(Foto: Laura Goulart/PI)

Filosofia em movimento

Tombos e persistência são algumas das lições do Skatepark, uma sala de aula onde se aprende um modo de encarar a vida

Primeira Impressão
Primeira Impressão
7 min readDec 11, 2021

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por Gabriel Reis

Final de tarde de domingo, cá estou eu andando de skate na pista de São Leopoldo. Em certos momentos não sabia se admirava mais o pôr-do-sol ou a chuva de manobras que acontecia naquele lugar. Em meio a essa tempestade de talentos lá estava eu, um admirador das pranchas de quatro rodas, mas ainda novato no esporte, produzindo um turbilhão de quedas, tão natural que parecia um fenômeno da natureza.

Os olhares veteranos se projetam sobre mim com um ar de julgamento tão agudo quanto as mais profundas filosofias de vida. Quedas, sensações de constrangimento e ímpeto de desistência. Ainda que o skateboarding seja um esporte e um estilo de vida com que eu me identifique, não significa que seja pra mim, talvez. Diante de ollies e flips profissionais, o ato de simplesmente ficar em cima do skate parecia coisa de especialista.

(Fotos: Gabriel Reis/PI)

Não sei se era o Sol, ou os olhares mais intensos que raios ultravioleta presentes naquele lugar, mas me senti desconectado daquele espaço público de entretenimento, o skatepark. Eis que antes da chegada da Lua, decidi ir de quatro rodas nas esbucaradas ruas da cidade em direção a minha casa com uma total sensação de despertencimento.

Manhã de sábado do final de semana seguinte, lá estava eu novamente naquela planície com barras e rampas, reparando no talento e nas risadas de crianças incomparavelmente mais talentosas que eu. Uma delas, ao fazer uma impressionante manobra em uma das barras, facilmente reconhecível pela camiseta do mangá Naruto, me chamou a atenção. De fato vi algo especial, parecia alguém capaz de realizar movimentos tão surpreendentes quanto o dos personagens do mangá que ele gosta. Me aproximei e decidi puxar assunto. Em meio à conversa, fiquei sabendo que se tratava de um bicampeão gaúcho de skate na categoria mirim, e tudo se tornou autoexplicativo. Seu nome é Davi Alves Nigro Winter.

Davi, no auge dos seus 12 aninhos, consciente da minha fascinação pelas suas habilidades, deu uma pausa nos movimentos e decidiu conversar comigo sobre sua vida e sua relação com o skate. Mal esperava eu que estava prestes a me deparar com uma das histórias que me introduziram ao conhecimento da filosofia em movimento.

(Fotos: Laura Goulart/PI)

Davi conta que ganhou da mãe seu primeiro skate aos 4 anos, sendo esse de plástico, um brinquedo. De início o pai dele encarou com temor o presente, mas ao perceber o talento e a dedicação do garoto passou a incentivá-lo no esporte, dando para ele um skate profissional dois anos depois. Desde então, Davi e seu pai, Eduardo Alves Winter, de 41 anos, mais conhecido como Duda, passaram a treinar semanalmente no skatepark dos belos pôr-do-sol e olhares intensos, até Davi se tornar campeão gaúcho na categoria mirim, em 2017, e, dois anos depois, bicampeão.

Naquela manhã de sábado, Duda, o pai, estava presente e sorridente como qualquer pai orgulhoso de seu filho, similar à euforia de Davi. A fim de compreender mais sobre o histórico familiar de ambos com skate e saciar minhas curiosidades de repórter, pedi licença para conversar com Duda enquanto o garoto tornava a brilhar nas rampas do skatepark de forma tão reluzente quanto aquele sol de manhã de primavera.

(Infografia de Milena Silocchi com dados de Revista Natividade)

Para contextualizar o processo de profissionalização de Davi, Duda iniciou nossa a conversa falando da própria trajetória com o skate. As remadas iniciais de Duda são datadas de 1989, quando andava com o skate emprestado de um vizinho. Ao longo dos anos 90 conseguiu um skate próprio, se profissionalizou no esporte e próximo à virada do milênio começou a participar de competições. Contudo, em 2002, o maior medo de qualquer skatista se transformou em uma fatalidade para Duda. Durante uma competição, se acidentou: bateu cabeça e ficou inconsciente por um tempo. A paixão deu lugar a um trauma transcendental que fez Duda se afastar do skate até tornar a andar com Davi, para encorajar o filho a aperfeiçoar suas habilidades. Duda relembra o temor que sentiu ao ver Davi ganhando seu skate de brinquedo aos 4 anos, e realmente era algo inevitável. Porém, mal sabia ele que esse presente ganho pelo filho seria a mais nova porta de entrada para a filosofia em movimento: o temor pela queda, o ímpeto de desistência e o anseio pela melhora e persistência. Como bem afirma Duda, “o skate é um estilo de vida”.

(Foto: Gabriel Reis/PI)

Ainda muito admirado pela grande história de vida que tive a honra de conhecer, me despedi de ambos e do skatepark com uma sensação de inspiração que me fez retornar àquele lugar na tarde do mesmo dia. Às 16h, os rostos presentes eram joviais, as quedas mais bruscas, as manobras mais arriscadas, e algumas conversas incabíveis de serem transportadas para cá. Ficou claro que de manhã o skatepark é das crianças, à tarde dos mais jovens, e à noite dele mesmo, podendo se contentar com a beleza de seus grafites. Naquele momento, próximo às barras, um jovem parecia ter encarnado no skate, parecia respirar o que estava fazendo. Junto de um grupo de amigos e com alguns gravando manobras e remadas, decidi chamá-lo de canto para conversar e descobri que se tratava de um amigo de Duda, Vinicius Denicol.

A conexão voraz de Vinicius com o skate me pôs a refletir que mais uma vez poderia estar me deparando com uma filosofia sendo posta em prática de corpo e alma. Ao longo da conversa, não tardou muito para eu perceber que minhas intuições não haviam me traído. Conta ele que teve relações de idas e vindas com o skate, soando como relações amorosas imaturas de tempos de escola. Quando recém adolescente, Vinicius, assim como Duda, começou a andar com o skate de um amigo, porém ao longo de sua adolescência se mudou múltiplas vezes, fazendo-o desapegar do skate múltiplas vezes também. Porém, próximo aos 18 anos, Vinicius se mudou mais uma vez, desta vez para São Leopoldo. Juntou um dinheiro e investiu em equipamentos profissionais para montar o próprio skate. Vinicius afirma que a partir daquele momento “encarnou” no esporte e gradativamente foi fazendo amizades com outros jovens que compartilhavam do mesmo vínculo com a prancha de quatro rodas. Passou a frequentar junto de seus amigos a pista de skate localizada abaixo da linha da Trensurb e também o skatepark em que estávamos naquele momento.

(Fotos: Laura Goulart/PI)

Com o passar do tempo, Vinicius e seus amigos mais próximos começaram a frequentar pistas de skate de outras cidades, como Canoas e Porto Alegre, e até a conhecer profissionais do esporte que serviram de motivação para fortalecer seu laço com o skate, que inevitavelmente se transformou em uma conexão intensa. Vinicius e sua turma chegaram a criar uma conta no Instagram, em que publicam fotos e vídeos da filosofia sobre a prancha de quatro rodas que seguem. Algumas postagens contam com quedas, mas, de forma unânime, após todas as quedas sucede a persistência.

Ao fim daquele sábado, já me sentindo cansado, me despedi de Vinicius com o meu skate sustentado pelos braços e fui para minha casa me pondo na função de refletir sobre a minha relação com o skate e o que me levou às más sensações que tivera no domingo anterior. Me recordei que desde pequeno, com o boom do skateboarding nos anos 2000, sempre sonhava com a possibilidade de aprender a andar de skate, porém, este era um sonho que nunca se concretizava. Anos depois, por volta dos 21 anos, passei a assistir competições e a frequentar pistas até comprar o meu próprio equipamento. Ainda sou um skatista amador e tive múltiplos momentos de descolamento com o skate por não sentir a evolução que gostaria — aquele último domingo foi mais um desses momentos e poderia ter sido definitivo.

(Foto: Laura Goulart/PI)

Mas o sábado seguinte foi pedagógico: Davi, Duda e Vinicius foram meus tutores, minha atenção foi minha caneta invisível e o skatepark, minha sala de aula. Percebi que a queda, os machucados, o processo demorado fazem parte de uma filosofia de vida, a filosofia em movimento. Uma filosofia que não consiste na capacidade de fazer grandes manobras e vencer campeonatos, mas sim na persistência de cair, se levantar e tentar novamente. Uma filosofia que se estende do skate, sai da sala de aula do skatepark e se torna uma forma de encarar a vida. 

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