Vidas visíveis, vidas vivíveis: sobre a importância de mostrar e aparecer

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Por Jade Arbo

O mês do orgulho LGBTQIA+ surgiu como uma reivindicação pelo direito de aparecer. Esse aparecer envolve desde nos vermos refletidos na mídia que consumimos até poder andar na rua sabendo que chegaremos em casa seguros. O que celebramos neste mês é uma luta constante pelo direito de sermos quem somos de forma plena, e essa é a pauta que une pessoas tão diferentes sob uma mesma sigla.

Para a população LGBTQIA+, o ato de aparecer vem carregado de medo. Medo da rejeição, medo da perda de reconhecimento, medo da violência. Ser visto torna pessoas as quais a norma não inclui vulneráveis a todo o tipo de violência, e às diferentes formas com que esses sujeitos são recebidos por famílias, amigos, pelo lugar onde trabalhamos, onde estudamos, pelos espaços que percorremos.

Falar sobre a importância de aparecer, sobre o direito de ser reconhecido como uma pessoa cuja vida deve ser valorizada e protegida é falar sobre o que consideramos e o que deixamos de considerar, enquanto sociedade, uma vida. Para aqueles que nunca sentiram na pele as opressões de raça, classe, gênero ou sexualidade, pode parecer estranho que muitos de nós, pessoas de alguma forma “à margem”, nos vemos com frequência relegados a um lugar de “não pessoa”, um lugar “sub-humano”.

Diante dos índices de violência contra a comunidade LGBTQIA+, é importante refletirmos sobre o porquê desse desejo de invisibilização, de apagamento, e o que podemos fazer quanto a isso com as ferramentas que possuímos.

A construção dessa condição de “não pessoa”, de “não vida”, é um processo complexo de silenciamentos, de invisibilização e apagamentos dessas pessoas cujo aparecimento ameaça a ideia de que existiria apenas uma forma de existir. A nossa invisibilização, a invisibilização da nossa forma de ser e de amar, é justamente o que sustenta o que podemos chamar de “cisheteronormatividade”: o conjunto de relações de poder que regula o sexo, o gênero e a sexualidade a partir de uma matriz heterossexual.

Para a filósofa feminista Judith Butler, que pensa questões de gênero, sexualidade e identidade, o gênero definido dentro de uma estrutura binária de masculino x feminino é parte do que nos humaniza perante essa sociedade cisheteronormativa. Para pensar como isso se dá, basta nos lembrarmos qual é a primeira coisa que se pergunta sobre um bebê. O bebê passa a existir quando damos a ele um nome — um nome de menina ou de menino — e a partir daí as pessoas compram os presentes e escolhem as roupas e a decoração do quarto e esperam que essa criança se apresente de uma forma condizente com o sexo que foi designado ao nascer, e que se interesse pelo sexo oposto.

A população LGBTQIA+ desafia essa coerência de diferentes formas, mostrando o quão arbitrárias e limitadas as nossas concepções binárias são. Esse desafio representa uma ameaça tão grande para a cisheteronorma que ela se vê obrigada a nos negar constantemente, de nos negar o direito de existência, e essa negação muitas vezes toma forma de violência física.

A PL 504/2020, que tramitou no Estado de São Paulo entre 2020 e 2021 e que buscava proibir propagandas que representassem a população LGBTQIA+, mesmo não tendo sido aprovada trouxe à tona uma discussão importante para os profissionais do meio publicitário em todos os níveis da produção: qual o impacto social desse bloqueio à representação desses sujeitos? Qual o papel da publicidade como uma das formas discursivas mais presentes no nosso dia a dia?

As peças publicitárias tanto podem colaborar para a manutenção de discursos conservadores sobre a identidade na nossa sociedade quanto podem assumir o papel disruptivo de visibilizar formas de existência diferentes do que estamos acostumados a ver e, portanto, a aceitar como vidas. Mostrar os sujeitos em toda a sua diversidade e deixá-los aparecer, contar suas histórias, é uma forma de ajudar a equilibrar a balança que há muito tempo pesa contra o direito de a comunidade LGBTQIA+.

A humanização de pessoas cuja experiência de gênero, raça e sexualidade difere dessa cisheteronorma — representada na imagem do homem branco cisgênero heterossexual de classe média — importa porque expande o nosso imaginário, expande o que somos capazes de entender, de ver como pessoas dignas de existirem.

No sentido oposto, quanto os discursos da mídia silenciam sobre a existência dessa diversidade, quando deixam de reconhecer e representar essas pessoas, eles colaboram para a desumanização desses indivíduos, e o resultado dessa desumanização são os altos índices de crimes de ódio direcionados a essas “não pessoas”, a essas vidas que a nossa sociedade não compreende e, portanto, considera matáveis.

Butler nos diz que “embora estejamos de algumas maneiras obrigados a reproduzir as normas de gênero, a polícia responsável por nos vigiar algumas vezes dorme em serviço”. Com isso, ela fala sobre a relação complicada entre quem somos e quem a norma nos permite ser, da regulação da nossa existência e das brechas inerentes ao sistema através das quais podemos mostrar a diversidade e deixar com que os sujeitos que compõem a comunidade LGBTQIA+ apareçam.

Quando essas brechas se apresentarem, sejamos sempre estes que tornam os lugares de visibilidade mais acessíveis aqueles os quais estamos tão acostumados a não ver, para que possam ocupar esses lugares, mostrar suas experiências, suas vidas, seu rosto, contar suas histórias… Talvez mostrar e aparecer sejam as ferramentas que temos para que mais de nós voltem para casa em segurança.

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