Primeira Impressão
Primeira Impressão #44
9 min readDec 9, 2015

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NÃO ENCONTRO

O ANTÔNIMO DE APARECIDA

Caso de desaparecimento de Beatriz Winck completa três anos em outubro de 2015 e ainda está sem solução

Por Dominique Nunes (texto) Joyce Heurich (fotos)

Em 1950, ainda namorados, Delmar Winck e Beatriz Joanna Winck apenas saíam acompanhados da mãe da moça, mesmo que fosse apenas para ir ao cinema. Com o casamento, em maio de 1956, o casal ganhou a liberdade dos passeios que tanto desejava realizar junto. Em mais de 50 anos de união, saíram de Portão, Rio Grande do Sul, para visitar os mais variados locais, até que, em 21 de outubro de 2012, o roteiro de suas vidas mudou por completo.

“Essa fatídica aí”, se refere o aposentado de 85 anos ao lembrar da viagem onde viu sua esposa desaparecer e não ser encontrada até hoje. A programação era simples: visitar algumas cidades pontuais, com destino final em Poços de Caldas, Minas Gerais. Entretanto, em uma das paradas, em Aparecida, cidade religiosa em São Paulo, Delmar perdeu Beatriz de vista por segundos suficientes para que o mistério de seu desaparecimento o envolvesse até hoje.

Assistido com comoção e atenção por uma das filhas, Flávia Helena Winck, o senhor de olhos marejados por trás dos óculos lembra seus últimos momentos com Beatriz, em uma loja do Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida. “A fila estava grande, tinha escolhido algumas coisas, quando ela me disse que esperaria eu pagar ali na porta. Aquilo lá está sempre lotado, a fila era enorme, então, quando chegou a minha vez, olhei e ainda a vi me esperando de braços cruzados. Fiz o pagamento com o meu cartão, peguei a sacola e, quando saí da fila, ela já não estava mais lá”, conta.

Com ar de inconformação, o aposentado ressalta que a esposa nem mesmo se dirijia ao banheiro sem o avisar, principalmente em viagens em grupos. “Eu fui onde ela deveria estar me esperando, mas não estava lá. Então fui ao hotel, ao santuário, ao nosso ônibus e no ponto de encontro procurá-la. Anunciaram no alto falante o nome dela duas ou três vezes e nada. Fiz correndo o trajeto pela cidade que chegou a me dar bolhas na sola dos pés”, descreve.

Delmar relembra o diálogo com os funcionários do hotel, ao afirmarem que a sua esposa não havia ido para o quarto. Segundo o aposentado, foi nesse momento em que de fato começou a se preocupar com o que teria ocorrido. A partir de então, as buscas por Beatriz nunca mais cessaram.

A filha, emocionada, diz: “Desculpa, mas agora eu vou ter que chorar. Quando o pai ligou pensei que a mãe tivesse falecido, mas quando a gente soube que ela tinha desaparecido foi pior”, disse entre lágrimas.

Experiência traumática

A psicóloga clínica Cássia Cruz define situações traumáticas como as que a integridade ou até mesmo a vida de alguém é posta em risco. “Uma pessoa desaparecida representa a dúvida maior: desapareceu porque quis ou foi levada? Está morta ou viva? Está presa em algum lugar? Sofre ou sofreu tortura? Tudo isso gera muito sofrimento, em especial os aspectos da tortura, abuso sexual e algo que é pouco falado, que é o medo de que a pessoa possa ter sumido por vontade, o que deixa familiares com a sensação do desamparo”, contextualiza.

Para a profissional, em casos de desaparecimentos pode ocorrer a necessidade de se aproximar de itens que façam recordar do desaparecido, como roupas, fotografias, em especial pelo medo de esquecer-se dos traços, do cheiro, das características de quem sumiu.

Ao contrário do que a maioria pode pensar, Cássia afirma que é necessário falar sobre a possibilidade de morte. “O suporte necessário para os familiares terá que vir de fora, em especial de um profissional qualificado para ajudar quem está em sofrimento a se reorganizar. A intervenção não tem o intuito de excluir o medo da morte, mas de dar voz, de ajudar a ressignificar e pensar no assunto de forma clara e mais coerente”, destaca.

Segundo a psicóloga, todo extremismo deve ser acompanhado e com muita seriedade, como, por exemplo, o isolamento, o uso abusivo de medicamentos ou substâncias que “entorpecem as emoções”, assim como os medos excessivos. Além disso, alucinações, depressão ou um comportamento extremamente enérgico, de forma incoerente com as situações, devem ser observados.

Para ela, o sintoma mais importante é o relacionado à ideação suicida: falar que o mundo não tem mais sentido, que prefere morrer a viver a situação, querer morrer para encontrar a pessoa onde ela está ou para poder cuidá-la “em outro plano”. A psicóloga alerta que, nesses casos, a ajuda profissional deve ser buscada o mais breve possível, e a pessoa deve ser mantida em vigilância em tempo integral.

Para aliviar o sofrimento, Cássia cita a boa rede de apoio, seja da família, amigos, grupos de auxílio, comunidade religiosa. Para a profissional, nos casos dos desaparecimentos, é necessário que o assunto seja tratado devidamente, levando-se em conta sua gravidade, respeitando e compreendendo o sofrimento daqueles que lidam todos os dias com essa dor.

Busca autônoma dos filhos

O filho mais velho do casal, João Carlos Winck, 56 anos, tomou as primeiras providências em relação ao desaparecimento da mãe. “Fui à delegacia fazer o boletim de ocorrência de desaparecimento, iniciamos buscas nas cidades vizinhas da região, asilos, hospitais, IML, cemitérios, fizemos contatos com a policia, com escoteiros, rádio e televisão e jornais”, lembra.

Até hoje, mês a mês, o técnico químico tira alguns dias de folga e realiza viagens para buscar pela mãe. “Já tive em São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás, Minas Gerais, inclusive Paraná e Rio Grande do Sul. Não tem pista alguma, ninguém viu ou ouviu algo sobre onde ela poderia estar, é como se tivesse sido abduzida por um Ovni”, narra.

O filho prefere realizar buscas próprias a acreditar que somente a polícia da região pode resolver o caso. “Infelizmente, a polícia tem inúmeros casos para resolver e tem outras prioridades, pois desaparecimento não é crime. Tento acreditar que estão procurando, mas é complicado. Para mim, é uma prioridade. Primeiro, eu sou filho dela. Segundo, eu sinto gratidão, pois ela me gerou e educou”, fala.

Flávia acredita que, ao todo, ela e o irmão espalharam mais de 15 mil cartazes em toda a região da cidade de Aparecida. “Distribuímos nos postos de gasolina, Polícia Rodoviária, pedágios. Nós temos a ajuda de médicos e enfermeiros em São Paulo que cuidam quando chega alguém sem identificação nos hospitais. Se as características fecham com as dela, eles nos mandam foto. Ajuda é o que não falta. Morta pra nós ela não está, se não apareceria um corpo, né? Então a mãe está em um lugar em que não pode pedir ajuda. Estamos vivendo em um pesadelo do qual não acordamos mais”, lamenta.

Onde está Beatriz?

Segundo estimativas do Ministério da Justiça, a cada ano pelo menos 250 mil pessoas desaparecem no Brasil sem deixar vestígios. De acordo com o delegado de polícia Marcos Rogério Pereira Machado, coordenador da Unidade de Inteligência Policial do Departamento de Polícia Judiciária de São Paulo — Interior (Deinter) São José dos Campos, em relação ao desaparecimento de Beatriz foi instaurado um Inquérito Policial na 1ª Vara Judicial do Fórum de Aparecida, São Paulo, até então presidido pelo delegado Jair da Silva Ramalho Filho.

Este enviou o caso ao Poder Judiciário, em 26 de junho de 2013, para que os autos fossem encaminhados ao Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) em São Paulo, para continuidade das investigações. O caso foi então encaminhado, no dia 27 de agosto de 2013, para a Delegacia de Pessoas Desaparecidas. Até então, não há indícios do paradeiro de Beatriz.

O que fazer se alguém desaparecer?

De acordo com o portal da Associação das Pessoas Desaparecidas do Brasil, existe um mito de que é preciso esperar 24 horas ou até mesmo 48 horas para comunicar o desaparecimento. Na verdade, não é necessário. Ele deve ser comunicado de imediato e medidas devem ser tomadas o quanto antes. Os familiares devem procurar o Departamento de Polícia mais próximo para formalizar o desaparecimento, levando foto atual da pessoa e algum comprovante de residência.

O primeiro procedimento da polícia, após o registro, é fazer uma busca em toda a rede estadual de hospitais, casas de saúde, e Instituto Médico-Legal (IML). O processo visa encontrar pessoas que possam estar sem consciência, vítimas de algum acidente, ou casos fatais. Se o desaparecimento não for solucionado na busca, é aberto um inquérito policial para investigação sobre a possibilidade de crime. É possível que haja suspeita de sequestro ou rapto. Nessa situação, é solicitada a quebra do sigilo telefônico ou dos meios tecnológicos do desaparecido.

Em casos de idosos, é necessário o bloqueio do benefício ou aposentadoria que ele recebe. O boletim de ocorrência deve ser apresentado na agência bancária para solicitar o procedimento. Em tentativa de saque, o gerente do banco deve comunicar imediatamente a polícia. Em casos de emergência, o Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa da Polícia Civil do Rio Grande do Sul pode auxiliar pelo número 197.

Caso Beatriz Winck mudou os ares de Aparecida

Delmar Winck, marido da idosa que desapareceu na cidade de Aparecida, São Paulo, lembra da triste coincidência daquela tarde de 21 de outubro de 2012. Segundo o aposentado, haviam câmeras de segurança do Santuário Nacional justamente em frente ao local onde Beatriz foi vista pela última vez. Entretanto, após as buscas continuarem sem sucesso, a família e a polícia abriram o pedido de requerimento das gravações do dia do desaparecimento.

Para a surpresa de Delmar, aquela torre de segurança, cheia de andares e monitores por todos os lados, não guardava uma gravação por mais de uma semana. “O funcionário de lá me disse que não podia passar, pois a fita foi sobreposta. Eles reaproveitam o material, nada fica arquivado. Alguns dias depois passei pelo mesmo local e vi um caminhão com guindaste colocando mais câmeras no local”, conta.

O desaparecimento de Beatriz não só motivou a instalação de mais câmeras de segurança, como fez com que uma lei de 1998 finalmente entrasse em vigor na cidade. Até 2012, os hotéis da região não forneciam pulseiras de identificação aos hóspedes, mesmo com a grande circulação de turistas, principalmente idosos, em excursões ao Santuário Nacional.

Regulamentada por meio de decreto assinado pelo prefeito Márcio Siqueira (PSDB) no fim daquele ano, a lei passou a obrigar a rede hoteleira da cidade, que conta com mais de 170 estabelecimentos, a oferecer pulseiras aos hóspedes. Em 2011, ano anterior ao desaparecimento de Beatriz, a cidade recebeu mais de 11 milhões de visitantes. O objetivo da medida é identificar turistas perdidos e encaminhá-los para sua devida hospedagem. O descumprimento da lei implica em multa de mais de R$ 1.000 por pessoa ao hotel.

As tão amadas flores de Beatriz continuam a florescer no pátio de sua casa

“Sempre que não existe certeza, há espaço para fantasia”

Cássia Cruz, psicóloga clínica com especialização em saúde mental, acredita que o caso de Beatriz é como viver algo que sequer tem nome. É viver com dúvida, angústia, de sobreaviso, às vezes sem esperança. “A grande questão é que a esperança nunca se vai. Um bom exemplo disso são os desastres como a queda das torres gêmeas ou acidentes aéreos, onde não é possível encontrar todos os corpos, o que faz com que familiares de pessoas que estavam envolvidas nessas situações alimentem para sempre a esperança de que a pessoa esteja viva”, exemplifica.

Segundo a profissional, para algumas pessoas é necessário que algo palpável, seja um documento, um objeto ou o corpo em si, estejam presentes para que se tenha a certeza de que a pessoa se foi. No caso dos desaparecimentos, Cássia afirma que o limite entre o saudável e o patológico está no quanto o fato ocupa a vida ao longo do tempo.

Para a psicóloga, é natural que nos primeiros meses toda energia esteja voltada às buscas, informações e divulgação. Mas ao longo do tempo outros fatores da vida diária, familiar, de trabalho, voltam a um estado mais próximo daquele que existia antes do desaparecimento. “O problema começa quando esses outros fatores nunca são retomados”, pondera.

A HISTÓRIA DESAPARECIDA EM IMAGENS

Um dos sonhos de Beatriz é comemorar os 60 anos de casamento com Delmar
Os passatempos de Beatriz: o bordado, o crochê e o tricô, ainda estão espalhados pela casa
O primeiro boletim de ocorrência do desaparecimento de Beatriz ainda está guardado. Sem respostas há mais de três anos, a família não conta somente com o trabalho da Polícia

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Primeira Impressão #44

Revista semestral produzida por estudantes do curso de Jornalismo da Unisinos