(Foto: Gabriel M. Ferri/PI)

Beleza no lugar da tragédia

Uma pedra lá no alto, em meio à natureza encantadora, é o marco de uma história sombria ocorrida 70 anos atrás

Primeira Impressão
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9 min readDec 10, 2021

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por Juliana Peruchini

Finalmente chegou o tão esperado dia de ir até o Morro do Chapéu, em Sapucaia do Sul. Apesar de morar sempre na mesma cidade, nunca fui ao local. Estávamos à procura da famosa pedra que existe no morro.

Era um sábado nublado. Saí de casa com meu irmão e a minha mãe. Meu irmão Lucas sabia ir até o local onde fica o Morro do Chapéu. Entramos no carro por volta das duas e meia da tarde, e o trajeto até o morro levou em torno de 30 minutos.

Meu irmão tem quase 1,80m de altura, está sempre usando roupas pretas e discutindo política. Minha mãe é mais baixinha, com 1,55m de altura, sempre está falando de flor e cantando para o seu cachorro Baby. Eu tenho 1,60m de altura, converso sem parar e tenho pavor de bichos que voam.

No caminho, meu irmão colocou suas músicas em espanhol para tocar, enquanto eu e a minha mãe fomos comentando sobre a estrada e como lembrava a cidade de Garibaldi, principalmente a estrada onde tem a casa em que a minha nona Iracema nasceu.

Voltando para a rua apertada em que estávamos passando de carro, deparamos com a zona rural da cidade e poucas moradias. O barro vermelho molhado por conta da chuva na noite passada, com poças d’água, marcava o local. Passamos tocando barro para todo o lado.

Na chegada ao morro, estacionamos o carro e descemos. Peguei meu bloco de anotações, meu telefone e minha garrafa de água. Levei meus itens mais necessários comigo. Encontramos o nosso guia para a trilha e para chegarmos ao ponto mais alto do Morro do Chapéu: Matheus Vicente, 1,70m de altura, fala muito de política, sabe histórias infinitas sobre Sapucaia do Sul, está sempre usando camisetas de protesto pelo Brasil em que estamos vivendo, como “Fora Bolsonaro”, e ama a natureza.

Meu irmão tomou a frente na trilha, enquanto Matheus o guiava e ajudava minha mãe a escalar as pedras. A subida leva em torno de 10 minutos. Não é uma trilha tranquila para fazer, depende de ir com um tênis nos pés, levar poucos objetos nas mãos, pois o uso de corda é necessário em diversos pontos. Em alguns momentos apoiamos as mãos nas pedras.

(Fotos: Gabriel M. Ferri/PI)

Durante a subida, Matheus lembra da primeira vez que levou meu irmão ali, e eles foram em outra trilha. Matheus comentou que estavam com mais amigos e tinham levado coisas para comer: “A gente levou salada de fruta e virou uma bagunça”. Meu irmão Lucas completou: “O Matheus ainda estava usando chinelo nos pés, parecia que tinha andado no barro embaixo de chuva o dia todo”. Todos nós rimos. Coincidência: na noite anterior à nossa saída para o Morro do Chapéu estava chovendo também.

O local é cercado por árvores e pequenas flores, sem contar os urubus que, logo na chegada, foi uma das primeiras coisas que eu me deparei, e minha mãe comentou: “A Juliana morre de medo”.

Quando chegamos no topo do Morro do Chapéu, a vista era linda. O medo de altura bateu e precisamos tomar coragem para caminhar até a famosa pedra que guardava uma história que ficará marcada para sempre.

(Foto: Gabriel M. Ferri/PI)

Decidi pedir ajuda ao Matheus para fotografar próximo ao local onde estava a pedra, que tem a forma parecida à de um surfista em cima de uma prancha e tamanho difícil de estimar, devido ao fato de estar coberta pela mata ao redor. O medo de chegar para tirar foto era bem grande, eu aconselho ir ajoelhado. Matheus disse: “Chegue até o meio da pedra, pode sentar e segurar o telefone bem firme, pois o vento está bem forte”.

Tirei a foto e logo pedi ajuda para sair de lá. Meu irmão foi para a pedra que estava ao lado da trilha. Os urubus ficaram furiosos, pois era perto do buraco onde eles habitam. Três urubus furiosos e querendo atacar meu irmão.

Mas qual é a história daquela pedra? Ela está toda relatada no livro “Acidente no Morro do Chapéu”, escrito por Abrão Aspis. Em 28 de julho de 1950, o avião da Panair 099 saiu do Aeroporto do Galeão no Rio de Janeiro. O dia estava chuvoso, e o avião, que deveria pousar na Base Aérea de Gravataí (atual Base Aérea de Canoas), colidiu contra o Morro do Chapéu, entre Sapucaia do Sul e Gravataí. Naquela pedra.

O voo PP-PCG L-049 partira do Rio trazendo passageiros que pretendiam assistir aos jogos da Copa do Mundo que ocorreriam em Porto Alegre, uma das cidades-sede, no Estádio dos Eucaliptos, que então era a casa do Internacional.

Antes mesmo do avião sair do chão, o problema de um motor aparecera, o que já causou atraso de seis horas para partir. O comandante Eduardo Martins de Oliveira fez a decolagem às 15h47min, e a previsão de chegada na Base Aérea de Gravataí era por volta das 18h50min.

Com o clima ruim na Região Metropolitana de Porto Alegre, o avião tentou o primeiro pouso, mas recuou. Na segunda tentativa, não obteve sucesso e ainda perdeu o contato com a torre. Na terceira, o piloto tentou fazer o pouso na Base Aérea de Canoas e, por volta das 19h25min, enquanto sobrevoava entre Gravataí e Sapucaia do Sul, o avião bateu contra o Morro do Chapéu. O barulho foi alto, pela explosão, e a fumaça se espalhou pelo local.

Havia 44 passageiros e seis tripulantes. Todos acabaram falecendo. Pessoas da elite estavam nesse voo, aguardadas por familiares ansiosos no aeroporto. Uma tragédia.

Se a subida no local atualmente já não é a mais tranquila, imagine na época em que o acidente ocorreu, em 1950. Foi necessária a ajuda dos moradores, com bois, para retirar os corpos dos falecidos do local.

Enquanto a torre estava sem contato com o avião, os familiares aguardavam por notícias sobre o que estava acontecendo. Um dos primeiros a saber sobre o acontecimento foi o candidato a governador do Rio Grande do Sul Joaquim Pedro Salgado Filho, que por muito pouco não havia embarcado naquele voo, pois todos os assentos já estavam ocupados. Dois dias depois, por ironia do destino, Salgado Filho morreria em outro acidente aéreo, quando o bimotor em que estava também se chocou contra um morro, na região das Missões.

Dias antes da minha ida ao Morro do Chapéu, conversei com algumas pessoas sobre aquela história, e muitos não sabiam do ocorrido. Um dos poucos a lembrar era Elvio Walter, 62 anos, professor aposentado de cabelos claros e muito sorridente, nascido 12 anos depois do acontecimento: “Ouvia meus avós e meus pais comentarem sobre o acidente”.

No alto do Morro do Chapéu, Matheus aponta para o outro morro de Sapucaia, em frente: “Costumava soltar pipa ali perto durante a minha infância”. Então um grupo de ciclistas chega ao morro, todos estavam máscara, em plena pandemia. Eram umas 12 pessoas. Analisaram a paisagem do local e foram embora com as crianças.

(Foto: Gabriel M. Ferri/PI)

Questiono Matheus sobre por que ele gosta tanto de frequentar o local, e ele diz que faz ele ver o mundo com outros olhos. “Faz me sentir um ser humano, me sentir vivo. Não me vejo apenas como um robô que produz o dia inteiro. Apenas trabalhar, trabalhar, isso não é vida”, filosofa.

Admirada com o lugar, minha mãe diz para o nosso grupo: “Por que não transformamos este lugar num ponto turístico para a cidade? Poderíamos colocar um teleférico igual ao do Rio de Janeiro, depois uma tirolesa, eu acho que ficaria bem bonito”. Eu apenas respondi: “Daqui a pouco este lugar está igual à Disney”. Todos nós rimos, porém, consideraram boa a ideia da minha mãe. Entretanto, ela me fez pensar que quanto mais visitas o local poderia recebesse, mais cuidado exigiria para que se mantivesse intacto.

Hoje o local é bem limpo, as pessoas que o visitam levam o lixo embora, não deixam nenhum pertence por ali. Sempre tem que prestar atenção sobre onde vamos deixar os objetos, pois o vento é forte e os nossos itens podem voar longe. Apesar dos cuidados, a ida até o lugar vale a pena, pois a vista é impecável, podemos ver até Porto Alegre e São Leopoldo, entre outras cidades próximas.

(Foto: Gabriel M. Ferri/PI)

O Morro do Chapéu não costuma ser muito movimentado, a não ser que seja verão. “Aqui, nos dias de verão, tem muita gente. O bom é vir em dias que não estão muito quentes, como hoje, e trazer água. Tem bastante espaço para sentar-se nas pedras e fora das pedras também. Não precisa todo mundo sentar-se aglomerado”, diz nosso guia. “Usar a máscara é importante, mas nem todo mundo respeita. É bom ficar distante”, completa Matheus.

Por volta das quatro e meia da tarde, estávamos indo embora quando uma moça se aproximou para que a gente fotografasse o grupo dela. Um dos ciclistas que estava com ela decidiu se aproximar de uma pedra com pouco espaço de equilíbrio e quase caiu morro abaixo junto da sua bicicleta. Levamos um susto na hora.

No morro e nas proximidades, podemos perceber que é um lugar tranquilo e silencioso. O professor Elvio relata que o local, na sua infância, era apenas mais uma zona rural e afastada da cidade. Desde aquela época, as pessoas costumam ir lá para colher macela, na quinta e na Sexta-Feira Santa, como é tradição na região sul, e fazer piqueniques. Elvio lembra que a primeira vez que viu um sabiá de perto foi no Morro, pois não era acostumado a ver pelas áreas do centro da cidade.

(Foto: Gabriel M. Ferri/PI)

Enfim, começamos a descer o morro e apanhar algumas flores no caminho, para levar de lembrança para casa. Ainda conversávamos sobre quem deveríamos levar, depois da pandemia, para conhecer o lugar. Citei minhas amigas: a Ingrid iria amar estar ali, queria levar a Bru só para ver o quanto a gente iria reclamar para subir até o topo e a Belle estaria rindo da gente e se mantendo a musa fitness.

A descida não foi muito tranquila, pois já estava ficando bem escuro e com muito vento. Ninguém mais estava subindo e descendo pela trilha. Começamos a descer pelas pedras, pisando de lado para manter o equilíbrio. Quem estava na frente tinha a obrigação de ajudar quem estava vindo depois. Na primeira rampa tinha a corda suja de barro para se segurar. Quase caí.

Chegou a vez da minha mãe descer e estávamos em pânico, mas ela se saiu melhor do que o esperado por nós. Meu irmão decidiu colocar as garrafas de água no bolso dele. Continuamos a descer nos segurando em pedras e em galhos de árvore.

Do nada, ouvimos um barulho, como se alguém estivesse nos seguindo. Todos paramos e ficamos nos olhando. Eu gritei: “Vamos descer correndo!”. Impossível descer correndo até onde estava o carro, pois a gente iria chegar mais rápido no cemitério do que no estacionamento.

O barulho sumiu e continuamos a descer. Os urubus estavam voando baixo, e alguns conhecidos me falaram para cuidar com as cobras no local. Na hora que chegamos na parte do estacionamento notamos o quanto estávamos alto. A experiência foi incrível. É certo que voltaremos lá em breve, e levaremos mais amigos para conhecer.

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