(Foto: Laura Goulart/PI)

Entre prefácios e epílogos

Na Biblioteca Municipal Vianna Moog, há histórias de quem vive rodeado de livros e de quem não vive sem ter um a tiracolo

Primeira Impressão
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8 min readDec 11, 2021

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por Amanda Krohn

Mario Quintana já dizia: “O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado”. Embora pouco frequentada durante a pandemia, a Biblioteca Municipal Vianna Moog — que leva o nome do escritor leopoldense que integrou a Academia Brasileira de Letras — é um lugar repleto de companhias para as pessoas que nela trabalham ou visitam. A auxiliar de biblioteca Maria Margarete Vitello tem 59 anos e trabalha nela há 39. Apesar da fraca memória, cada linha de seu rosto e cada fio de seus cabelos morenos e cacheados contam alguma história sobre sua rotina cercada por prefácios e epílogos.

A auxiliar começou a trabalhar no local em 1981. “Foi meu primeiro emprego”, relembra, “Eu estava no final do Ensino Médio. Quando vi que tinha vaga de emprego aqui, fiz a entrevista e passei. Na época ainda não precisava prestar concurso público”, continua.

Para Maria, a melhor parte do expediente é o contato com o público. Ela afirma que se recorda de poucas de suas experiências como auxiliar de biblioteca, mas demonstra guardar com carinho as lembranças que tem. “Tinha uma senhora que veio aqui por cinco ou seis anos e adorava os livros do Shakespeare. Ao pedir os livros, ela se referia ao autor como Chiquispirra, em tom de brincadeira. Era muito alegre, conta. Não era a única frequentadora fiel da biblioteca. “Também tinha uma outra senhora que vinha aqui com frequência e, todos os anos, mandava uma torta para mim e minha família perto do Natal”, diz.

(Foto: Laura Goulart/PI)

Diferente das visitantes que relembra com estima, Maria tem preferência por livros espíritas e romances mais contemporâneos, além de algumas biografias. Seus olhos castanhos apreciaram as narrativas de Mônica de Castro, Zíbia Gasparetto, Francisco Cândido Xavier, Allan Kardec, Nicholas Sparks, Rosamunde Pilcher e Jojo Moyes. Suas biografias favoritas são as de Anne Frank e de Papillon.

Para a estagiária de letras Érika Batista Nunes, de 22 anos, a biblioteca não apenas fez com que ela voltasse ao mundo dos livros como também se permitisse explorar gêneros diferentes. “No meu dia a dia eu costumo ler e pesquisar sobre os livros para poder dar boas informações quando alguém está à procura de algo. Em uma dessas leituras, comecei a gostar de livros de poesia feminista, como A Princesa Salva a Si Mesma Nesse Livro e Jamais Peço Desculpas por Me Derramar”, conta.

(Infografia de Milena Silocchi sobre foto de Amanda Krohn/PI)

A estagiária de cabelos castanhos, que trabalha na Vianna Moog há cinco meses, considera que o pouco tempo de contrato ainda não lhe rendeu muitas histórias para contar. O que traz fascínio aos seus olhos castanhos são as preferências literárias de cada leitor. “Tem dois meninos e uma menina que vêm bastante, os meninos parecem ter uns 20 anos e a menina uns 17. Ela gosta de livros de terror, e eles sempre buscam pelos livros de Dostoiévski”, relata. “Também tem um senhor que sempre busca livros escritos em alemão”, acrescenta. Organizar o vasto acervo de livros da biblioteca está entre as atividades favoritas dentre as que pertencem à sua rotina diária. Para Érika, limpá-los, folheá-los para oxigenar as páginas e colocá-los em seu devido lugar traz tanta paz quanto lê-los.

Já para a estudante de ensino médio Bárbara Regina Koch, de 17 anos, nada pode proporcionar tanta paz quanto ler um bom livro. Como ela mesma brinca, Bárbara frequenta a biblioteca para “sustentar seu vício”. “É impossível viver sem ler. Aonde quer que eu vá, levo um livro comigo para aproveitar caso surja tempo livre”, expressa, com o brilho nos olhos de quem já viveu várias vidas enquanto folheava algumas páginas. Ela comenta que nem sempre consegue ter oportunidade de ler, mas os carrega mesmo assim. “É mania de leitor, né?”, comenta, com um sorriso bem-humorado. “A gente leva o livro mesmo sabendo que não vai ter tempo”, acrescenta. Mesmo assim, a estudante garante que na maioria das vezes ela consegue “dar um jeitinho”, seja no ônibus, indo para algum compromisso, em alguma fila de espera ou até mesmo na cama, antes de dormir.

(Fotos: Laura Goulart/PI)

Segundo Bárbara, sua história com a leitura começou ali mesmo, na biblioteca. “Eu era bem pequena ainda, mas tenho certeza de que foi amor à primeira vista”, afirma. A estudante conta que a mãe a levava para o projeto de contação de histórias. “Ela não tinha muito dinheiro para comprar livros pra mim, mas queria que eu desenvolvesse esse contato com a literatura, por isso me levava lá”, relembra a jovem. “Sempre que podia ela se informava a respeito dos horários em que a contação de histórias estava sendo realizada para que eu pudesse ir com uma certa frequência”, continua. Bárbara afirma que, mesmo sendo no início de sua infância, ela consegue se lembrar do quanto aqueles momentos eram mágicos para ela. A estudante os define como um “verdadeiro passaporte para o mundo da literatura”, pois cada narrativa fazia seus olhos azuis se encherem de entusiasmo. Seu conto favorito era o da Cachinhos Dourados, porque em sua infância, antes de seus cabelos escurecerem e atingirem um tom de loiro dourado com raízes quase castanhas, eram parecidos com os da protagonista. “Lembro que eu gostava de brincar de teatro e interpretar meus personagens favoritos das histórias que ouvia na biblioteca”, comenta.

Enquanto o relacionamento de Bárbara com a literatura começou na infância, o da graduanda em Letras e Literatura Regina Ossani começou antes mesmo de ela nascer. Antes que sua mãe soubesse o gênero dela, a cor escura dos cabelos e o tom alvo de sua pele — semelhante à do pai –, ela tinha uma certeza: Regina cresceria amando ler. Quando seu lar ainda era o confortável útero de sua mãe, já tinha contato com obras como O Pequeno Príncipe e Meu Pé de Laranja Lima. “Minha mãe sempre me contava que, às vezes, eu só me acalmava quando ela começava a ler um desses livros”, comenta a estudante, que hoje vive para estudar a literatura através dos séculos. “Desde pequena, minha frase favorita, apesar de simples, é ‘Tu te tornas eternamente responsável por tudo aquilo que cativas’. Por coincidência, essas palavras me cativaram”, conta Regina, enquanto relembra nostalgicamente os caminhos que a fizeram chegar aonde está. “É muito bom remexer nessas lembranças. Adoro viajar para o passado e lembrar que, antes mesmo de nascer, eu já sabia exatamente o que eu queria fazer da minha vida: ler”, comenta.

(Fotos: Laura Goulart/PI)

Durante toda a sua infância e adolescência, Regina frequentava a biblioteca não apenas para retirar obras, mas também para passear, olhar livro por livro e observar o ambiente e as pessoas ao seu redor. “Não era nem por falta de acesso a livros que eu ia lá, muitas vezes eu podia comprar se quisesse”, explica, “mas sempre gostei da sensação de estar num lugar repleto de livros que podem me levar para lugares inimagináveis. Também gosto de saber que qualquer pessoa, com dinheiro ou não, pode retirá-los quando desejar”. Para Regina, o melhor lugar para se frequentar na vida é uma biblioteca. “Queria que todos os municípios pudessem ter uma biblioteca tão rica quanto a nossa”, comenta. “E queria que as pessoas reconhecessem a preciosidade que elas têm aqui mesmo, bem perto delas. Mas nem todos sabem apreciar o valor que uma biblioteca tem”, desabafa. A universitária conta que todo o tempo que passou na biblioteca foi o que inspirou sua decisão de curso. “Se passei tanto tempo lendo livros, nada mais coerente do que ganhar a vida estudando-os”, argumenta.

Além dos aspectos próprios de alguns visitantes e as vivências que a leitura pode proporcionar, as mudanças que ocorreram na biblioteca através das décadas também são verdadeiros marca-páginas na mente de quem trabalhou lá por muitos anos. Maria Margarete relata que, antes da era tecnológica, a biblioteca recebia mais de 200 pessoas por dia, que a frequentavam tanto para pesquisas quanto para lazer. Hoje em dia — especialmente em tempos de pandemia –, menos de 30 pessoas por dia visitam o local, e a leitura é feita principalmente para lazer — levando em conta que as pesquisas geralmente são feitas on-line, na palma da mão. Um dos motivos para a baixa procura, de acordo com a auxiliar de biblioteca, é que algumas pessoas sequer sabem que o local reabriu, no dia 27 de julho.

(Fotos: Laura Goulart/PI)

Maria fala que o espaço já foi reorganizado diversas vezes conforme a demanda mudava. Até o final dos anos 90, era preciso ter diversas mesas para que duas centenas de pessoas pudessem ler e pesquisar por lá todos os dias. Naquela época, também havia a assinatura dos principais jornais e revistas, que eram disputados pelos leitores. Porém, em meio a cortes de verba, as assinaturas deixaram de existir. À medida que o público diminuía, os recursos para a biblioteca (e a quantidade de mesas) diminuíram também. Quem a visita, depara-se com, no máximo, cinco mesas grandes para quem desejar sentar e ler. A maior parte do espaço é ocupada por estantes repletas de livros de todos os tipos: didáticos, ficção, não-ficção, nacionais, internacionais, poesia, fantasia, romance, biografia… desde os best-sellers e clássicos até livros menos aclamados. Jornais e revistas não estão mais disponíveis, mas o espaço conta com um acervo diversificado de mais de 36 mil livros para escolher.

Dentre as mudanças que já ocorreram na biblioteca está o seu nome. Fundada em 1941, era Olavo Bilac, em homenagem ao jornalista, contista, cronista e poeta brasileiro. Olavo Bilac foi membro fundador da Academia Brasileira de Letras, ocupou a 15ª cadeira da instituição e é autor da letra do Hino à Bandeira.

(Fotos: Laura Goulart/PI)

Repleta de histórias como estas (entre várias outras) e cercada pela paisagem verde da praça 20 de Setembro, a Biblioteca Municipal — que integra o Centro Cultural José Pedro Boéssio — é um verdadeiro paraíso para quem não vive sem a acolhedora presença de um livro. Graças a ela, as narrativas são lidas pelos olhos curiosos de qualquer pessoa, e estão sempre à espera de novos leitores. Afinal, já diz o escritor Caio Rossan: “Livro bom é livro que a gente passa adiante. O prazer da leitura não deve ser restrito”.

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