Foto: Laura Goulart/PI

Transcendência natural

No Centro da cidade, uma filosofia de vida se converte em comida saudável

Primeira Impressão
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10 min readDec 10, 2021

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Por Marília Port

Antes de começar a sua leitura, que tal preparar um chá delicioso para acompanhar a reportagem? Confira algumas infusões deliciosas e saudáveis!

(Infografia de Milena Silocchi com dados de Tua Saúde e UOL)

U m pé para dentro, depois o outro. O tempo congela enquanto durar a visita. Algumas pessoas passam, fazem compras e vão embora. Outras apreciam a própria companhia, ao degustarem com calma a refeição no prato a sua frente. As prateleiras enchem os olhos de quem circula e desafiam a seguir adiante, como se soubessem que é quase impossível passar sem explorar a variedade de produtos dispostos ao longo delas. São vinhos coloniais, molhos de tomate orgânico, frutas, grãos de todos os tipos, opções sem glúten e sem lactose, sucos naturais, biscoitos e tantas outras categorias alimentícias.

Tudo começou com um restaurante chamado Vis Vitalis, que entre 1990 e 1996 manteve suas portas abertas no início da Rua Independência, em São Leopoldo. Um dos sócios, no fim, levou consigo o nome do estabelecimento, quando a parceria acabou. Assim, naquele mesmo endereço, em 1999 surgiu a Natur Haus, administrada pelo sócio da Vis Vitalis que ficou, Peter Fourier, 74 anos, e sua parceira e sócia, Jaqueline Escopel da Silva, 55. Juntos, puseram em prática o plano de um restaurante natural vegetariano, que também oferece café da tarde e comércio de produtos naturais, em varejo e atacado.

Peter é alemão. Aos quatro anos de idade, veio ao Brasil com a família, que partia da terra natal devido à guerra. Depois de concluir o ensino médio, Peter retornou ao país de origem para cursar o ensino superior. É engenheiro mecânico formado. Depois disso, deixou a Alemanha. Segue em solo brasileiro até hoje. Foi aos 30 anos que descobriu o caminho da alimentação natural vegetariana. Frequentava a Brahma Kumaris, uma entidade indiana que agora já existe em mais de 100 países, dedicada à promoção de valores espirituais e renovação do mundo.

Em uma terapia, Peter conheceu Jaque, desde sempre entusiasta de uma vida alternativa. Os dois parecem se completar. De óculos e cabelos de um branco brilhante, Peter tem uma expressão simpática, ao cumprimentar os clientes, entre as idas e vindas da cozinha. Ele circula o tempo todo resolvendo as demandas que surgem. A exceção acontece por volta das 15h, quando se senta à frente de Jaque para almoçar, logo antes do buffet ser recolhido.

(Foto: Laura Goulart/PI)

Com 18 anos, Jaque foi morar em uma comunidade na cidade de Pirenópolis (Goiás). De volta ao Rio Grande do Sul, residiu na cooperativa Sítio Pé na Terra, em Lomba Grande, cujo propósito principal era a agricultura orgânica. Também estudou macrobiótica, medicina ayurveda e passou três meses meditando na Índia. Por toda a sua história, a filosofia zen guia a jornada de Jaque, tão energizada que atribui uma espécie de aura dourada à sua volta, enquanto fala com tranquilidade sobre a vida, sempre olhando nos olhos. Os cabelos lisos escuros de pontas claras, combinados à rotina intensa, expressam um quê de vitalidade. A franja moderna costuma ser mais visível que o resto dos fios, que são mantidos presos, durante o manejo da comida.

Espiritualizados, Peter e Jaque são simpatizantes do budismo. Meditam e fazem yoga sempre que possível, mas o ritmo agitado da Natur Haus, tão bem-sucedida, mantém os dois ocupados durante quase o tempo inteiro. Fica difícil seguir à risca todas as práticas tradicionais. No entanto, a filosofia de vida que professaram reflete nos detalhes, desde as bandeirinhas budistas penduradas na Natur Haus até a estátua dourada do próprio Buda, que sorri pacífica a todos que se dirigem ao buffet, repousando ao lado da bancada dos chás.

(Foto: Laura Goulart/PI)

O nome Natur Haus pode ser livremente traduzido do alemão como “casa da natureza”, termo que não poderia fazer jus de maneira mais literal ao espaço. Com dois jardins abertos ao público, o recanto dos fundos é o mais verde, cercado por plantas cheias de vida que formam um verdadeiro refúgio no meio da cidade. Dizem que aspirando fundo é possível sentir os pulmões purificados. A filosofia humanista e um tanto alternativa da Natur Haus parece refletir a personalidade da fiel clientela, ao observar o entra e sai dos amantes de alimentos orgânicos que carregam consigo sacolas ecológicas.

“Eu gosto de tudo, gosto do cuidado com o fazer do alimento, do atendimento, das pessoas, dos produtos, da localização… O ambiente é super agradável e espaçoso, eu me sinto em casa”, elogia Vera Schuster, 62, que quatro décadas atrás teve os primeiros contatos com a alimentação natural, integral e sem veneno, conforme defendida por ela. Uma das clientes mais antigas da casa, Vera pontua que a sua descoberta de restaurantes com essa proposta foi um caminho natural, e tem a Natur Haus como referência nesse segmento.

Adepta ocasional do consumo de carne, Vera aproveita “os mais diversos nutrientes dos mais diversos alimentos”. Óculos grandes se posicionam sobre um nariz pequenino em um rosto gracioso. Cabelos cor de pôr-do-sol são permeados por alguns fios prateados. A fisionamia delicada e a baixa estatura de Vera guardam uma alma cheia de personalidade. É uma figura de luz e sabedoria. Professora aposentada, ela conversa pelos cotovelos. É cheia de assuntos e histórias. Reunidas, Vera e Jaque paralisam o tempo. Percorrem horas em lembranças, opiniões e amigos em comum.

Durante os seis primeiros anos de existência, a Natur Haus permaneceu na rua principal da cidade, com os moradores do centro compondo grande parte da clientela. Decorrido esse período, o casal precisou enfrentar uma despedida um tanto traumática do espaço que alugava. O proprietário da casa queria o imóvel de volta e, apesar de garantir que teriam tempo para realocar o restaurante, surpreendeu-os judicialmente. Com a ajuda do advogado, reverteram a situação traumática: o juiz concedeu um ano para que realizassem a mudança, em vez dos dois meses que o proprietário propôs.

(Foto: Laura Goulart/PI)

Foi assim que a Natur Haus chegou ao local em que permaneceu por mais tempo até hoje. Na Avenida João Corrêa, próximo ao Corpo de Bombeiros, a nova acomodação era uma casa antiga, longe de muitos dos clientes habituais. O espaço também era alugado, desta vez por um homem que tinha planos de desmanchá-lo, mas no tempo que fosse necessário, até o restaurante se restabelecer em um novo endereço ideal.

Finalmente, em 2016, a Natur Haus encontrou seu lar atual, de volta ao Centro, em uma casa ampla e um tanto retrô na Rua Marquês do Herval. Foram quatro longos anos de busca, durante os quais Peter e Jaque tiveram a companhia de uma amiga que ajudava a sentirem a energia de cada alternativa de locação que visitavam. Essa, na verdade, sempre foi uma questão importante: a boa atmosfera do lugar. Não é à toa que deu tão certo: a porta de madeira e vidro que separa o mundo exterior da parte interna da casa parece um portal, por onde as pessoas passam e deixam seus problemas do lado de fora.

(Fotos: Laura Goulart/PI)

Dividido em dois andares, o novo ambiente costumava ser um armarinho. Quando a dona faleceu, o imóvel passou a ser administrado pelo filho e pela nora, que decidiram alugar. Bem localizado, o endereço fica em uma área movimentada, mas protegida do barulho e afastada das muitas lojas da rua principal. O lugar é ao alcance perfeito de muitos dos antigos clientes, que retornaram junto com a volta do restaurante para o Centro.

Com a mudança, também, os sócios resolveram abandonar o peixe. O vegetarianismo foi uma opção relativamente recente na história da Natur Haus. Antes do retorno para o Centro, o peixe oferecido pela casa era um dos pratos queridos pelos clientes. Muito bem temperada, a única opção carnívora do buffet foi uma escolha feita para cultivar o público, pelo menos até o restaurante se estabelecer. No menu agora consolidado entre os fregueses diários, as opções são todas vegetarianas.

O que chateou alguns clientes animou tantos outros, conforme mais e mais simpatizantes de dietas plant based passaram a compor o movimento diário. É o caso de José Alberto Berti, o Zeca, 58, que já é conhecido na casa e possui uma alimentação livre de carne. “Desde 1998”, conta ele, orgulhoso. Zeca é feirante na Feira Livre Leopoldense, nas quartas-feiras. Além da qualidade da comida, ele destaca os preços acessíveis da Natur Haus, que são unanimidade no agrado aos clientes. Assíduo, Zeca é um dos fregueses que acompanham o restaurante desde a época do Vis Vitalis.

(Foto: Laura Goulart/PI)

A Natur Haus existe através do trabalho de pessoas que se preocupam com a causa animal e ecológica. Talvez um dia o restaurante ainda evolua ao veganismo. Por enquanto, derivados de leite e ovos caipiras ainda são utilizados na produção dos alimentos. Para amenizar os danos ao meio ambiente e aos bichinhos, os produtos são comprados de pequenas fazendas locais.

Em ambas as refeições oferecidas, o chá é livre. Gratuito, está sempre quente e saboroso para acompanhar o alimento. As bebidas quentes são as melhores alternativas para o consumo de líquidos junto com a comida, já que ajudam na digestão, além de todas as propriedades medicinais de cada planta utilizada nos preparos. Aliás, o comércio de ervas de chá e temperos faz bastante sucesso na Natur Haus. O cuidado com a saúde está em tudo. “As pessoas acham que vamos curá-las”, brinca Jaque, bem-humorada, que já respondeu um sem-número de perguntas sobre produtos com intenções curativas na loja, para os mais diversos sintomas.

Na equipe, além do casal de sócios, existem mais oito pessoas comprometidas diariamente com os vários processos em torno dos produtos naturais. As dependências do ambiente acomodam a loja, o restaurante, o escritório, uma cozinha quente e uma fria, dois jardins, estoque e atacado. É a própria Jaque quem cozinha, acompanhada por uma saladeira, uma confeiteira e uma auxiliar de cozinha, além das pessoas envolvidas com a loja e demais funções. No total, são 10 pessoas fazendo a mágica da vida real acontecer.

Alguns minutos no jardim ofertam o efeito purificante do oásis no deserto da cidade. As árvores que contornam o espaço abrigam ninhos de pássaros mansos, que se arriscam a caminhar no entorno das mesas. Recortes de céu azul celeste se exibem entre as copas da vegetação, cuja sombra alivia o calor escaldante do sol no verão.

(Foto: Laura Goulart/PI)

Durante as tardes, senhoras com rostos gentis emoldurados por cabelos grisalhos marcam presença no ambiente. À flor dos seus 70 anos, reúnem-se com as amigas, conversam e bebem chá por longas horas. Comemoram aniversários ou simples tardes de semana. Os olhos brilhantes anunciam o prazer da partilha daquele instante com quem junto sustenta muito tempo de vida e, especialmente, de história. Entre tortas e salgados, a casa também oferece açaí na tigela, de um púrpura vivo com textura cremosa, coberto com granola, mel e outros acompanhamentos saudáveis.

As pessoas e o espaço, juntos, parecem tão sintonizados que se transformam em uma coisa só. A iluminação combina paredes claras com a luz natural que entra pelas janelas de vidro, tornando aconchegantes mesmo os dias frios. Nas paredes, a decoração é simples e colorida. Quadros e mandalas parecem potencializar a paz de cada canto enfeitado. O som das flautas de bambu da música ambiente é relaxante, como se embalasse um momento de meditação. Cristais reforçam a atmosfera energética do espaço, como um lembrete constante de que, naquele momento, tudo que importa é estar lá, de corpo e alma, contemplando a leveza de uma vida mais natural.

Mesinhas quadradas espalhadas por toda a extensão do espaço permeiam o caminho até o buffet, perto dos fundos. Durante o almoço, um cardápio variado, com ingredientes integrais e, sempre que possível, orgânicos. Mais tarde, as panelas cedem lugar para os mais diversos tipos de tortas, doces e salgadas, em versões mini e grande, além de empadinhas, pães de queijo, pastéis integrais, panquecas e tantas outras opções. O perfume do restaurante pode ser sentido por quem passa na calçada.

Nos primeiros tempos de volta ao Centro, não foram raros os relatos de visitantes que diziam “Entrei porque senti o cheiro de um restaurante que eu frequentava lá na João Corrêa”. É uma lástima que o aroma dos sabores no lugar não possa transpor este texto. A hora de ir embora chega. O fim da visita lembra que a vida segue lá fora, e é preciso retomá-la. Cada compra ou alimento consumido revela que uma parte da experiência vai junto, com a promessa de fazer o público retornar. Um pé para fora, depois o outro. 

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