Imigração

O prédio dos imigrantes

O trajeto de uma família de venezuelanos desde Roraima até o alojamento Farroupilha, em Canoas

Júlia Ozorio
Olhares Plurais

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Canoas recebeu 425 venezuelanos no mês de setembro / Foto: Júlia Ozorio

Sozinhos, carregavam as poucas roupas que cabiam em suas malas improvisadas. Chegaram sem dinheiro, sem amigos e muitos sem documentos. Não sabiam falar português e entendiam apenas o que o portunhol permitia. Deixaram para trás suas vidas na procura de um futuro melhor. Abandonados pelo seu próprio país, decidiram migrar para outro que pudesse satisfazer suas necessidades.

Só em 2018, mais de 10 mil imigrantes venezuelanos cruzaram as fronteiras e chegaram ao Brasil. A maioria deles caminhou da Venezuela até Roraima, fronteira entre os dois países. Lá, chegaram e se instalaram nas ruas. Alguns conseguiram auxílio da Organização das Nações Unidas (ONU) e abrigo. Outros tiveram que sobreviver por si. Sem ajuda, sem respeito e enfrentando o preconceito na suposta terra da diversidade.

Roraima enfrenta uma crise decorrente do fluxo constante de imigrantes. Atualmente, cerca de 10% de sua população é venezuelana. Assim, as oportunidades de emprego e educação se tornaram escassas, e o estado passa por uma sobrecarga populacional. Por essa razão, a ONU, em conjunto com a Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e o Exército Brasileiro, instalou abrigos locais e criou um plano de ação para a interiorização dos venezuelanos no país. Esse processo consiste na transferência dos venezuelanos que estão nos abrigos em Roraima para outras partes do país, além da emissão da Carteira de Registro Nacional Migratório (CRNM), o fornecimento de um endereço brasileiro e do visto temporário de trabalho. Segundo a Lei de Migração, a CRNM é um documento obrigatório para todo imigrante que deseja residir no país, e, para conseguir a carteira, é necessário registrar um endereço brasileiro na Polícia Federal. No caso dos participantes do programa da ONU, o endereço registrado foi do seu abrigo.

A partir desse processo, cerca de 625 venezuelanos chegaram à Região Metropolitana de Porto Alegre. Oitenta e sete deles transformaram o alojamento Farroupilha, localizado em Canoas, no “prédio dos imigrantes”, como é conhecido pela comunidade local. O alojamento foi alugado pela ACNUR por seis meses para abrigar cerca de 30 famílias. Cada uma dessas recebeu um apartamento, o auxílio financeiro mensal de 400 reais por pessoa e, durante os primeiros dias, alimentos fornecidos pelo Exército Brasileiro. Além disso, a comunidade local doou roupas e utensílios de cozinha.

Cada andar elegeu um homem e uma mulher como líderes, encarregados de relatar problemas e necessidades para o representante da prefeitura responsável pelo alojamento / Foto: Júlia Ozorio

As vidas

Entre os moradores do prédio está o casal Skarlet Alvarez e Nelson Chivico. Os dois venderam seus celulares para custear a viagem e saíram de seu país de origem com grandes esperanças e sonhos: desejavam vir para o Brasil trabalhar e mandar dinheiro para as suas famílias na Venezuela. Skarlet tem 24 anos, é formada em administração e tem mestrado na área. Ela deixou seus pais, sua irmã mais nova e seu cachorro. Nelson, seu marido, é um ano mais novo e cursou agroalimentação. Também deixou familiares e amigos. “Não gosto de falar por Skype nem por telefone com eles, porque começo a chorar”, ele diz.

O casal embarcou em sua viagem após o incentivo de um amigo que também deixou a Venezuela e veio para o Brasil. Atualmente, ele mora em Boa Vista e está empregado. Ele disse para os dois que o Brasil era um lugar tranquilo e fácil de conseguir emprego. O casal seria recebido e hospedado por esse amigo. Mas, ao pisar em solo brasileiro, não foi assim. “O nosso contato não pôde nos ajudar. Ficamos 18 dias dormindo na rua e também em uma igreja, onde nos alimentaram”, conta Skarlet.

Sem ajuda do amigo, o dinheiro permitiu que dormissem em um quarto de hotel por uma noite. Eles gastaram 80 reais com a hospedagem. Depois disso, acabaram nas ruas. Sem rumo, caminharam por Boa Vista cerca de 16 dias até encontrar um abrigo da ONU. “Foi humilhante”, diz Skarlet. “Eu estava no meu período menstrual e também estava na rua. Pedia para ele [Nelson] me avisar se tinha alguém vindo [na rua] pra me esconder”. Se chovia, eles buscavam proteção debaixo das paradas de ônibus — quando os guardas não os expulsavam. “Não pode ficar embaixo nas paradas de ônibus para se proteger da chuva, não pode dormir também. É proibido. Só pode ficar ali se for pegar ônibus”, diz Nelson. “Nossa sorte é de que Boa Vista é muito quente”, ameniza Skarlet.

Durante esses dias nas ruas, o casal presenciou o preconceito e a violência. “Me trataram como pilantra”, conta Skarlet. “Entramos no mercado para comprar bolachas, mas era muito caro. Eu olhei o preço, deixei a bolacha ali e fui embora. O segurança foi atrás. Fez com que esvaziássemos os bolsos. Voltamos para o mercado, e mostrei para ele onde deixei a bolacha”, completa. O casal também relata o caso do jovem venezuelano Jose Antonio Gonzalez, de 19 anos. Ele foi morto a pauladas por furtar um mercado da região. Jose morava na rua, em Boa Vista, assim como o casal. “Sentimos muito medo quando ficamos sabendo da história. Também acharam que roubamos um mercado. Poderia ter sido nós”, conclui Skarlet. Além desse episódio, eles recordam que foram abordados por um homem que ofereceu trabalho para Skarlet. Se tratava de prostituição. Eles não aceitaram. “Muitas mulheres acabam se prostituindo, porque não conseguem outro trabalho. Mas nós não aceitamos, apesar de precisarmos de dinheiro”, explica Nelson.

Skarlet Alvarez e Nelson Chivico se tornaram líderes do primeiro andar / Foto: Vera Garibaldi

O abrigo

Após caminharem pelas ruas de Boa Vista, o casal encontrou um dos seis abrigos mantidos pela ONU na capital de Roraima. Porém, ainda ficaram aproximadamente três dias na rua. Isso porque, além deles, outros imigrantes também estavam à procura de auxílio e moradia.

Os dois conseguiram as vagas no abrigo depois uma série de ações burocráticas. Para participar do programa de ajuda da ONU, eles precisavam regularizar sua situação no Brasil e emitir os documentos obrigatórios para imigrantes. Além disso, eles também passaram pelo processo de triagem, em que os voluntários do abrigo traçaram o perfil de cada um dos venezuelanos. Dessa forma, quando os imigrantes fossem encaminhados para outra parte do país, aqueles que tivessem características parecidas permaneceriam juntos.

Para Skarlet, estar no abrigo era melhor do que estar na rua, porém ele tinha os seus problemas: ele abrigava cerca de 800 pessoas e não tinha estrutura para isso. “Tinha um banheiro comum com só cinco vasos sanitários para todas as mulheres. Era muito pouco, porque eram umas 400 mulheres. Também só havia cinco chuveiros, e as filas para pegar banho eram muito grandes, e às 10 horas da noite desligavam todas as luzes”, explica Skarlet. Em um lugar que deveria ser de acolhimento, a insegurança estava presente. “Quando um lavava as roupas, havia que estar de olho, porque alguém poderia roubá-las”, ela continua. “Eu dormia com os sapatos, porque, caso contrário, alguém os teria roubado”, completa Nelson.

O jovem casal também teve que lidar com a distância, a saudade e o medo enquanto se abrigava. Eles foram separados no abrigo, que era dividido em duas partes: a ala feminina e a ala masculina. “Não podíamos nem dormir juntos”, reclama Nelson. Naquele momento, o maior medo deles era não conseguir participar do processo de interiorização, e consequentemente, ficar em Boa Vista. “Lá não havia muita oportunidade de emprego para nós”, conta Nelson.

Para irem para outras partes do país, os imigrantes, com o auxílio dos voluntários no abrigo, precisavam se inscrever nas vagas que abriam para a interiorização. Elas só abriam quando as prefeituras aceitavam participar do programa. Em agosto deste ano, municípios do estado do Rio Grande do Sul aceitaram recebê-los. Entre aqueles que se inscreveram para o sul estava Skarlet e Nelson.

O alojamento Farroupilha

Os jovens foram avisados por voluntários que haviam conseguido as vagas para o processo de interiorização no Rio Grande do Sul. Eles ficaram no grupo de imigrantes que iria para o alojamento Farroupilha, em Canoas. O casal embarcou na quarta-feira, 12 de setembro, no Aeroporto Internacional de Boa Vista, por volta da meia-noite e desembarcou no dia seguinte, 13, ao meio-dia, no Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre. Nervosos, eles nunca haviam andado de avião. “Graças a deus, o mais traumático [da viagem] só foi a decolagem, porque no resto passamos a viagem toda dormindo”, diz Skarlet.

Do aeroporto, em Porto Alegre, eles foram encaminhados de ônibus para o alojamento Farroupilha. “Quando chegamos, nos sentimos como uns artistas, algo assim, porque estava cheio de policiais nos cuidando, gente gravando e tirando fotos”, conta Skarlet. Mas o melhor para eles foi chegar em seu apartamento. “Quando entramos, ficamos surpresos, porque era mais do que esperávamos: ter uma geladeira própria, uma cozinha própria… e cheia de coisas, porque tinha comida também”, completa.

O mês de outubro foi marcado pela saída da primeira família do alojamento Farroupilha / Foto: Júlia Ozorio

A moça explica que o dia a dia no prédio é monótono, exceto quando os voluntários levam alguma atividade para os moradores. É obrigatória a presença de pelo menos dois voluntários no alojamento em dias de semana. Eles são responsáveis por acompanhar os venezuelanos na sua inserção na sociedade, fazendo atividades como o ensino da língua portuguesa, brincadeiras lúdicas para as crianças e confecção de currículos para os adultos. Entre as coisas que os voluntários proporcionaram, Skarlet destaca o episódio da cabeleireira que atendeu todas as mulheres do prédio gratuitamente. São cerca de 40 mulheres que moram no alojamento. Muitas dessas estão há um tempo sem ir ao cabeleireiro. “Ela veio e arrumou o cabelo de todas nós sem cobrar nada. Me senti como uma princesa”, conta. Além das atividades proporcionadas pelos voluntários, os imigrantes precisam cumprir tarefas e respeitar regras de organização, limpeza e convívio social.

Após um mês morando no prédio dos imigrantes, Skarlet conseguiu se empregar, por meio de contatos, em uma empresa de contabilidade, em Porto Alegre. Ela começou no dia 15 de outubro, uma segunda-feira. Nelson explica que eles ganharam celulares do chefe de Skarlet para que pudessem se comunicar no Brasil. Em novembro, Nelson conseguiu emprego em uma empresa de alimentos, sendo responsável por confeccionar biscoitos. “Estamos muito felizes. Agora os dois têm emprego, e podemos pensar no futuro”, diz Skarlet. Eles planejam conhecer mais a cidade de Canoas, ir ao cinema e conhecer o Parque Snowland, em Gramado. O casal está agradecido pela ajuda que teve, mas deseja sair do alojamento para viver em um lugar só seu. “Assim como nós precisamos vir para cá, outros também precisam”, diz Skarlet.

Júlia Ozorio

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Júlia Ozorio
Olhares Plurais

Jornalismo UFRGS. Codiretora do coletivo Iguana Jornalismo. Excêntrica.