Comportamento

Alimentar é ação

Como os coletivos veganos têm criado espaços de resistência que transformam estilos de vida em Porto Alegre

Mariana Alves
Olhares Plurais

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Decoração do restaurante Aurora acompanha a proposta libertária do coletivo. Foto: Facebook/Reprodução

“Um dia o Marcelo começou a chorar”, ela respondeu quando perguntei sobre a origem do Bonobo, um dos pioneiros da recente onda de coletivos veganos em Porto Alegre. Aberto em 2011, o coletivo tem como objetivo difundir uma alimentação que não dependa da exploração de animais, de seres humanos e do ambiente. Val Kuhn cofundou o espaço com o companheiro Marcelo Kalil, e explica que a proposta do coletivo é não apenas oferecer comida vegana, mas um espaço de difusão de ideais libertários.

O veganismo é um movimento sociocultural que visa promover os direitos de todos os animais. Assim, descarta da rotina todas as práticas baseadas na exploração animal, seja na alimentação, vestuário e qualquer produto com material de origem ou testado em animais. Apesar da dieta ser praticada há mais de dois séculos, o termo “vegan” só foi cunhado nos anos 40 pelo fundador da The Vegan Society, Donald Watson, procurando definir vegetarianos que não consumiam ovos e derivados de leite.

Com o tempo, o movimento foi adquirindo um cunho político cada vez maior, sendo associado a ideais libertários e anticapitalistas, e incentivando o surgimento de espaços que oferecem a culinária vegana aliada a práticas que promovem reflexões sobre o individualismo e o consumismo, tão presentes na sociedade atual. Em Porto Alegre, esse tipo de iniciativa tem crescido expressivamente na última década, e os coletivos com essa proposta ganham destaque em meio a outros restaurantes convencionais.

Plantando a semente

“Um dia o Marcelo começou a chorar, e aí eu comecei a questionar, e ele disse que tava se sentindo inútil na vida”, conta Val. Segundo ela, ambos já tinham a ideia de abrir um lugar vegano que, de alguma forma, se diferenciasse de outros restaurantes, e assim surgiu o Bonobo. “A gente ainda não tinha uma ideia muito certa do que ia ser, a gente sabia que ia ser uma coisa que, além de vegano, seria vegano mesmo. Não só um lugar que oferecesse uma alimentação vegetariana estrita, mas toda a questão do veganismo, de tentar passar esses ideais no ambiente.” Gradativamente, novos integrantes começaram a se juntar ao coletivo, o que levou cada vez mais a um grande compartilhamento de ideias únicas que influenciaram outros projetos com propósitos muito similares pela cidade.

Tendo trabalhado em outros restaurantes vegetarianos, veganos e no Bonobo durante cinco anos, em 2017 o chef Alan Chaves fundou, com outras seis pessoas, o coletivo Germina. Também com a proposta de promover a libertação animal e humana, o Germina se constituiu a partir de processos coletivos e se consolidou como um dos espaços veganos de maior sucesso na cidade. Após um ano e meio de funcionamento, o Germina fechou as portas em junho 2018, mas não demorou até o coletivo tornar-se Aurora, no mês seguinte, ressurgindo apenas sob a organização de Alan e Bianca Rabello; contudo, o espaço segue com a mesma proposta e como prova da resistência dos coletivos.

Também em 2017, o AlimentArte surgiu como um centro cultural cujo espaço era oferecido para a realização de diversos projetos criativos, como aulas de circo, pintura, contorcionismo, música e outras diferentes formas de arte. Inicialmente, o restaurante era apenas uma parte do coletivo, mas o sucesso da proposta de alimentação sustentável o transformou na atração principal do espaço.

co.le.ti.vo, masculino

  1. que abrange várias coisas ou pessoas
  2. que pertence a todos
Quadro na parede do Bonobo sugere ações de envolvimento com a comunidade. Foto: Facebook/Reprodução

A principal diferença de restaurantes convencionais e o que caracteriza a denominação de coletivos é uma estrutura de organização horizontal. Não existem chefes, ninguém está acima de ninguém e todos devem sentir-se igualmente responsáveis no mesmo nível pelos espaços. Todos tem o direito de cozinhar, ou atender no salão, conforme a preferência. As tarefas restantes e mais pesadas, como limpeza e manutenção são divididas entre todos, assim como a remuneração. “É essa parte que diferencia de uma empresa comum, é importante ver esse lado, a pessoa. É isso, nós somos pessoas, a gente traz essa característica”, diz Val, do Bonobo.

O mesmo acontece no AlimentArte. Além da ideia de coletividade, a proatividade também esteve sempre muito presente. Rodrigo Vaz, gastrólogo e estudante de Relações Públicas, cozinhou no coletivo durante seis meses e explica que foi uma experiência muito diferente da de outros restaurantes em que havia trabalhado. “Logo percebi que ali era diferente, que eu era muito aceito e necessário para o espaço. Toda a proposta do lugar me deixava bem a vontade pra ajudar, compartilhar a ideia, divulgar e realmente assumir o restaurante como um filho e não só um ganha pão”, ele diz.

Todo esse processo de envolvimento dos integrantes com o coletivo também tem uma relação direta com as concepções de cada um e não ocorre a partir de contratos, mas de uma aproximação natural. Gustavo Lebra, que trabalha no Bonobo há 3 anos, começou vendendo doces em parceria com o coletivo e, com o tempo, foi se envolvendo e começando a cozinhar. “No Bonobo é assim, tu vai chegando aos poucos, porque a gente tem esse cuidado de que as pessoas que começam a trabalhar aqui conosco tenham mais ou menos os mesmos ideais”, explica.

A ideia de coletivo também inclui as pessoas que frequentam os espaços, que não são tratadas como clientes, porque cada relacionamento entre as pessoas e os membros do coletivo é único. No Aurora, por exemplo, a chamada “rede de apoio mútuo” é tida como parte fundamental para o desenvolvimento do coletivo, posicionando essas pessoas como aqueles que também fazem parte da construção e manutenção do espaço.

O dinheiro tem significado

Entre as principais características que trouxeram notoriedade aos coletivos, as formas de pagamento integram a proposta de difusão de ideais políticos dos coletivos: a não utilização de cartões de débito ou crédito, uma vez que estes fomentam a arrecadação de grandes corporações em um sistema capitalista, e a prática do “sem preço”, que consiste em não atribuir um valor às refeições oferecidas, deixando a critério dos clientes pagarem o que acham justo pela comida.

No Bonobo, a prática começou com a venda de um bolo sem preço que evoluiu para refeições completas, e foi algo muito bem recebido no início. Isadora Brandelli, que cozinha no coletivo desde 2011, conta que muitas pessoas se sentiam contrariadas e não achavam justo ter que decidir o valor por conta própria. “Mas é isso, é exatamente pra pensar. Porque não é só o que foi gasto de ingrediente, tem a mão de obra, o tempo, a criação. E às vezes a pessoa está tão longe de fazer uma comida que ela nem sabe o processo, e talvez pegando esse momento ela tenha que parar e refletir. Se pelo menos duas pessoas refletirem já é algo que se fez.”

Já no Germina, o sem preço esteve presente desde o início e permanece no recente Aurora. A cada um real lucrado, cinco centavos vão para um fundo de cuidados e emergências, 25 para a estrutura (aluguel, luz, água, impostos e manutenção), 30 para a compra dos insumos e 40 para a remuneração mensal dos integrantes. A proposta do sem preço é, então, estimular uma reflexão sobre serviço, espaços e projetos, além de estabelecer relações de confiança e apoio entre os coletivos e quem frequenta, proporcionando acessibilidade.

Laura Ferrari é professora de história e apesar de consumir carne e derivados de animais, frequenta o Aurora quatro vezes por semana. Para ela, o espaço tem um papel fundamental de desmistificar a alimentação vegana e saudável e proporciona não só comida boa, mas uma experiência completa. “Eu acho que a proposta do Aurora tem uma ideia de tu se sentir em casa e de experienciar uma coisa nova, que é justamente essa coisa do sem preço. No mundo em que a gente vive, poder contar com um espaço que oferece comida de qualidade, boa, nessa mentalidade, é uma coisa muito bonita e muito interessante.”

Outro tipo de alimento

Além de permitir uma abertura muito grande para a liberdade de expressão e o exercício da criatividade, os coletivos permitem trocas de ideias, experiências e aprendizados que não têm relação apenas com a culinária, mas com um estilo de vida como um todo. Para Rodrigo, essas iniciativas carregam um poder de transformação numa sociedade que, atualmente, é tão centrada no poder. “Ter um local onde o amor e o bem-estar estão acima de tudo, onde todos são iguais e necessários para manter o espaço faz com que a gente mude esse pensamento e comece a valorizar outras formas de ver o mundo”, explica.

Para quem frequenta os espaços, acima do propósito de oferecer comida saudável e calcada na liberdade animal, os coletivos provam carregar uma importância ideológica, capaz de mudar não só os hábitos alimentares das pessoas, mas também a maneira como elas se relacionam com diversos outros aspectos nas suas rotinas.

Isadora Quintana, estudante de Biologia, é vegana e frequenta os espaços desde 2015, quando tornou-se vegetariana, vê nos coletivos uma espécie de casa. “Foram verdadeiros espaços de aprendizado e acolhimento. Participei de oficinas, cinedebates, rodas de conversa. Dessa forma, tive muito acesso à informação e a diferentes opiniões, podendo me encontrar melhor no movimento vegano”, conta. Ela acredita que a importância desses espaços esteja no fato de fugir à estrutura capitalista normativa em que vivemos, desafiando as pessoas com a proposta da autonomia e de reflexões. “Não só no quesito alimentação e outros hábitos veganos, os coletivos também foram muito importantes para eu enxergar pessoas novas, sair da bolha, entender outros corpos, conhecer ideologias e me identificar com pessoas que pensavam como eu”, diz.

Val, do Bonobo, afirma que devido à relação da proposta do coletivo com aspectos políticos, muitas pessoas saem do espaço contrariadas ou encantadas, o que torna o coletivo, acima de tudo, um local de descoberta, seja positiva ou negativa. “Eu acho que pra quem já tem uma sementinha, alguma coisa em movimento dentro de si e encontra lugares assim deve ser um respiro, um local de segurança, de embasamento e legitimação do que sente e do que pensa”, ela diz. Dessa forma, muito além da comida, os coletivos também são responsáveis por oferecer esse outro tipo de alimento que sacia uma fome de mudança.

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Mariana Alves
Olhares Plurais

estudante de jornalismo na UFRGS | fotojornalista no Jornal do Comércio