como brancas. O gráfico também revela uma exclusão trágica das mulheres pretas e pardas, principalmente comparando com o cenário das mulheres brancas. Ao analisarmos o cenário de tecnologia como um todo, os números seguem revelando as mulheres negras como a base de uma estrutura opressora.

Colagem com fotos de equipes, eventos e conteúdos de Design com presença majoritária de pessoas brancas
Equipes, eventos e conteúdos de Design com presença majoritária de pessoas brancas
Gif animado da Viola Davis discursando "a única coisa que separa mulheres de cor de qualquer outra pessoa é oportunidade."
Viola Davis e seu já clássico discurso no Emmy de 2015

Os dados mostram o que olhares atentos já vêm percebendo há anos com o "teste do pescoço". Como Designer, o simples ato de olhar ao seu redor revela que a realidade de eventos, equipes e de pessoas vistas como referências na área é uma realidade branca, eurocentrada e elitista.

A opressão começa nos próprios times de design, faltando acesso e oportunidade. Falta nos enxergar, pessoas negras, como capazes de projetar futuros, nossas próprias realidades, como bem dizia o brilhante Abdias Nascimento, no final dos anos 1970 (!!!):

Abdias Nascimento (1914–2011), poeta, escritor, dramaturgo, artista plástico, ativista pan-africanista e muitas outras facetas, fundou o Teatro Experimental do Negro e o projeto Museu de Arte Negra.

"O negro até hoje tem sido objeto de estudo, ele mesmo não participa da elaboração das ideias que sobre ele existem.[…] É fato de extrema importância passar a tomar parte da elaboração da cultura do país e também a inserir como parte da cultura do país a sua experiência de vida, a sua história, a sua cultura, as suas crenças. Isso é importante para que o negro não continue marginalizado, sendo apenas um objeto e não um protagonista da sua própria história."

Essa opressão é um resultado direto e material da história que nos trouxe até aqui e das estruturas que ainda hoje sustentam a nossa sociedade. Porém apesar deste não ser um cenário exclusivo do Design — não significa que o Design deva seguir nessa lógica. Principalmente pensando no papel de projetar novas realidades que o próprio Design tem.

A opressão é projetada

“Como todos os sistemas, sistemas de opressão, desigualdade e inequidade são ’by design’. Portanto podem ser redesenhados.” — Antionette D. Carroll, Social Entrepreneur; Equity Designer; International Speaker and Educator

Desde campanha da Nivea (2011) até acessórios de alta costura da Gucci reproduzindo black face, passando por esponja de aço com alusão a cabelo crespo. Nossa, será que não tinha uma pessoa negra no projeto para avisar?

Provavelmente não. (E se tinha, não era ouvida.)

Os vieses de quem projeta ficam embutidos no resultado gerado, o que causa consequências que não são necessariamente intencionais, mas que nem por isso deixam de causar um impacto real e com efeitos graves para pessoas ou comunidades inteiras, tudo com base em estereótipos de raça, gênero e outros.

Design e Tecnologia não são neutros

A Arquitetura também é uma área do Design que reproduz essa lógica de opressão em vários casos bem intencionados — desde exemplos do início do período do fim do apartheid na África do Sul, na segregação racial dos EUA ou mesmo hoje em dia na Zona Leste de São Paulo, onde pedras são usadas de forma extremamente agressiva para "evitar" moradores de rua num elevado da região; a Arquitetura mostra de forma concreta como a opressão é projeto.

Como todo sistema de opressão, o Racismo foi (e está sendo) projetado. Para mudar o impacto negativo desses vieses (inconscientes ou não) precisamos de ações conscientes e intencionais.

Eu ouvi alguém chamando a Angela Davis?

Antirracismo

Apesar de reconhecer a importância de falarmos sobre sermos antirracistas, precisamos avançar para além do "reconhecer privilégios", olhando primeiro para trás para aprendermos com o passado antes de seguirmos em frente buscando, com olhar atento, a raiz do problema. Aqui, argumento que ser antirracista nesta realidade pós-colonial (também no design), passa necessariamente pelo diagnóstico e reconhecimento do nosso Eurocentrismo.

“Todos os brancos são beneficiários do racismo, embora nem todos sejam signatários” — Sueli Carneiro

Sueli Carneiro é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e diretora do Geledés — Instituto da Mulher Negra.

Branquitude

Não só de negritude vive uma realidade racista. Nessa conversa é de extrema importância racializar também pessoas brancas, definir, analisar e refletir sobre o que significa ser branco — principalmente se você for uma pessoa branca. Lia Vainer Schucman define a Branquitude como o termo utilizado para denominar as construções das identidades raciais brancas em sociedades nas quais a categoria raça e o fenômeno do racismo funcionam como organizadores da estrutura social.

A branquitude é não só uma identidade mas um lugar social, precisa ser pensada de modo relacional a outras identidades raciais, a partir de sua construção sócio-histórica e das relações de poder da estrutura social na qual está inserida.

Fragilidade Branca (e o tal do desconforto)

Segundo Robin DiAngelo, os brancos vivem em um ambiente social que os protege e isola do estresse relacionado às questões raciais. Este ambiente isolado, cria expectativas brancas de conforto racial ao mesmo tempo em que diminui a capacidade de lidar com o estresse racial. A Fragilidade Branca é um estado em que até mesmo uma quantidade mínima de estresse racial se torna intolerável, desencadeando uma série de movimentos defensivos. Esta fragilidade é o que acaba impedindo o diálogo e qualquer tentativa legítima de pessoas brancas de serem antirracistas, perpetuando o eurocentrismo e as opressões de raça.

O que o Eurocentrismo causa na prática?

Quadro “Redenção de Can” retrata o projeto com políticas públicas de Eugenia no Brasil para apagar os negros da população em até 3 gerações.

Apagamento e eugenia

Apagamento ou Epistemicídio é a destruição de conhecimentos, de saberes, e de culturas não assimiladas pela cultura branca/ocidental. O professor de filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Renato Nogueira define Epistemicídio como:

A colonização, o assassinato e a recusa da produção de conhecimento de determinados povos, no caso brasileiro, o negro e indígena.

É esse processo eurocentrado que acontece não só no Design mas no ocidente como um todo. Uma supervalorização do que é europeu, de tudo o que vem do norte global para "nortear" nossos caminhos.

Precisamos falar mais sobre Eugenia

A Eugenia chegou oficialmente no país em 1914, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, com uma tese orientada por Miguel Couto, autor de livros sobre saúde pública no Brasil. Uma pseudo-ciência que foi baseada em mitos sobre a teoria da evolução, para provar uma suposta superioridade racial do branco — que estava presente inclusive em políticas públicas nos anos de 1930, defendendo o embranquecimento da população. Resumindo: Supremacia Branca.

Yurugu

A Dra. Marimba Ani, antropóloga intelectual Pan-africanista chama de Maafa o processo de escravidão e diáspora africana na experiência do negro, ou o Holocausto Africano. Ela faz uma crítica ao pensamento de supremacia branca europeia com o conceito de Yurugu. O título do livro deriva de uma lenda dos povos Dogon que descreve um ser incompleto, mas não se engane, supremacia branca não tem nada de lenda. Analisando e criticando de forma bem abrangente as raízes da supremacia branca, Ani defende que a filosofia europeia crê, implicitamente, em sua própria superioridade e se relaciona com o universo como se este fosse um objeto a ser consumido.

Esta lógica de opressão é a mesma mentalidade que dita até hoje o que valorizamos estética, filosófica e culturalmente na nossa prática — racionalizando uma realidade uniforme e universal. Alguém aqui pode estar se perguntando o que isso tem a ver com Design:

Modernismo e seus "ismos"

O Modernismo da Bauhaus do século XX, movimento mais influente do Design como o conhecemos hoje, trouxe uma filosofia universal para nós designers — que resultou em supostas verdades como:

“A vida do designer é uma vida de luta contra a feiura. Como um médico luta contra uma doença. Para nós, há uma doença visual em nosso entorno, e o que tentamos fazer é curar esta doença com Design” — Massimo Vignelli

Esse movimento influencia fortemente até hoje o campo do Design, com os seus princípios consolidados por máximas como minimalismo, racionalismo e o funcionalismo em que "forma segue a função". Sua estética e ideias dominam nossos espaços com um sentido cartesiano, onde há um belo e um outro, um "bom design" e um outro design que precisa ser combatido. Ou seja, um pensamento opressor.

O seu Design é opressor?

O seu Design é oprimido? Seu Design é racista? Quem são suas referências de Design? Quem está fazendo Design na sua bolha? Onde estão nossas referências negras em Design?

São algumas das perguntas que podem ser feitas ao encararmos o nosso próprio Design.

Pluriversalidade

Considero este conceito fundamental para pensarmos caminhos diferentes nesta suposta verdade universal e uniforme (não só no Design). Ele foi cunhado pelo filósofo sul-africano Mogobe Ramose, grande pensador das Filosofias Africanas. Para ele, onde existe humanidade existem também experiências e vivências, ou seja, existem sabedorias. Além disso, ele afirma que para fazer e estudar filosofia é preciso ter a disposição de reconhecer a existência de demais filosofias; e mais: é preciso se engajar no diálogo com estas demais formas de existir e pensar. Ou seja, não basta reconhecer sua particularidade e negar outras formas de ser. A filosofia é, portanto, onipresente e pluriversal.

Então será que precisamos pensar em "Designs" e não em um Design?

A necessidade urgente de olhar para dentro

Nesta realidade eurocentrada, a nossa própria identidade é muito carente de um olhar de estima real de nós mesmos. Por isso, acredito que a melhor forma de começarmos a pensar práticas pluriversais é olhando para dentro, para nossa própria estética, nossa identidade brasileira, nossa cultura e todos os elementos que a compõem.

Ao olhar nossa identidade com suas raízes indígenas, europeias e africanas, precisamos novamente ter um olhar atento para o apagamento de figuras negras do nosso passado e do presente (e também indígenas).

A estética incrível e ainda desconhecida pelos brasileiro de Abdias Nascimento nas artes plásticas dos anos 1970

“Por que vocês precisam buscar uma referência nos Estados Unidos? Eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês comigo.”

Resumiu Angela Davis, ícone do feminismo negro norte-americano, ao visitar o Brasil em 2019.

Lélia foi pioneira nos estudos sobre Cultura Negra no Brasil e co-fundadora do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras do Rio de Janeiro (IPCN-RJ), do Movimento Negro Unificado (MNU) e do Olodum

Para além do Design, precisamos reconhecer, absorver e referenciar também nomes da cultura negra brasileira como: Lélia Gonzalez, Clementina de Jesus, Nei Lopes, Milton Santos, Elza Soares, Emicida, Mãe Beata de Yemanjá, João Francisco dos Santos, Gilberto Gil, Sueli Carneiro, Conceição Evaristo, Jorge Lafond, Criolo, Milton Nascimento, Linn da Quebrada, Lázaro Ramos, Taís Araujo, Carolina Maria de Jesus, Jackson do Panddeiro, Enedina Alves Marques, Margareth Menezes, Xênia França, Maju, Luedji Luna, Racionais MC, Sonia Guimarães e tantas outras pessoas que protagonizaram ou protagonizam suas produções culturais e as construções da nossa identidade brasileira.

(Com certeza estou sendo injusto ao deixar de adicionar alguns nomes, mas a ideia está posta.)

Sulear o(s) Design(s)

América invertida e mapa feito pelo Pedro Aguiar, professor da Universidade Federal Fluminense — UFF

No livro "Pedagogia do oprimido", Paulo Freire apresenta dois conceitos interessantes de serem analisados nesse contexto:

A invasão cultural, caracterizada por manipulação de conquista, é também uma ação contra o diálogo, alienante e uma forma de dominar cultural e economicamente, procurando incutir a inferioridade intrínseca nos invadidos. Já a síntese cultural trata-se de aproveitar os conhecimentos coloniais para seguir construindo outra lógica que não seja opressora, com base no diálogo.

Capa da revista Antropofágica mostra ritual de canibalismo

Quem teve a oportunidade de estudar o Modernismo no Brasil, deve saber que o Movimento Antropofágico, manifestação cultural e artística da década de 1920, trazia a Antropofagia como a desconstrução do colonialismo. Propondo uma estética “não-catequizada” em que a cultura de um país periférico não deve ser resultado de um processo passivo de modificação da identidade de fora para dentro, mas um processo ativo de elaboração da identidade de dentro para fora. Escolhemos nossos referenciais e construímos coisas novas a partir deles. Ou seja, um processo de síntese cultural.

Pensar uma Neoantropofagia ou Antropofagia 2.0, parece ser um ponto de referência fundamental. Logo, não devemos negar o colono em nós ou na nossa prática mas sim reconhecê-lo e "devorá-lo", a fim de sintetizarmos o que é útil para nós — e a partir daí definirmos nossas próprias referências, nossas práticas e nossa identidade.

Algumas referências de Design decolonial

Equity-Centered Community Design, criado pelo Creative Reaction Lab é uma abordagem de Design com foco em equidade.

Concluo com algumas referências para pesquisas, estudos e práticas de Design baseadas em modos e métodos não opressores. Infelizmente ainda não temos muito material prático em português, mas algo me diz que isso está para mudar.

Quem tiver mais materiais e links, por favor pode deixar nas respostas.

“Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: As pessoas se libertam em comunhão.” — Paulo Freire

Paulo Freire e Abdias Nascimento, grandes pilares e referências do pensamento decolonial, emancipatório, pluriversal e antirracista no mundo.

Antes de encerrar, é muito importante enfatizar o risco de cairmos numa armadilha perigosa: acharmos que seremos pessoas designers libertadoras e emancipadoras, capazes de libertar o oprimido.

Como designers precisamos tentar agir menos como estudiosos de um "objeto", que supostamente não sabe o que quer e no qual podemos aplicar nossos toolkits com suas verdades embutidas; e passar a nos colocar mais num lugar de percepção e reflexão de quem somos e do nosso redor. Tenho confiança que isso nos levará a possibilidades de Designs antirrascistas, pluriversais e direto do Sul global. E você? O que acha?

Ah e lembra da ação do primeiro parágrafo? Simbora? 😉✨

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Rodrigo Muniz
Pretux

Pernambucano em São Paulo. Designer na Neon, mentor na PretUX, DJ nas pistas, pai de plantas em casa… — http://muniz.nu