(Foto: Leonardo Oberherr/PI)

Degraus que mudaram vidas

Palco de amor, vida e morte, a Escadaria do Estadual é um lugar histórico e pouco explorado

Primeira Impressão
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9 min readDec 12, 2021

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por Leonardo Oberherr

muitos anos, uma escadaria aos pés da primeira escola pública de Sapiranga, pacata cidade da região metropolitana de Porto Alegre, foi construída com um intuito muito simples: ligar a Rua Vieira de Castro à Rua Padre Antônio Vieira. O motivo? Facilitar o acesso ao Instituto Estadual de Educação Sapiranga. São 156 degraus que separam as vias.

Mas uma escadaria sempre guarda seus segredos. Quando imaginamos o paraíso espiritual, o céu, também acreditamos que seu acesso seja dado através de uma longa escadaria. Aos pés da Escadaria do Estadual, a visão é a mesma. Parado, antes do primeiro degrau de concreto, rodeado de mato e sujeira, com algumas casas de altos muros na vizinhança e muitos sons quase imperceptíveis de insetos e alguns outros animais que vivem por ali, olho para os lados e percebo que a metáfora da escadaria nos levar ao céu faz total sentido.

(Foto: Leonardo Oberherr/PI)

Não é fácil subir uma escadaria tão grande. É um desafio e tanto. Exige certo preparo que, para os espiritualistas, nesta metáfora, pode representar provações em vida. Cada degrau é um passo a mais ou a menos em direção do nirvana. Subo alguns degraus e repito o processo de observação. Já é possível ver mais coisas, sobretudo o que havia atrás.

Mas, como dito, a escadaria não existe somente para fins de locomoção. Ela é um palco. E é incrível o quanto este local já recebeu de atores e atrizes. Todos são alunos, aprendizes. Se não da escola, da vida. A Escadaria do Estadual é palco de diversas cenas. Vidas foram interrompidas lá, outras foram iniciadas.

(Infografia de Milena Silocchi sobre fotos de Bradesco/Gaspar Nóbrega; Prefeitura de Vitória/Divulgação; Prefeitura de Fortaleza/Kiko Silva)

Neste céu pintado e bordado pelo processo de subida, o que esperamos no topo? Talvez, a paz e a tranquilidade que um casamento nutrido por amor e carinho podem dar. Paulo César Santos e Solange Rosa devem concordar comigo.

O ápice da jornada amorosa

Quando subiu pela primeira vez, Paulo César Santos, 42 anos, professor, músico, de rosto simpático e sorriso largo, não pensava que seria naquela escadaria que aconteceria o beijo que mudou a sua vida. Há 20 anos, o então músico da Banda Marcial conhecia a estudante de Magistério com quem hoje forma o casal que deu vida à jovem Jullie, de 11 anos. PC Santos, como é conhecido agora, conta que esse beijo foi conquistado aos poucos. Primeiro, com uma amizade constituída através do Correio da Amizade. Era muito simples: uma troca de cartinhas entre alunos de turnos opostos, entregues por pessoas em comum. Talvez tenha sido a persistência que tenha conquistado um ao outro.

Ao abrirem as cartinhas — guardadas com carinho –, percebemos uma coisa: os opostos se atraíram. “Nem as rebarbas ele tirava!”, relembra, rindo, Solange, de 37 anos. “Eu até fazia desenhos, colocava em envelopinhos, nesta [segurando uma das dezenas de cartinhas na mão] eu até deixei meu beijo [e mostra a marca de batom de quase 20 anos atrás]”. Hoje em dia as coisas parecem diferentes. Sol vestiu-se com estilo, passou batom, brincos de argolas grandes, tudo para revisitar aquele mágico lugar. Paulo também não deixou por menos. Barba feita, barra da calça ajeitada e a boa e velha combinação camiseta-calça.

Foi num dia frio, 21 de junho de 2001, que aconteceu o tão sonhado primeiro beijo do casal PC e Sol. No topo daquela escadaria que, como na metáfora religiosa, guarda o caminho daquilo que é bom, da paz, e do amor. Nosso herói apaixonado recorda que a subida não foi fácil. Pelo contrário: com 30 quilos a menos, mas com muita apreensão, aquela subida foi ditada pelas batidas do acelerado coração. Ele sabia que tentaria o “algo a mais” que as histórias hollywoodianas sempre prometeram aos jovens apaixonados. “Ali foi o início do meu final feliz. E o coração? Este bate diferente até hoje, sempre que eu vejo a Sol”. Sim, do nome Solange, há o apelido carinhoso que todos chamam aquela “morena de olhos castanhos e de inteligência sem igual” — palavras do apaixonado Paulo César. A Sol foi conquistada de vez num local propício: o alto daquela mágica escadaria.

(Foto: Leonardo Oberherr/PI)

Símbolo do casamento dos dois, a Escadaria do Estadual ainda é frequentemente visitada pelo casal apaixonado.

“Sempre que possível, tiramos um tempo do nosso cotidiano para subi-la e observar nossa cidade. Do alto da escadaria relembramos a beleza da vida”, comemora Paulo César.

“Daquele momento único de 20 anos atrás, criamos uma família. Através da nossa filha, concluímos a certeza de que cada degrau da velha escadaria se assemelha ao nosso caminhar na vida. Tendo a certeza que cada passo de nossas vidas nos direciona ao conhecimento que adquirimos no nosso amado Estadual, de quando jovens, a euforia tomava conta de tudo à nossa volta. Chegando ao topo: o objetivo final. Agora adultos, começamos a perceber como é difícil chegar ao topo.”

Se para alguns a Escadaria é a representação cenográfica do amor, para outros serve como removedor de memórias ruins e construtora de novas e melhores histórias. Para a profissional de beleza Lara Bortoli, o lugar tem outro sentido. Ela conta que aos 18 anos entrou em um relacionamento amoroso deprimente — adjetivo usado por ela — e que a partir daquele ponto, parou de realizar exercícios físicos. Sim, a escadaria tem diversas funcionalidades, e subi-la, sem dúvida, é um belo exercício! Agora, aos 24 anos, após começar a morar sozinha, e alimentar sua fé, decidiu voltar com a prática das atividades físicas. Parou com o cigarro porque gostaria de ter fôlego para correr e passou a realizar treinamentos físicos constantemente. “Sentia fome de endorfina”, comenta Lara.

Por uma vida mais saudável

A Escadaria que já foi palco de vidas sendo perdidas — como em 2015, quando um ciclista tentou descer as escadas andando e acabou caindo escada abaixo — recebe de braços abertos aqueles que buscam mais saúde. É o caso da Lara, praticante de crossfit, que encontrou na escadaria do Estadual um palco perfeito para um dos exercícios mais completos para quem realiza estas atividades: a subida de escada. Embora haja simuladores, nada substitui o contato com a natureza, muito presente naquele ambiente. Mais direto do que isso: o vento no rosto, o cantar dos pássaros… são muitos os atrativos para se exercitar ali. Lara conta que não é sempre que frequenta a Escadaria, muitas vezes por receio do que pode estar à espreita. Como disse, nem só de flores o mundo — e o local — vivem. É perigoso. Mas assim como outras tantas pessoas, ela usufrui daquele espaço para seu exercício cardiovascular. A subida de escada, além de fortalecer o coração, claro, tonifica as pernas. Para subir os degraus da vida, como dizem por aí, é preciso estar preparado. Ninguém disse que seria fácil subir 156 degraus de uma vez, várias e várias vezes. Tudo começa aos poucos, e foi assim que a crossfiteira hoje consegue realizar treinos e mais treinos, que só de assistir me fazem ficar com os joelhos cansados. “Desde cedo amei muito caminhar. O início, como em tudo na vida, foi de muita caminhada. Ninguém começa correndo, não é?”, relembra.

(Fotos: Leonardo Oberherr/PI)

Antes do relacionamento frustrado, Lara frequentava a Escadaria com ainda mais frequência, inclusive à noite. Embora esteja voltando aos poucos àquela velha rotina de exercícios, a profissional de beleza conta que aproveita o momento no topo para agradecer. “Em um dos pontos mais altos da minha cidade, consigo refletir sobre a beleza da vida, e o quanto eu me supero todos os dias, sempre com muita gratidão. Dali, ouço os sons naturais, vejo o céu sempre lindo — até em dias nublados — e sinto uma energia incrível. Lá de cima, parece que Deus está do meu lado, e através da brisa, me condecora por ter mudado para melhor.”

(Infografia de Milena Silocchi sobre fotos de Flickr/Rodrigo Martinez; Eduardo Kobra e Prefeitura de Porto Alegre)

Entre o céu e o inferno

O espaço recebe pessoas o dia inteiro, em todos os turnos e para diferentes necessidades. Além dos alunos e professores que a usam para chegar ao Estadual, mesmo em dias chuvosos, ela ainda é alternativa para quem deseja apenas cortar caminho entre as vias. Corrimões centrais ajudam no equilíbrio daqueles que escorregam nos degraus. Estão ali nos locais que mais precisam, sempre para auxiliar os transeuntes. Sobre aquela metáfora de subida aos céus… eu poderia dizer que os apoios servem tal qual a mão de Deus dando suporte às provações. Até porque os degraus são curtos, cheios de limo e sujeira. Qualquer pessoa com o pé maior que 40 com certeza tem dificuldades de apoiar corretamente toda sola do tênis nos degraus.

(Foto: Leonardo Oberherr/PI)

Ao trafegar pela escadaria, percebemos outros ambientes: ao fundo, é possível notar o fórum de Sapiranga. Um prédio bonito, bem localizado, que fica aos pés da escadaria. Ali atrás muitas vidas são julgadas e condenadas. Parece que foi colocado ali para lembrar daquilo que não queremos: o que há de ruim no mundo. Neste devaneio religioso, poderia ainda dizer que o fórum é o purgatório. Quem sai de lá livre, está obstinado a ascender aos mais altos lugares que a Escadaria oportuniza chegar. O foco está no topo, pois é no último degrau que “tem uma brisa que vem lá da montanha”, como diz no hino da cidade. A subida continua, e a visão do paraíso começa a ser concebida. Nem tanto por sua beleza natural, mas o que espera ao topo da escadaria é nada menos que o local do Saber. O pleno conhecimento. Onde se aprende, se entende e se autoconhece. Falo do afamado “Estadual”. A escola, que é conhecida de todos os sapiranguenses, é um templo sagrado do conhecimento da cidade.

(Fotos: Leonardo Oberherr/PI)

Para quem sobe, à esquerda, diversas pichações e grafites fazem parte da visão. Se estão ali de forma legal, é difícil dizer. Eles dão, bem ou mal, um ar mais metropolitano àquele local que, do outro lado da vista, o direito, encontra um terreno gramado, com algumas folhagens e plantas daninhas. Tudo por ali parece resumir a vida cotidiana. As dificuldades de acessar a educação que muitos possuem. A falta de acessibilidade, o descuido com a natureza, ou ainda a presença da arte urbana.

Os últimos degraus

Não existem últimos degraus. Essa é a magia. Sempre podemos crescer, melhorar e subir ainda mais. Quando chegamos ao tão sonhado último degrau daquela escada, puxamos fôlego e imaginamos que agora vem a calmaria. Que nada! Aí olhamos para frente, logo ao atravessar a rua, e notamos que para chegar ao fim ainda falta mais um lance de escada. É que, após subir toda a escadaria, antes de acessar o portão da escola, do outro lado da rua, ainda há mais um lance de escada. Ou seja, mesmo depois de muito sofrer, e de alcançar nosso objetivo primário — subir toda Escadaria para chegar à Escola –, ainda é necessário um pequeno esforço. Sempre teremos um pequeno lance de escada em nossa frente, um desafio que exige novo empenho, mesmo depois de cansativos 156 degraus.

(Fotos: Leonardo Oberherr/PI)

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