Travestis pretas no UX design e o que a interseccionalidade tem a ver com isso

Dandara Felícia Silva Oliveira
Pretux
Published in
8 min readOct 20, 2021

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Introdução

Eu poderia escrever esse artigo, que faço com muita honra e prazer, de maneira bem técnica explicando a minha curva de aprendizagem no curso de UX Design da Mergo com uma bolsa dessa comunidade maravilhosa que se chama PRETUX, mas não vou fazer isso, não. Ou melhor: eu vou fazer, mas não só isso.

Vamos falar, nas próximas linhas, sobre diversidade e inclusão e a possibilidade de uma analítica via interseccionalidade, uma proposta ousada de Patrica Hill Collins em seu último livro e que pensamos seja interessante para imaginar novos caminhos possíveis na tecnologia com diversidade e inclusão reais.

Sobre mim e como cheguei até a PretUX

Desde a minha adolescência me interesso por tecnologia. Já com 15 anos, tive meu primeiro computador, na época tinha comprado via pessoas que contrabandeavam peças para o Brasil — adquirir uma máquina aqui era muito caro. Óbvio que, como qualquer pessoa preta, naquela época eu não tinha dinheiro para pagar. Precisei vender alguns itens que tinha em casa para conseguir, aos poucos, adquirir as peças e montar esse computador.

Essa empolgação pela tecnologia começou a se esvair quando precisei enfrentar a vida adulta e, como uma travesti preta, percebi que aquele lugar não seria um lugar seguro para ser pensado como um trabalhando ou até mesmo como hobby. Obviamente, tudo evoluiu até aqui e vários grupos têm tentado reverter essa realidade.

Foi assim que, zapeando pelo Twitter, conheci uma nova modalidade de trabalho na tecnologia que é o UX Design. Aquela empolgação com a tecnologia voltou com força total e eu comecei a procurar sobre a carreira e como adquirir conhecimento sobre ela. Foi aí que, podcast daqui, Ladies That UX de lá, ouvindo uma mulher preta, que eu descobri que existia ela — a comunidade de pretos do UX, a PRETUX, e então me apaixonei por um lugar. Fui super bem recebida, acolhida e tive a oportunidade de ganhar uma bolsa para a minha primeira jornada dentro do UX. Um curso de 3 meses da Mergo.

Mas o que é essa tal interseccionalidade?

A palavra interseccionalidade foi utilizada pela primeira vez em um artigo em 1989 por Kinberlè Crenshaw. A filósofa americana detalhava nesse artigo, como a justiça americana era injusta com as mulheres pretas, uma vez que não considerava a encruzilhada de opressões causadas por gênero e raça em processos de mulheres negras que exigiam que as montadoras de automóveis as contratassem. No entanto, no Brasil de 1985, Lélia Gonzalez — mulher preta, mineira que se transferiu para o Rio de Janeiro — já debatia o racismo e sexismo na sociedade brasileira. No texto que começa de maneira bem-humorada e lúdica, Lélia tece suas considerações sobre como as questões de gênero e raça influenciavam a construção de uma figura feminina brasileira subserviente, pronta para a exploração e para o sexo não consensual.

Nesse momento, você deve estar se perguntando, porque falar sobre interseccionalidade e toda essa coisa num artigo sobre UX design para a PretUX? Porque, por mais que interseccionalidade diga sobre pensar em um lugar de fala, ela é muito mais que isso. Ela serve para que a gente se questione onde estão as nossas, as parecidas com a gente que não têm o poder de acessar esse lugar que nós estamos acessando?

Na prática, a interseccionalidade diz muito mais sobre falar daquelas que não estão do que falar daquelas que estão. E foi exatamente isso que eu senti quando comecei a frequentar o curso para o qual eu ganhei a bolsa.

Onde estão as outras? Onde estão as outras pretas? As outras travestis pretas? As outras lésbicas? As outras bi? Onde estão?

O processo de criação

Durante três meses, tivemos a oportunidade de trabalhar em um processo de UX design que começou com um pedido ao time:

Vocês precisarão elaborar um produto que contemple a questão emprego, pandemia e empreendedorismo”.

Assim, começamos a desk research descobrindo que, no Brasil, o número de mulheres empreendedoras cresceu 40% devido à pandemia da COVID-19 e que, no mundo todo, 200 milhões de pessoas perderam seus postos de trabalho.

A partir daí compilamos uma matriz CSD que, além de fazer críticas ao governo atual e ao modo como vêm conduzindo a economia na pandemia, compilava nossas principais certezas e dúvidas. Será que as mulheres empreendem mais por serem chefes de família? Ou será que seria possível que elas quisessem mesmo empreender mais? Será que as condições de trabalho pioraram no país?

Com isso, nós conseguimos achar uma variável de segmentação. Um caminho para que pudéssemos entender quem eram as pessoas com quem queríamos falar. E esse perfil falava muito sobre interseccionalidade. Buscávamos mulheres que sustentavam suas famílias, que tinham perdido o emprego na pandemia e resolveram empreender para complementar a renda familiar ou sustentar suas famílias. Essas mulheres venderiam ou anunciariam seus produtos na internet.

Com esse perfil em mente, construímos um questionário que nos ajudaria a chegar até essas pessoas para que pudéssemos fazer uma entrevista qualitativa que nos ajudaria a entender melhor as dores e os desafios dessas mulheres.

E o perrengue do recrutamento. Ah o perrengue do recrutamento! Liga de lá, chama daqui, busca de acolá e conseguimos. Três entrevistas qualitativas fresquinhas saindo do forno. Ou melhor, saindo do papel mesmo.

Compila dados, faz quantitativa para descobrir os números dessas mulheres, constrói persona e chegamos até Rachel, uma mulher negra que vende cosméticos na internet e sonha em ter sua própria marca. Rachel tem dificuldades com o tempo e não consegue conciliar as vendas da loja, a universidade, a divulgação dos seus produtos e ainda manter toda a burocracia de taxas e impostos em dia.

Preciso fazer um aparte aqui porque uma coisa me intrigava. Por mais que soubéssemos que mulheres pretas foram as que mais sofreram com a pandemia e o desemprego, nós ainda não conseguíamos achar essas mulheres e isso continuava me incomodando, assim como estar em uma turma onde diversidade era uma coisa que não existia muito.

Partimos para a ideação, vários insights. Como podemos ajudar essas mulheres com o tempo que tínhamos e, principalmente, sem orçamento. Mapeamos a experiência e chegamos ao tão famoso MVP.

Resolvemos que queríamos um app que informasse a essa mulher as pendências burocráticas que ela tinha e ajudasse a resolvê-las, gerando códigos de barra para que ela pudesse fazer os pagamentos necessários.

Um parênteses antes de continuarmos

Lembra que eu falei sobre diversidade? Bem no início do curso, eu recebi uma mensagem no whatsapp de um rapaz que estava na turma dizendo que estava muito satisfeito porque teria uma travesti na turma e que isso era fundamental para compreender melhor determinados pontos de vista. Eu também acho, diversidade é fundamental não só porque aquelas vagas seriam nossas por direito, visto que desde a fundação dessa nação corpos abjetos, aqueles que não estão dentro da norma padrão do sujeito universal branco detentor de direitos, são expropriados e roubados e tem suas chances e sonhos destruídos desde a mais tenra idade. Mas também porque a nossa presença, inventividade, imaginação e determinação criam verdadeiras proezas.

A generosidade e a pitada travesti

A dinâmica toda do curso se dá em torno de times que fazem os trabalhos práticos, entrevistas, recrutamentos e toda a parte de desenvolvimento da ideia e o meu time tinha 5 mulheres e um homem.

Claro que teve arranca-rabo quando, num dia que não estávamos conseguindo chegar a um consenso, a mágica se fez. Numa dessas discussões, resolvemos jogar limpo umas com as outras e explicar o que cada uma estava sentindo. Nossas dores e nossas angústias, e o que esperávamos daquele curso e daquele investimento de tempo. Assim, conseguimos contornar a situação e chegar em um denominador comum. A magia da generosidade feminina fazendo sucesso no time do curso.

Mais uma correria, cria protótipo e monta validação. Mais um momento de research. Valida o protótipo, tudo funcionando bem, faz a iteração da validação e ufa, criamos um modelo de negócio no Canvas. Jornada terminada, estávamos chegando ao final da formação e ainda teríamos uma aula para discutir como foi o curso.

O grande final

A aula chegou, nosso time se cumprimentou, agradeceu a parceria e por estarmos juntos. Fizemos homenagens uns aos outros de câmera aberta, inclusive para dizer o quanto foi dura, mas o quanto foi feliz a jornada que tinha nos levado até aquele momento. E ali, naquele instante, eu achei o que procurando. Eu estava ali, uma travesti preta da periferia que resolveu correr atrás dos seus sonhos e que tem uma comunidade incrível me ajudando a conseguir isso.

E interseccionalidade e diversidade é sobre isso também. É na diferença que os consensos se fazem e que as diversas experiências se cruzam para nos ajudar a ter um olhar mais compreensivo sobre nós e sobre os outros. Que nos ajude a abrir mão da nossa posição quando ela não é boa, mas que nos dê o suporte necessário para defender nossa posição quando a gente acredita no que está fazendo.

Nosso grupo não foi o único e feliz só por conta da minha presença, mas eu tenho certeza de que a minha história e as marcas de minha identidade ajudaram a construir uma equipe coesa que estava junto para o que desse e viesse — falar sobre inclusão e diversidade tem a ver com isso. É construir lugares confortáveis para que pessoas como nós se sintam seguras em defender seus pontos de vista.

Vida longa à PretUX, essa comunidade maravilhosa que tem ajudado a criar esses espaços seguros para nós. Que consigamos juntas ampliar a nossa participação nesse mercado para que cada vez mais interseccionalidade seja uma coisa que nós já implementamos e não uma pergunta sobre aquelas que faltam. E para que consigamos cada vez mais nos incluir não só nas fileiras do trabalho, mas também naquelas dos lugares de poder e decisão. Só assim conseguiremos ampliar esses lugares seguros onde mulheres pretas e transvestigêneres possam defender suas posições sem serem consideradas violentas ou agressivas. Vamos juntas.

Referências Bibliográficas

CRENSHAW, K. A urgência da Interseccionalidade. Disponível em: https://www.ted.com/talks/kimberle_crenshaw_the_urgency_of_intersectionality?language=pt-br#t-940921. Acesso em: 15/07/2021.

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano : ensaios, intervenções e diálogos. Org.: Flavia Rios , Márcia Lima. 1a ed. Rio de Janeiro : Zahar, 2020, 496pp.

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Dandara Felícia Silva Oliveira
Pretux

Travesti preta tansfeminista interseccional. Falo aqui sobre gênero, raça, classe, sexualidade. Também escrevo sobre UX Design e teconologia.