Educação

Educar para além das necessidades

Professores dão aulas para disciplinas às quais não possuem formação

Eduarda Stefenon
Olhares Plurais

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Foto: Eduarda Stefenon

Naquela terça-feira de outubro, o professor José Augusto da Silva Venceslau entrou na sala de aula do nono ano da Escola Estadual Érico Veríssimo com as atividades para a semana da Consciência Negra preparadas. O trabalho era simples: reproduzir uma máscara africana com toda a criatividade — e lápis de cor — disponível. O educador, que possui formação em Educação Física Escolar, há um ano tem dado aulas de Artes para alunos do sétimo, oitavo e nono anos.

Na primeira turma da manhã, os alunos são poucos, porém agitados. Todos sentam próximos e se comunicam uns com os outros o tempo todo. Augusto questiona aos estudantes qual é o Dia da Consciência Negra, ao passo em que eles respondem após algum titubeio: 20 de novembro!

Ao longo da manhã, nas turmas seguintes, a situação se repete, e o professor vai tentando administrar as atividades com a energia e materiais que ele e os alunos dispõem. Realidade perpetuada em muitas escolas que, devido à falta de professores, se veem obrigadas a fazer as substituições dos profissionais com o que têm à mão para não deixar os alunos sem atividades.

Até março de 2018, dentre apenas 16 das 30 Coordenadorias Regionais de Educação (CRE), o déficit de profissionais estava estimado em 343. O número pode ser ainda maior se contabilizado com o das escolas municipais. Cansadas com a burocracia e a demora na reposição dos profissionais, as instituições vão fazendo o que podem. Augusto conta que leciona no colégio há três anos e há um ano faz a substituição das aulas de Artes, desde que a professora anterior deixou o cargo. A escola que propôs a substituição, visto que a carga horária do professor ainda permitia novas turmas.

O docente, que consulta os planos de ensino da professora anterior e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para elaborar suas aulas, parece manejar bem o conteúdo e a relação com os alunos. Em algumas aulas utiliza o livro didático, pede aos alunos para lerem um capítulo e desenvolverem uma atividade, em outras, para fazer trabalhos manuais — aos quais os alunos parecem possuir um gosto maior. E, assim, vai progredindo com o conhecimento, buscando aliar o pulso firme de professor com uma relação de amizade com os alunos que, de idades muito diversas — mesmo em uma única turma — parecem interagir bem tanto com o professor, quanto com sua didática.

Aposentadoria pode ser uma das causas do déficit

Segundo dados do Censo Escolar da Secretaria de Educação (Seduc), até 8 de dezembro de 2017 cerca de 2.765 professores haviam se aposentado no ano de 2017. A Seduc afirma que o número não preocupa e que não há déficit de professores, visto que os casos oscilam entre contratos e professores inativos. Além disso, dados também do Censo Escolar mostram que, apesar do número de professores ativos na rede estadual ter diminuído entre os anos de 2015 e 2017, nas redes municipais e federais os números crescem relativamente.

Professores ativos na rede estadual

2015: 48.758

2016: 46.303

2017: 43.712

Professores ativos na rede municipal

2015: 57.591

2016: 58.715

2017: 59.194

Professores ativos na rede federal

2015: 2.469

2016: 2.475

2017: 2.735

O que pode explicar, então, a constante falta de profissionais do Ensino Básico nas salas de aula? A tendência é que, de modo geral, o número de servidores diminua, com os docentes não será diferente. Dados da Previdência Pública do Rio Grande do Sul comprovam essa ideia. Se em 2015 o percentual de servidores públicos ativos no Rio Grande do Sul era de 50,5%, em 2018 são 44,6%.

A diminuição do número de professores que se formam também preocupa e, justamente em áreas mais específicas, como nas exatas. Um profissional dessa área tem certa facilidade em procurar emprego fora da escola, fora do sistema educacional, contribuindo para que o déficit permaneça. Se o profissional não encontra valorização necessária nas escolas, para lecionar sua matéria, certamente o mercado irá o absorver fazendo com que a escola fique com essa lacuna. É comum também que pessoas com formação específica em alguma área ministrem as aulas, ainda que não possuam a formação pedagógica necessária, apenas detendo o conhecimento pragmático do assunto. Esse cenário pode, da mesma forma, lesar a aprendizagem do aluno que não receberá o auxílio adequado do professor.

O prejuízo de quem — não — aprende

“Ensino nenhum é inócuo: ou ele é bom ou ele é ruim.”

Para Fernando Becker, professor titular de Psicologia da Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), quanto menor a idade da criança, mais ela sentirá a mudança de uma referência tão importante quanto a do professor, porque para a criança, que tem como padrão a mãe e o pai, quando o professor entra no seu cenário ele vai exercer uma desses papéis, vai ser uma extensão desse papel. A ruptura com essa figura poderá, dessa forma, gerar sérios prejuízos ao desenvolvimento cognitivo e educacional da criança. Portanto, quanto mais interrupções houver no processo educacional, desde os anos mais básicos do ensino, maiores serão as chances da criança sofrer perdas na aprendizagem.

Substituição arbitrária é só a ponta do iceberg

“A escola tradicional como está não tem futuro, tem que ser exterminada”

A substituição sem regramentos é só um reflexo do sistema deficitário em todos os níveis. Se os professores que possuem formação para ministrar as aulas que estão designados já encontram dificuldades, quem possui formação em outra área ou área similar também lida com barreiras diárias. O professor, que por diversas vezes, carrega sozinho a responsabilidade de formar indivíduos, necessita da intervenção do Estado em certas questões, como na infraestrutura.

Fernando Becker também ressalta que tudo que envolve a relação professor-aluno influencia na aprendizagem. A carga horária excessiva, por exemplo. “O professor pode ter dormido mal à noite que passou, então óbvio que ele vai chegar com menos bom humor e mais dificuldade de se concentrar. Mas isso é uma coisa que eventualmente acontece. As coisas que acontecem sempre, essas é que têm um impacto negativo e essas que precisam ser administradas. Quando o professor possui excessiva carga horária, isso vai detonar com ele durante todo o semestre ou ano, então isso tem que ser evitado.”

No entanto, para que as coisas melhorem, é necessário uma série de reestruturações drásticas, avalia Becker. Valorização do professor — e não apenas de salário -, uma boa gestão escolar, estrutura oferecida pelo Estado com espaços e laboratório para uma pedagogia ativa e, acima de tudo, uma maior elasticidade para poder falar o que não está funcionando.

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Eduarda Stefenon
Olhares Plurais

Vou definitivamente ao encontro de um mundo que existe dentro de mim, eu escrevo para me livrar da carga difícil de uma pessoa ser ela mesma.